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Segundo Riccardo Marchi, André Ventura é uma das personalidades políticas mais faladas na comunicação social. Essa exposição mediática teve, comprovadamente, "um efeito positivo para o Chega", porque permitiu-lhe aumentar a base de militantes e despertou o interesse da população.
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Segundo Riccardo Marchi, André Ventura é uma das personalidades políticas mais faladas na comunicação social. Essa exposição mediática teve, comprovadamente, "um efeito positivo para o Chega", porque permitiu-lhe aumentar a base de militantes e despertou o interesse da população.

Gustavo Bom / Global Imagens

Segundo Riccardo Marchi, André Ventura é uma das personalidades políticas mais faladas na comunicação social. Essa exposição mediática teve, comprovadamente, "um efeito positivo para o Chega", porque permitiu-lhe aumentar a base de militantes e despertou o interesse da população.

Gustavo Bom / Global Imagens

Riccardo Marchi: "André Ventura está a conduzir um potencial Ferrari mas só tirou a carta de condução ontem"

O novo livro de Riccardo Marchi é sobre a nova direita e o Chega. Em entrevista, diz que tentativa de ilegalizar o partido não será "bem sucedida" e crescimento eleitoral de dois dígitos é "provável"

O investigador Riccardo Marchi, especialista nas direitas radicais portuguesas, foi perceber como é que nasceu e ganhou projeção o Chega, o projeto político de André Ventura que, em doze meses, chegou à Assembleia da República. Esse foi o ponto de partida do livro “A Nova Direita Anti-Sistema. O caso do Chega”, disponível a partir de 25 de junho. O historiador, nascido em Pádua, Itália, falou, em exclusivo, com o Observador e defendeu que o Chega não é um partido de extrema-direita, mas da nova direita radical, e que se caracteriza por ser “mais flexível, menos ideológica e ortodoxa”, capaz de ir roubar eleitorado à direita tradicional, como o PSD e o CDS, mas também à esquerda, onde crescem os “descontentes” com a agenda identitária.

Nesta entrevista, Riccardo Marchi, professor convidado do ISCTE-IUL, antecipa um crescimento de dois dígitos do partido populista e anti sistema, como já acontece em outros países europeus mas, para isso, o Chega tem de construir a sua “coluna vertebral” e “cooptar quadros” para a direção. A tarefa é complexa, explica, devido à relação de “amor e ódio” da comunicação social com o líder, André Ventura. “Os media são hostis em relação ao Chega, mas não conseguem evitar falar do partido. Isso não só gera likes nas redes sociais como notícias virais”. Conclui que ainda é cedo falar do partido como um projeto que “veio para ficar”, mas avisa que a ambição de André Ventura, uma figura mais “política do que ideológica”, aliada à incapacidade dos partidos tradicionais – que “conduzem o jogo democrático há 45 anos” – de interpretar os sinais de cansaço dos portugueses que não se reveem nas elites, pode tornar o Chega num “ator consistente” na cena política portuguesa. Ouça aqui o áudio da entrevista ao programa “Sob Escuta” da Rádio Observador.

Riccardo Marchi: “Creio que não há nenhuma hipótese, do ponto de vista constitucional, de ilegalizar o Chega”

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Escolheu para título do livro “A Nova Direita Anti-Sistema. O caso do Chega”. Isso quer dizer que é errado classificar o partido como sendo de extrema-direita?
Sim. Utilizei a terminologia nova direita anti-sistema com base no debate académico que há sobre esse movimento, em particular com o facto da nova direita se identificar com movimentos contemporâneos que não se reconhecem na tradição histórica dos autoritarismos da primeira metade do século XX, como o fascismo, o nacional socialismo, o salazarismo ou o franquismo. Essa nova direita não pertence a essa genealogia e determina, hoje em dia, o crescimento da direita em Portugal. É, também, essa nova direita radical que triplicou o número de votos na Europa, e não a direita radical tradicional – que, pelo contrário, permanece marginal no panorama político de vários países europeus.

E que diferenças encontra entre as duas direitas – a nova direita anti-sistema e a direita radical tradicional?
A direita radical tradicional tem uma postura crítica em relação à democracia liberal. As novas direitas, pelo contrário, inserem-se dentro do paradigma da democracia liberal, porque querem reformar os sistemas políticos nos quais se encontram. No entanto, contestam algumas acelerações liberais (no sentido americano do termo) em alguns temas, como sejam, as políticas de discriminação positiva, as questões relacionadas com as minorias, a comunidade LGBTI ou a ideologia de género. Sobre esses assuntos, têm uma postura crítica, mas não saem do modelo de democracia liberal que conhecemos, e que assenta na separação de poderes. Não são antidemocráticas.

"Creio que não há nenhuma hipótese, do ponto de vista constitucional, de ilegalizar o Chega. A Constituição portuguesa proíbe partidos de clara inspiração fascista. Não é, de todo, o caso do Chega. O partido não está interessado em levantar as bandeiras do fascismo do século XX ou em defender os seus líderes. Nem trazer para o debate essa agenda política"

Isso remete para um tema que está na atualidade. Decorre uma petição a pedir a abolição do partido Chega por ideologia fascista. Os peticionários argumentam que apesar do fascismo ser considerado crime em Portugal, “está sentado na Assembleia da República um seguidor dessa ideologia”. Concorda com essa acusação?
A tentativa de ilegalizar partidos da direita radical, em nome da legislação constitucional ou antifascista, é bastante comum nos países ocidentais. Isso aconteceu em Itália, no final dos anos 40 e princípio dos anos 50, com o Movimento Social Italiano – esse sim, um partido neofascista (ligado à tradição do fascismo italiano), mas que apesar das tentativas dos seus opositores, nunca foi considerado inconstitucional. E também na Alemanha, com os partidos de direita radical. Sempre que surge um partido da nova direita radical é normal que, no confronto político polarizado, as forças contrárias a essa ideologia tentem, através da legislação, ilegalizar o partido. Creio, no entanto, que não há nenhuma hipótese, do ponto de vista constitucional, de ilegalizar o Chega. A Constituição portuguesa proíbe partidos de clara inspiração fascista. Não é, de todo, o caso do Chega. O partido não está interessado em levantar as bandeiras do fascismo do século XX ou em defender os seus líderes. Nem em trazer para o debate essa agenda política.

Outra tema na ordem do dia é a questão do confinamento da comunidade cigana levantada por André Ventura devido à pandemia. O Chega é acusado de ser o único partido parlamentar “xenófobo e racista”.
Esse é, provavelmente, o tema mais problemático do meu livro porque tem várias dimensões. A primeira, é a dimensão comunicacional. André Ventura, desde as eleições autárquicas de 2017, quando era cabeça de lista do PSD à Câmara de Loures, deu-se conta de que a estratégia de comunicar politicamente através de temas fraturantes, como é o caso dos ciganos, garantia-lhe as manchetes dos jornais. Na época da política espetáculo, isso é fundamental. É o oxigénio dos políticos de hoje em dia.

E faz isso no Chega também.
Se analisarmos o discurso do Chega nas redes sociais, descobrimos uma mistura complexa de posições. No livro, mostro como é possível posicionar o partido numa reta que tem dois polos opostos: o nacionalismo cívico (“é português quem quiser, independentemente da sua origem étnica ou racial”), e o nacionalismo étnico (“o português é o branco, caucasiano e com antepassados portugueses”). Nessa reta, as posições dos militantes do Chega não se situam nos polos opostos, estão espalhadas ao centro. Ou seja, em relação às comunidades ciganas e afro descentes, por mais vincadas que sejam as críticas de André Ventura, o partido não considera as duas comunidades alheias à realidade portuguesa. Tem uma postura de assimilação.

Segundo o que está escrito no livro, aceita-as desde que “cumpram as regras”?
Exatamente. A vertente securitária e legalista é mais importante do que a questão étnico racial no discurso do Chega.

Riccardo Marchi admite que sempre que surge um partido da nova direita radical é "normal" que as forças contrárias a essa ideologia tentem, através da legislação, ilegalizar o partido

JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

“Os media são hostis em relação ao Chega, mas não conseguem evitar falar do partido”

Em relação ao programa político do partido, o livro refere a falta de “consistência” do documento. Diz que “não reflete totalmente a base do Chega” porque foi preparado de forma “apressada e até deficitária”. Essa é uma fraqueza do partido?
O Chega é um partido muito recente, tem pouco mais de um ano de vida. De facto, o programa político do partido, que tanto alarido deu, foi escrito de forma apressada, à beira das eleições legislativas, também devido à pressão da comunicação social, que queria obter o texto. Foi um trabalho sério feito pelo ideólogo do Chega, Diogo Pacheco de Amorim, e que teve como base as suas reflexões políticas na militância do Partido da Nova Democracia. O programa reflete essa tradição política, mas tanto os militantes de base, como os quadros do Chega, são muito mais flexíveis em termos de identidade política e ideológica. O partido não tem uma ideologia ortodoxa fixa e, certamente, irá modificar o programa nos próximos anos.

"O projeto de André Ventura é criar a "grande casa das direitas portuguesas", e não o partido ortodoxo da direita portuguesa. O seu objetivo é englobar dentro desse projeto o maior número de sensibilidades da direita, e não criar uma barreira ideológica que sirva para excluir pessoas. André Ventura quer integrar pessoas no seu projeto"

Como escreve no livro, André Ventura é “muito mais político do que ideológico”. A ideologia do partido é mais “flexível” do que o seu caráter populista anti-sistema e de protesto. Essa flexibilidade, que não consta no programa do partido, é o que permite ao Chega adaptar-se à agenda mediática. Essa “plasticidade” pode ser um ponto forte?
De certeza que é um ponto forte. É preciso não esquecer que André Ventura, desde os 15 ou 16 anos, pertence a um partido de massas, como o PSD. E esses grandes partidos, principalmente os do centro direita, em termos ideológicos não são ortodoxos, como é o PCP, que tem uma ortodoxia fixa. São partidos flexíveis, que reúnem sensibilidades diferentes. Esse é um ponto importante, do qual me apercebi durante a investigação. O projeto de André Ventura é criar a “grande casa das direitas portuguesas”, e não o partido ortodoxo da direita portuguesa. O seu objetivo é englobar dentro desse projeto o maior número de sensibilidades da direita, e não criar uma barreira ideológica que sirva para excluir pessoas. O André Ventura quer integrar pessoas no seu projeto.

O livro tenta desmistificar, também, a ideia de que todos os fundadores do Chega vêm da extrema direita ou da direita radical tradicional…
Totalmente. Dentro do Chega, desde a sua fundação, encontramos pessoas com um passado político diferente. Há pessoas que vêm do PSD, assim como há outras sem qualquer filiação política, que estavam na abstenção. É verdade, também, que algumas vêm da direita radical tradicional, em particular do PNR. É curioso que este tema seja o que mais desperta a atenção dos jornalistas. Os dois fundadores, por exemplo, que foram parar às páginas dos jornais, e que vêm do PNR, tiveram uma longa militância no PSD, de mais de 20 ou 30 anos. Passaram conjunturalmente no PNR, durante dois ou três anos, mas não são elementos típicos da direita radical tradicional. Existem, ainda, militantes da área nacionalista tradicional. A eleição de André Ventura, assim como a sua capacidade mediática, captaram a atenção dessas pessoas. No entanto, dentro do crescimento do partido, são uma percentagem minoritária, incapaz de determinar a linha política do Chega. Os próprios dirigentes não estão interessados em ter essas pessoas, vindas da extrema direita tradicional, a condicionarem a estratégia do partido.

Salienta que uma das queixas do Chega é a hostilidade da comunicação social. Pode dizer-se que há um “bloqueio” dos media? E que efeitos tem isso no partido, a médio e longo prazo?
Eu não diria bloqueio. Há, sim, um bloqueio dos media em relação ao PNR. Sempre houve. Em relação ao Chega, a partir da eleição de André Ventura gerou-se uma relação de “amor ódio” com a comunicação social, como escrevi no livro. Os media são hostis em relação ao Chega, mas não conseguem evitar falar do partido. Isso não só gera likes nas redes sociais como notícias virais, e é o que todos procuram. O André Ventura é uma das personalidades políticas mais faladas na comunicação social. Essa exposição mediática teve, comprovadamente, um efeito positivo para o Chega, porque permitiu-lhe aumentar a base de militantes e despertou o interesse da população. Por outro lado, esse mediatismo teve um lado negativo. Com parte dos media a vasculhar a vida privada dos dirigentes do Chega, o partido tem dificuldades em cooptar quadros profissionais. Pessoas de 30 ou 40 anos, que podiam ser importantes para a direção, não estão disponíveis porque não querem ver a sua vida privada vasculhada e exposta nas redes sociais.

Pode dizer-se que esse fator contribuiu para o desgaste de André Ventura? E foi para afirmar a sua força que apresentou a demissão e convocou eleições?
André Ventura não é uma figura contestada dentro do Chega. Ele aproveitou esta fase da pandemia, com a comunicação social de olhos postos no tema, para arrumar a casa. O partido, nascido há pouco tempo, parecia um saco de gatos. Com a entrada de muitas pessoas, surgiram vários conflitos. E apesar de ninguém contestar o líder, esses problemas foram enfraquecendo a base do partido. André Ventura sentiu a necessidade de mostrar que não se pode construir um partido assim, em que todos litigam com todos. Se há uma liderança clara, tem de haver uma certa obediência na base. Segundo me apercebi, ele não quer criar uma liderança carismática e não contestada – aliás, André Ventura é bastante aberto às críticas e sugestões da base. O que ele não quer é o caos porque isso fragiliza o partido.

"Fiquei com a impressão que André Ventura está a conduzir um potencial Ferrari mas só tirou a carta de condução ontem. E está bastante preocupado em não espatifar o carro contra uma parede logo na primeira curva"

Para a investigação do livro, entrevistou André Ventura. Com que impressão é ficou do deputado?
Em primeiro lugar, que se trata de um jovem. Às vezes, não se pensa nesse fator, mas quando estamos perante o político em ascensão, de 37 anos, é que percebemos o seu nível de ambição. Fiquei com a impressão que André Ventura está a conduzir um potencial Ferrari, mas só tirou a carta de condução ontem. E está bastante preocupado em não espatifar o carro contra uma parede logo na primeira curva. É um jovem bastante ambicioso e perfeccionista, não só na política mas em outras áreas, seja como professor universitário, autor ou comentador desportivo. Tem a capacidade de subir na vida política. E essa combinação de ambição com uma preocupação em não estragar tudo, foi o que mais me chamou a atenção.

“O partido Chega não é um perigo para a democracia”

Vamos recuar até ao dia 6 de outubro de 2019, data das legislativas. Refere que começou aí uma nova página para o partido Chega. Mas não só. A eleição de André Ventura foi, também, o ponto de partida para o seu novo livro. Como é que surgiu este desafio?
Este livro partiu de um desafio da editora Almedina, em dezembro de 2019. A ideia era escrever um ensaio sobre o Chega, que estava a crescer muito, e a editora queria lançar no mercado um estudo académico sobre o partido. Naquele momento, tive algum problema em aceitar a ideia porque, para ser sincero, não estava a seguir o partido de uma forma muito aprofundada.

Apesar de ser especialista no tema da direita radical na democracia portuguesa….
Nos últimos 15 anos, estive mais concentrado na direita radical tradicional portuguesa, que era a que existia em Portugal. Ainda não havia um partido da nova direita anti-sistema, como já acontecia noutras partes da Europa. Por isso, seguia o André Ventura de forma distraída, porque ele tinha uma estratégia comunicacional populista que, até às eleições de outubro de 2019, não resultou. Mesmo nas eleições europeias, em maio de 2019, a coligação Basta não conseguiu um resultado assinalável. E para dizer a verdade, também a votação de André Ventura para o Parlamento não é estrondosa. O Chega conquista 1,3 por cento dos votos e o líder consegue um assento parlamentar, como deputado único, com o resultado do distrito de Lisboa. Por isso, só nos dias seguintes é que o partido me despertou a atenção.

Porquê?
Porque a reação da comunicação social foi estrondosa. Em todas as primeiras páginas dos jornais nacionais, assim como nalguns títulos internacionais, surgiu a ideia de que o populismo da direita radical tinha chegado a Portugal. Nenhum partido de esquerda alguma vez despertou o ódio de uma parte da comunicação social como fez o Chega.

Em maio do ano passado, deu uma entrevista onde explicava que em Portugal havia falta de oferta de partidos populistas, mas as condições para o seu surgimento já existiam. Pergunto-lhe se André Ventura, e o Chega, o que fizeram foi aproveitar essa janela de oportunidade?
No debate académico, há muito tempo que se falava da existência de uma demanda populista de protesto por parte de faixas do eleitorado português, que podiam estar nos partidos tradicionais ou na abstenção.

"Se fizermos uma análise científica, vemos que André Ventura representa a direita que noutros países europeus já está presente na cena política há duas ou três décadas, até com responsabilidade de governo"


O que explica a reação de alguma comunicação social à eleição de André Ventura se, na sociedade portuguesa, as condições para o surgimento de um partido da nova direita já eram propícias?
Com o Chega no Parlamento, a comunicação social percebeu, finalmente, que em Portugal já havia matéria para se falar de um fenómeno que existia no resto da Europa. Mas pegou no tema de forma espalhafatosa, apresentando o partido como um perigo para a democracia, que trazia uma onda racista e xenófoba. Se fizermos uma análise científica, vemos que André Ventura representa a direita que noutros países europeus está presente na cena política há duas ou três décadas, até com responsabilidade de governo. A chamada direita radical já esteve no governo em Itália, por seis vezes, em coligações lideradas por Silvio Berlusconi ou com partidos como a Liga, Fratelli d’Itália e a Aliança Nacional, nos anos 90. Na Áustria, com o FPO. Em França, a Frente Nacional nunca entrou no Parlamento nem no governo, devido ao sistema eleitoral francês, mas está no poder local e regional.

Apesar de especialista na nova direita radical, Marchi seguia André Ventura de "forma distraída", porque tinha uma estratégia comunicacional populista que, até às eleições de outubro, "não resultou"

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

De acordo com a sua investigação, o Chega é um perigo para a democracia?
O partido Chega não é um perigo para a democracia, como nenhum desses outros partidos são perigosos para a democracia, principalmente na Europa Ocidental. São partidos que pertencem ao jogo democrático e cumprem as regras. Essa é a estratégia eleitoral que, desde o início, lhes permitiu alcançar resultados até de dois dígitos, entre os 15 e os 25 por cento do eleitorado. Na minha análise, e aqui posso divergir de outros colegas da ciência política ou de outras áreas da Academia, essa estratégia não é uma máscara. Faz parte do seu ADN, estão convictamente inseridos no paradigma da democracia liberal.

É possível ao Chega aspirar aos dois dígitos?
É provável que consiga devido à crise dos partidos tradicionais de centro direita, como o PSD e o CDS. Mas para alcançar isso, creio que seja indispensável ao Chega construir aquilo que é o esqueleto do partido. O partido tem uma cabeça, que é a sua liderança, mas está a construir a coluna vertebral. Para conseguir 15 ou 20% por cento do eleitorado, o partido tem de ter um esqueleto mais forte. As eleições autárquicas, por exemplo, podem ser importantes para o partido cooptar quadros a nível local. E desses melhores quadros, pode vir a resultar um grupo parlamentar para as legislativas, o que vai permitir ao Chega assentar raízes na sociedade portuguesa. Nesta fase, ainda está tudo em aberto.

A estratégia “no dia em que ganhar os subúrbios ganho o país”

Já depois da eleição de André Ventura, num texto publicado no Observador, escreveu que o Chega era uma “caixa vazia em termos de quadros e até de identidade ideológica”. Mantém a opinião?
Não é bem uma caixa vazia. Em termos de identidade ideológica, tem dois eixos marcados: o liberalismo económico e o conservadorismo nos valores. Agora, à volta desses dois eixos, o programa político pode ser construído de várias maneiras. Esses dois eixos dão a possibilidade ao Chega de criar uma série de propostas políticas diferenciadas, umas mais radicais do que outras. Em termos de quadros, o Chega está neste momento a cooptar e triar as pessoas que estão a juntar-se ao partido. Como eu indiquei no livro, o partido passou de 700 filiados antes das eleições, para mais de 10 mil atualmente. Há, por isso, um trabalho muito complexo de seleção de quadros a nível local e nacional, com o objetivo de criar a estrutura do partido. Não diria, por isso, que o Chega é uma caixa vazia mas, sim, uma caixa em formação.

Outro dos desafios do Chega está no facto do setor empresarial não lhe demonstrar uma atenção particular. O partido não tem relevância nos temas económicos? E isso pode mudar com a crise que já está instalada?
Nos setores industriais, há a tendência de olhar de forma pragmática para os atores políticos. Os empresários até podem querer ouvir a voz de um deputado com uma postura liberal na economia mas, no fundo, o partido só teve 1,3 por cento de votos.

"A crise económica provocada pela pandemia pode revelar-se um desafio importante para o partido, ao pôr a funcionar a sua flexibilidade ideológica. Com o papel do Estado mais preponderante na retoma económica, o Chega terá de modificar a sua ideia de "menos Estado" na economia"

E não vão em sondagens…
As sondagens têm muito que se lhes diga. Umas deram ao Chega oito por cento dos votos. Nas últimas, o partido ficou-se pelos seis por cento. Numa sondagem encomendada pelo próprio partido, o Chega não ultrapassou os quatro por cento de intenção de voto. É preciso olhar com cuidado para esses resultados. De certeza que o partido está em crescimento, e que se vai consolidar, mas para atrair a atenção de outros setores, o Chega tem de se fortalecer. A crise económica provocada pela pandemia pode revelar-se um desafio importante para o partido, ao pôr a funcionar a sua flexibilidade ideológica. Com o papel do Estado preponderante na retoma económica, o Chega terá de modificar a sua ideia de “menos Estado” na economia. Isso será um teste à capacidade plástica do partido.

No livro, André Ventura assumiu que vai entrar nos temas de esquerda, como seja o salário mínimo a precariedade do trabalho ou o cortes de pensões. Diz mesmo que o Chega “vai entrar onde lhes dói mais”. A esquerda tem motivos para se sentir ameaçada?
Não creio que a esquerda tenha motivos para se sentir ameaçada porque, apesar de tudo, há uma conceção diferente do papel do Estado na economia. O Chega é um partido liberal, mas dentro do partido convivem várias sensibilidades. As pessoas que vêm do PSD, por exemplo, querem que o Estado exerça alguma influência na economia, mas com um papel subsidiário. Esse é um conceito que não existe à esquerda, que defende o papel central do Estado na economia. Essas duas versões não concorrem uma com a outra. Mas é possível que algum eleitorado de esquerda se sinta atraído pelas soluções do Chega.
O partido nunca quis eliminar o Estado das áreas importantes, como a saúde ou a educação – neste ponto, houve uma má compreensão do seu programa político. O Chega defende a ideia da universalidade e gratuidade dos serviços essenciais. A questão central está em quem os fornece. Para o Chega, não deve ser o Estado a prestar esses serviços, mas sim os privados pagos pelo Estado através dos impostos dos cidadãos. Este exemplo prova que há uma série de fórmulas que o Chega pode criar para concorrer com a tese da esquerda, dos serviços cem por cento públicos. 

O que André Ventura pretende, diz o investigador, é conquistar o eleitorado de direita, "que não pertence ao CDS, está dentro do PSD ou opta pela abstenção nas eleições"

NUNO VEIGA/LUSA

André Ventura, na entrevista que lhe fez, tem ideias claras acerca do eleitorado do Chega, que vai desde a direita do mundo rural, às bases populares do interior do país, passando pelos subúrbios das grandes cidades. Sobre este ponto, o líder diz que “no dia em que ganhar os subúrbios ganho o país”. Como vê essa estratégia?
É uma estratégia interessante. André Ventura nunca quis ficar limitado ao eleitorado da direita clássica ou ao CDS. Na entrevista, contou que quando era novo se aproximou do PSD porque, no seu círculo de amigos da Linha de Sintra, o CDS era considerado um partido da classe social alta. Foi nessa fase que ele percebeu que existia uma direita popular, mais ampla, que não se revia no CDS. Agora, o que André Ventura pretende é conquistar todo esse eleitorado de direita – que não pertence ao CDS, algum até está dentro do PSD, enquanto que outra parte opta pela abstenção nas eleições.

Uma direita popular que não se revê nas elites…
Não se revê nas elites porque está cansada dos partidos tradicionais que conduzem o jogo democrático há 45 anos. Além da direita, André Ventura também quer conquistar o eleitorado tradicionalmente de esquerda, que não se sente representado pela agenda da nova esquerda – a agenda identitária das minorias, dos direitos LGBT e da ideologia de género. O descontentamento dentro das bases dos partidos de esquerda pode vir a ser aproveitado pela nova direita radical, como já aconteceu noutros países europeus.

Em que medida é que a origem social de André Ventura foi determinante para a estratégia do Chega?
A origem social de André Ventura determina o seu discurso. Ele é descrito, muitas vezes, como um líder oportunista, que viu nestas ideias de direita a possibilidade de iniciar uma carreira política. No entanto, de acordo com a minha investigação, julgo que André Ventura sempre defendeu estes conceitos, mas não conseguiu traduzir os seus pensamentos em discurso político porque não estava habituado a isso. E também porque, em Portugal, ainda não existia essa direita mais popular, de protesto e anti-sistema.

"A geração de André Ventura não sente o salazarismo como um lastro, é uma cultura política que não lhe pertence. Não quer aquele passado. Tem mais liberdade. É uma clássica direita do século XXI, sem nenhuma dificuldade em apresentar-se tal como é"

Como é que explica isso?
Isso está relacionado com a história da direita portuguesa, e com o peso que teve de carregar dos 50 anos de autoritarismo salazarista. A direita teve dificuldades em assumir a sua identidade porque isso criou um lastro no momento em que se quis apresentar ao eleitorado na democracia portuguesa.

A direita sentia culpa de ser de direita? 
Diria que teve dificuldade em se libertar do passado histórico salazarista e enfrentar o embate da repressão do Movimento das Forças Armadas e das forças de esquerda. Na democracia cristã e na identidade conservadora e liberal, encontrou uma forma escamotear uma vertente de protesto mais “caceteira”, mas que também faz parte do seu ADN. A geração de André Ventura não tem esse problema porque não sente o salazarismo como um lastro, é uma cultura política que não lhe pertence. Não quer aquele passado. Tem mais liberdade. É uma clássica direita do século XXI, sem dificuldade em apresentar-se tal como é.

Falou com um dos fundadores que se referiu ao Chega como o “projeto do André”. Nesse sentido, e de acordo com a sua investigação, coloco-lhe duas questões: o partido é o projeto pessoal de André Ventura? E essa personalização que riscos traz ao partido?
O Chega nasce como projeto político de André Ventura. O partido começa como um movimento interno, dentro do PSD, para afastar Rui Rio da liderança do partido. Quando André Ventura sai do PSD, sai sozinho. Nunca existiu uma corrente André Ventura no PSD. Cá fora, ele começou a falar com amigos de infância, pessoas que conheceu em Loures, nas autárquicas, e estudantes da universidade onde dava aulas. O Chega arrancou como um projeto individual, que foi ganhando força, e depois das eleições legislativas cresceu muito. Neste momento, o desafio do partido é deixar de ser o “projeto de André Ventura” e tornar-se autónomo em relação ao líder. Digo isto porque qualquer projeto personalista é sempre frágil.

Mas é o desempenho público de André Ventura que chama militantes para o Chega. E ele sabe disso….
Absolutamente. Toda a visibilidade mediática do partido depende de André Ventura. E ele sabe que é a mais-valia do partido, mas está consciente dos riscos que isso acarreta. Neste momento, André Ventura está preocupado com a consolidação do Chega. Nas conversas que tive com ele, fiquei com a certeza que não é do seu interesse manter essa liderança carismática isolada numa redoma, mas abrir o partido a quadros que o possam ajudar nesta caminhada.

E mantêm-se os cinco temas principais que indica no livro (a identidade do partido, a economia, a família, a educação, a imigração e a Europa)?
Para as primeiras páginas dos jornais, o discurso securitário e legalista resulta. Não faz sentido André Ventura renunciar a essa sua faceta porque é uma estratégia que funciona. No entanto, o Chega tem outra vertente que ainda não explorou, a do anti-sistema. Ou seja, a ideia de que o partido chegou para pôr termo à Terceira República e inaugurar a Quarta República. De forma resumida, isso significa acabar com a alternância política, de quase 50 anos, entre PS e PSD, e avançar com reformas constitucionais, como seja tornar o sistema político português num sistema presidencialista. Esta vertente anti-sistema, onde cabem essas reformas e a fundação da Quarta República, pode ser um campo interessante para o Chega se fortalecer e criar raízes. Isso requer um trabalho profundo que ainda não foi feito.

Uma das conclusões do livro é que o desempenho parlamentar de André Ventura e o seu “estilo contundente” não serão suficientes para responder à “demanda política despertada pelas promessas regeneradoras”.
Parte do eleitorado português vê com bons olhos uma mudança radical do sistema político. Mas uma mudança radical não pode ser feitas por chavões. A uma certa altura, um partido reformista radical tem que apresentar modelos institucionais diferentes, dentro do paradigma da democracia liberal. Ou seja, há uma série de propostas dentro da agenda reformista que o Chega poderá aprofundar.

Segundo Marchi, as presidenciais são a oportunidade de André Ventura emergir como líder na cena política nacional

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Ainda é cedo para dizer se o Chega veio ou não para ficar”

A candidatura de André Ventura à Presidência da República faz parte da estratégia do partido? Ou é mais um “projeto pessoal”?
Esse é um tema engraçado porque, de início, o partido estava contra a candidatura de André Ventura. A direção do Chega queria aproveitar este ano para consolidar o partido. Na minha opinião, essa é a oportunidade de André Ventura emergir como líder na cena política nacional porque ele tem a capacidade de polarizar os debates públicos, e isso é importante numa campanha presidencial – que é feita de confrontos individuais. Seria um desperdício não aproveitar essa oportunidade, apesar dos riscos.

A que riscos é que se refere?

A um fraco resultado nas presidenciais. Já tivemos candidatos presidenciais não radicais que conquistaram à volta de 15 a 20 por cento dos votos. Agora, uma pessoa que se apresenta com um discurso radical e que não obtenha mais do que 2 ou 3 por cento de votos, seria um fracasso.

"André Ventura nunca deixa sem resposta um ataque que lhe é dirigido, não só por deputados mas, também por pessoas mediáticas, como fez com os cantores. Não há um único tweet que o ataque a que ele não dê resposta. Essa estratégia é interessante porque o discurso dele é contra essa elite do sistema, sendo ele anti-sistema"


Esse resultado poderia contaminar o Chega?
O perigo de contaminação existe sempre. Em todo o caso, acho que André Ventura fez bem em candidatar-se às presidenciais contra a vontade do partido. Isso mostra que as escolhas que ele faz resultam do seu faro político. Eu acho que foi a escolha acertada.

Termina o ensaio a responder se o Chega veio para ficar. A que conclusão é que chegou?
Concluo que ainda é cedo para dizer se o Chega veio ou não para ficar. No entanto, chamou-me a atenção a entrevista que fiz a um dirigente do partido. Disse-me que o Chega não ia desaparecer, mesmo se André Ventura não tivesse sido eleito deputado. Nos últimos meses, a mobilização do partido estava a ganhar força, o que teria permitido ao Chega aguentar mais quatro anos. Talvez isso já revele uma certa consistência, que o impeça de desaparecer facilmente. No entanto, e como escrevi no livro, há uma série de dificuldades e de fraquezas que o partido terá de ultrapassar para se tornar num ator consistente na cena política portuguesa.

E que dificuldades ou fraquezas são essas?
No imediato, um dos grandes problemas é a cooptação de quadros profissionais para o partido e a diminuição da conflitualidade interna, o que não deixa de ser um desafio para um partido que quer ser plural e agregar várias direitas. Outra questão é a da comunicação social. O Chega tem de se tornar mais impermeável a determinadas ofensivas dos media. As reportagens e boatos à volta do partido criam mossa. Terá de aprender a lidar com essas ameaças e a fortalecer a própria estrutura.

E as ameaça e fraquezas modificaram o discurso de André Ventura?
Nos últimos meses, André Ventura radicalizou o seu discurso de confrontação com a esquerda. Também porque, desde que entrou no Parlamento, começou a receber ataques constantes do Bloco de Esquerda ou do PS e decidiu ripostar sempre. André Ventura nunca deixa sem resposta um ataque que lhe é dirigido, não só por deputados mas, também por pessoas mediáticas, como fez com os cantores. Não há um único tweet que o ataque, a que ele não dê resposta. Essa estratégia é interessante porque o discurso dele é contra essa elite do sistema, sendo ele anti-sistema. Já em relação aos ataques de que é alvo, de ser racista e xenófobo, optou por um estratégia comunicacional diferente. André Ventura podia ter negado essas acusações, como lhe foi sugerido pelos assessores, mas preferiu sempre ignorar. Isso deve-se ao facto, como escrevo no livro, de parte da comunicação social não estar interessada em perceber a identidade do partido, mas sim em desmontar o líder e atacar o Chega. Por isso, ele achou que não valia a pena perder-se em justificações. Preferiu dirigir-se ao seu auditório natural, o eleitorado das periferias e do mundo rural, que percebe perfeitamente aquela linguagem.

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