Em novembro passado, a Saída de Emergência, editora responsável pela publicação em Portugal das obras de George R.R. Martin, autor de A Guerra dos Tronos, fez chegar às livrarias a primeira parte de Sangue & Fogo, a história dos reis Targaryen. Esta foi editada poucos dias depois da edição completa em inglês e, agora, a partir desta sexta-feira, passará a estar disponível em português o restante volume, que continua a história começada com Aegon, o Conquistador.
O excerto que o Observador pré-publica faz parte do primeiro capítulo desta segunda parte, intitulado “Herdeiros do Dragão — Uma Questão de Sucessão” e dedicado aos descendentes de Jaehaerys I, neto de Aegon I e responsável pela conciliação dos Sete Reinos. O primeiro volume de Sangue & Fogo terminou com a morte da sua mulher e irmã, Alysanne Targaryen; este termina com a regência de Rhaenyra, mãe de Aegon III, mais de 100 anos depois da subida ao trono do primeiro rei Targaryen. Ainda não se sabe quando Martin publicará a continuação da história da dinastia.
Herdeiros do Dragão
Uma Questão de Sucessão
As sementes da guerra são frequentemente plantadas durante épocas de paz. Assim foi em Westeros. A luta sangrenta pelo Trono de Ferro, conhecida como Dança dos Dragões e travada entre 129 e 131 DC, teve as suas raízes meio século antes, durante o mais longo e pacífico reinado de que qualquer um dos descendentes do Conquistador desfrutou, o de Jaehaerys I Targaryen, o Conciliador.
O Velho Rei e a Boa Rainha Alysanne governaram juntos até à morte dela em 100 DC (à parte dois períodos de afastamento, conhecidos como Primeira e Segunda Desavenças), e tiveram treze filhos. Quatro deles — dois filhos e duas filhas — cresceram até à maturidade, casaram e produziram filhos seus. Nunca antes ou depois foram os Sete Reinos abençoados (ou amaldiçoados, segundo certos pontos de vista) com tantos principezinhos Targaryen. Das virilhas do Velho Rei e da sua amada rainha brotou uma tal confusão de pretensões e pretendentes que muitos meistres creem que a Dança dos Dragões, ou alguma luta semelhante, era inevitável.
Isto não foi claro nos primeiros anos do reinado de Jaehaerys, pois no Príncipe Aemon e no Príncipe Baelon, Sua Graça tinha o proverbial «herdeiro e suplente», e só raramente o reino foi abençoado com dois príncipes mais capazes. Em 62 DC, aos sete anos de idade, Aemon foi formalmente ungido Príncipe de Pedra do Dragão e herdeiro ao Trono de Ferro. Armado cavaleiro aos dezassete, campeão de torneio aos vinte, tornou‐se oficial de justiça e mestre das leis do pai aos vinte e seis. Apesar de nunca ter servido o pai como Mão do Rei, o único motivo para tal foi o cargo estar ocupado pelo Septão Barth, o amigo em quem o Velho Rei mais confiava e «companheiro dos meus labores». E Baelon Targaryen não era menos bem‐sucedido. O príncipe mais novo alcançou o grau de cavaleiro aos dezasseis anos e casou aos dezoito. Embora ele e Aemon nutrissem uma saudável rivalidade, não havia homem que duvidasse do amor que os unia. A sucessão parecia sólida como pedra.
Mas a pedra começou a rachar em 92 DC quando Aemon, Príncipe de Pedra do Dragão, foi morto em Tarth por um dardo de besta disparado por um mirano contra o homem que se encontrava a seu lado. O rei e a rainha choraram a perda, e o reino acompanhou‐os, mas nenhum homem ficou mais desgostoso do que o Príncipe Baelon, que partiu imediatamente para Tarth e vingou o irmão empurrando os miranos para o mar. De regresso a Porto Real, Baelon foi saudado como herói por multidões ruidosas e abra‐ çado pelo pai, o rei, que o nomeou Príncipe de Pedra do Dragão e herdeiro ao Trono de Ferro. Foi um decreto popular. O povo amava Baelon, o Bravo, e os senhores do reino viam‐no como o óbvio sucessor do irmão.
Mas o Príncipe Aemon tinha descendência: a filha Rhaenys, nascida em 74 DC, crescera para se tornar uma jovem inteligente, capaz e bela. Em 90 DC, aos dezasseis anos de idade, ela casara com o almirante e mestre dos navios do rei, Corlys da Casa Velaryon, Senhor das Marés, conhecido como «Serpente Marinha», o nome do mais famoso dos seus muitos navios. E, além disso, a Princesa Rhaenys estava grávida quando o pai morreu. Ao outorgar Pedra do Dragão ao Príncipe Baelon, o Rei Jaehaerys não estava só a passar por cima de Rhaenys, mas também (possivelmente) do seu filho por nascer.
A decisão do rei estava de acordo com uma prática bem estabelecida. O primeiro Senhor dos Sete Reinos fora Aegon, o Conquistador, não a sua irmã Visenya, dois anos mais velha. O próprio Jaehaerys sucedera no Trono de Ferro ao tio usurpador, Maegor, apesar de a irmã Rhaena ter uma pretensão melhor se fosse apenas a ordem de nascimento a determinar a sucessão. Jaehaerys não tomou a decisão com ligeireza; sabe‐se que ele discutiu o assunto com o seu pequeno conselho. E sem dúvida terá consultado o Septão Barth, como fazia em todas as questões importantes, e muito peso foi dado às opiniões do Grande Meistre Elysar. Todos estavam de acordo. Baelon, um cavaleiro experiente de trinta e cinco anos, era mais adequado para governar do que a Princesa Rhaenys, de dezoito anos, ou o seu bebé ainda por nascer (que podia ou não ser um rapaz, ao passo que o Príncipe Baelon já fora pai de dois filhos saudáveis, Viserys e Daemon). O amor dos plebeus por Baelon, o Bravo, também foi mencionado.
Alguns dissidiram. A própria Rhaenys foi a primeira a levantar objeções.
— Quereis roubar ao meu filho o seu direito de primogenitura — disse ela ao rei, com uma mão pousada na barriga inchada. O marido, Corlys Velaryon, ficou tão furioso que abdicou do almirantado e do seu lugar no pequeno conselho, levando a esposa para Derivamarca. A Senhora Jocelyn da Casa Baratheon, mãe de Rhaenys, também ficou irada, e o mesmo aconteceu com o seu formidável irmão Boremund, Senhor de Ponta Tempestade.
A mais proeminente dissidente foi a Boa Rainha Alysanne, que durante muitos anos ajudara o marido a governar os Sete Reinos e agora via a filha do filho a ser posta de parte devido ao sexo.
— Um governante precisa de uma boa cabeça e de um coração fiel — disse ela ao rei, uma frase que ficou célebre. — Uma pila não é essencial. Se Vossa Graça realmente julga que às mulheres falta a inteligência para governar, é claro que já não tem necessidade de mim. — E assim a Rainha Alysanne partiu de Porto Real e voou para Pedra do Dragão em Alaprata. Ela e o Rei Jaehaerys permaneceram separados durante dois anos, o período de afastamento registado nas histórias como a Segunda Desavença.
O Velho Rei e a Boa Rainha reconciliaram‐se em 94 DC por intermédio dos bons ofícios da filha, a Septã Maegelle, mas nunca chegaram a acordo sobre a sucessão. A rainha morreu de uma doença debilitante em 100 DC, com a idade de sessenta e quatro anos, ainda a insistir que a neta Rhaenys e os filhos tinham sido injustamente privados dos seus direitos. «O rapaz na barriga», a criança por nascer que fora tema de tanto debate, revelou‐se uma rapariga quando nasceu em 93 DC. A mãe chamou‐lhe Laena. No ano seguinte, Rhaenys deu‐lhe um irmão, Laenor. Por essa altura já o Préncipe Baelon estava firmemente instalado como suposto herdeiro, mas a Casa Velaryon e a Casa Baratheon agarravam‐se à crença de que o jovem Laenor tinha uma pretensão melhor ao Trono de Ferro, e alguns até argumentavam em favor dos direitos da irmã mais velha, Laena, e da mãe de ambos, Rhaenys.
Nos últimos anos de vida, os deuses atingiram a Rainha Alysanne com muitos golpes cruéis, como foi relatado anteriormente. Contudo, Sua Graça não conheceu só mágoas mas também alegrias nesses mesmos anos, entre as quais se destacam os netos. E também houve casamentos. Em 93 DC, esteve presente no casamento do filho mais velho do Príncipe Baelon, Viserys, com a Senhora Aemma da Casa Arryn, a filha de onze anos da falecida Princesa Daella (o casamento só foi consumado quando a noiva floresceu, dois anos mais tarde). Em 97, a Boa Rainha viu o segundo filho de Baelon, Daemon, tomar como esposa a Senhora Rhea da Casa Royce, herdeira do antigo castelo de Pedrarruna, no Vale.
O grande torneio organizado em Porto Real em 98 DC para celebrar o quinquagésimo ano de reinado do Rei Jaehaerys decerto também alegrou o coração da rainha, pois a maior parte dos seus filhos, netos e bisnetos sobreviventes regressou para participar nos banquetes e celebrações. Disse‐se com verdade que nunca, desde a Perdição de Valíria, tinham tantos dra‐ gões sido vistos no mesmo sítio ao mesmo tempo. A justa final, na qual os cavaleiros da Guarda Real, Sor Ryam Redwyne e Sor Clement Crabb, quebraram trinta lanças um contra o outro antes de o Rei Jaehaerys os proclamar cocampeões, foi declarada a melhor exibição de cavalaria já vista em Westeros.
Quinze dias após o fim do torneio, contudo, o velho amigo do rei, o Septão Barth, morreu pacificamente enquanto dormia depois de ter servido competentemente como Mão durante quarenta e um anos. Jaehaerys escolheu para o seu lugar o Senhor Comandante da Guarda Real, mas Sor Ryam Redwyne não era nenhum Septão Barth e a sua indubitável perícia com uma lança mostrou ser‐lhe pouco útil como Mão.
— Há problemas que não podem ser resolvidos batendo‐lhes com um pau — foi a célebre observação proferida pelo Grande Meistre Allar. Sua Graça não teve alternativa a afastar Sor Ryam depois de apenas um ano no cargo. Virou‐se para o filho Baelon para o substituir e em 99 DC o Príncipe de Pedra do Dragão tornou‐se também Mão do Rei. Executou admiravelmente os seus deveres; embora fosse menos erudito do que o Septão Barth, o príncipe revelou ser um bom avaliador de homens e rodeou‐se com subordinados e conselheiros leais. Tanto os nobres como as pessoas comuns concordaram que o reino seria bem governado quando Baelon Targaryen se sentasse no Trono de Ferro.
Não sucederia assim. Em 101 DC, o Príncipe Baelon queixou‐se de uma pontada no flanco enquanto caçava na mata real. A dor piorou quando regressou à cidade. A barriga inchou e endureceu e a dor ficou tão severa que o deixou preso à cama. Runciter, o novo Grande Meistre só recentemente chegado da Cidadela depois de Alar ter sido derrubado por um ata‐ que de coração, conseguiu fazer descer um pouco a febre do príncipe e providenciou‐lhe algum alívio da agonia com leite de papoila, mas o seu estado continuou a piorar. No quinto dia da doença, o Príncipe Baelon morreu no seu quarto na Torre do Mão, com o pai sentado a seu lado, segurando‐lhe na mão. Depois de abrir o cadáver, o Grande Meistre Runciter atribuiu a causa da morte a uma barriga rebentada.
Todos os Sete Reinos choraram pelo Bravo Baelon, e ninguém o fez mais do que o Rei Jaehaerys. Desta vez, quando acendeu a pira funerária do filho, nem sequer teve o conforto da sua amada esposa a seu lado. O Velho Rei nunca estivera tão só. E agora, Sua Graça voltava uma vez mais a enfrentar um dilema bicudo, pois a sucessão estava de novo em dúvida. Com ambos os evidentes herdeiros mortos e queimados, já não havia uma sucessão clara ao Trono de Ferro… mas isso não queria dizer que houvesse falta de pretendentes.
Baelon fora pai de três filhos com a irmã Alyssa. Dois, Viserys e Daemon, ainda estavam vivos. Se Baelon tivesse ocupado o Trono de Ferro, Viserys ter‐lhe‐ia inquestionavelmente sucedido, mas a trágica morte do príncipe herdeiro aos quarenta e quatro anos de idade confundiu a sucessão. As pretensões da Princesa Rhaenys e da filha, Laena Velaryon, voltaram a ser apresentadas… e mesmo se elas fossem ultrapassadas de‐ vido ao sexo, o filho de Rhaenys, Laenor, não enfrentava tal impedimento. Laenor Velaryon era do sexo masculino e podia afirmar descender do filho mais velho de Jaehaerys, ao passo que os filhos de Baelon eram descendentes do mais novo.
Além disso, o Rei Jaehaerys ainda tinha um filho sobrevivente: Vaegon, arquimeistre na Cidadela, detentor do anel, bastão e máscara de ouro amarelo. Conhecido na História como Vaegon, o Sem‐Dragão, a sua existência fora em grande medida esquecida pela maior parte dos Sete Reinos. Embora tivesse apenas quarenta anos de idade, Vaegon era pálido e débil, um homem livresco dedicado à alquimia, astronomia, matemática e outras artes misteriosas. Mesmo em rapaz nunca tinha gerado grandes simpatias. Poucos o consideravam uma opção viável para ocupar o Trono de Ferro.
E, no entanto, era para o Arquimeistre Vaegon que o Velho Rei se virava agora, chamando a Porto Real o seu último filho sobrevivente. O que se passou entre eles permanece uma questão de desacordo. Há quem diga que o rei ofereceu o trono a Vaegon e recebeu uma recusa. Outros asseveram que ele só procurou o seu conselho. Tinham chegado à corte relatos de que Corlys Velaryon estava a reunir navios e homens em Derivamarca para «defender os direitos» do filho Laenor, ao passo que Daemon Targaryen, um jovem quezilento e colérico de vinte anos, tinha reunido o seu próprio ban‐ do de espadas ajuramentadas em apoio ao irmão Viserys. Uma luta violenta pela sucessão era provável, fosse quem fosse que recebesse a nomeação do Velho Rei para lhe suceder. Não havia dúvida de que Sua Graça agarrava avidamente a solução que lhe era oferecida pelo Arquimeistre Vaegon.
O Rei Jaehaerys anunciou a sua intenção de convocar um Grande Conselho, para discutir, debater e acabar por decidir a questão da sucessão. Todos os grandes e pequenos senhores de Westeros seriam convidados a estar presentes, juntamente com meistres da Cidadela de Vilavelha e septãs e septões para falarem em nome da Fé. Que os pretendentes apresentassem os seus argumentos perante os senhores reunidos, decretou Sua Graça. Ele respeitaria a decisão do conselho, escolhesse este quem escolhesse.