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Trump e a história da divisão da América

Trump foi o primeiro Presidente populista contemporâneo dos EUA. Encarnou uma frustração extrema com as elites que vem do passado e pode prolongar-se no futuro. Ensaio de Bruno Cardoso Reis.

A minha primeira viagem aos EUA foi em finais de 2000. Numa Nova Iorque e Washington D.C. geladas, eu estava a assistir, sem saber, a um grande degelo político, ao fim de uma era. Em Washington era ainda possível a um turista europeu visitar o Congresso ou a Casa Branca. E em Nova Iorque pude ainda ver as Torres Gémeas de pé. Elas seriam derrubadas menos de um ano depois pelos ataques terroristas da Al-Qaeda, e, com elas, a ilusão de omnipotência dos EUA vencedores da Guerra Fria. Seguiram-se duas décadas de guerras no Grande Médio Oriente, supostamente para derrotar o terrorismo jihadista, mas que serviram, sobretudo, para revelar os frustrantes limites do poderio militar dos EUA e para alimentar preocupações dos norte-americanos com a segurança do país, algo que Trump não deixaria de explorar.

Em Washington D.C. ainda pude ver manifestantes que protestavam contra o triunfo do republicano George W. Bush nas eleições presidenciais apesar de ter perdido o voto popular para Al Gore. Sobretudo, lembro-me de este ter apelado aos seus partidários, em nome da tradição de transição pacífica de poder, para aceitarem o resultado e colaborarem com a nova Administração.

Nas duas décadas seguintes – em que, por duas vezes, passei temporadas em Washington D.C. para trabalho académico – fui acompanhando o emergir de uma política norte-americana cada vez mais ideológica, mais extremada, mais polarizada, e onde o compromisso foi ficando cada vez mais difícil. Qual o problema disso? O sistema constitucional norte-americano foi pensado pelos Pais Fundadores, no final do século XVIII, para obrigar ao compromisso. Este é o problema fundamental da política norte-americana hoje: hiperpolarizada e, em grande parte, paralisada. Um problema para os norte-americanos, mas também para os aliados dos EUA que contam com eles para ajudar a dar resposta aos desafios de um mundo em mudança acelerada.

As origens remotas da presidência de Trump

A América gosta de pensar em si como o país do futuro, mas é regida pela mais antiga Constituição em vigor no mundo, que data de 1790. E apesar da tendência para idealizar o passado na memória pública de qualquer comunidade política, sempre houve na história norte-americana grandes oscilações no grau de confronto e de polarização política. Um dado fundamental a ter em conta é que a Constituição de 1790 correspondeu a compromissos muito trabalhosos. Muitos dos aspetos que hoje são criticados foram compromissos deliberados. Como o famoso método de eleição indireta do Presidente pelo Colégio Eleitoral que levou Trump à vitória em 2016, apesar de ter perdido o voto popular.

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O grande receio destes constituintes era que a demagogia fosse um caminho para a tirania, que sabiam ser a principal vulnerabilidade das democracias. Um sistema político aberto e eletivo é sempre vulnerável a líderes que coloquem os seus interesses à frente dos interesses nacionais e do respeito pelas leis. Nos EUA, o poder central está, portanto, deliberadamente, muito dividido: entre as duas câmaras no Congresso; entre este e o Presidente; para não falar dos tribunais ou dos poderes dos estados da federação. Isso exige compromissos amplos e cedências mútuas. Mas os constituintes estavam também cientes de que não há sistemas perfeitos. As opções dos indivíduos e os acasos da história têm sempre um papel a desempenhar. A uma senhora que terá perguntado a Benjamim Franklin que regime os constituintes tinham “dado” ao país, este terá respondido: “Uma República, se vocês a souberem preservar”.

Mas não estiveram já os EUA muito divididos no passado, antes de Trump? Claro que sim. Basta lembrar a crescente tensão e divisão e violência em torno da escravatura que dominou a primeira metade do século XIX e culminou numa das mais sangrentas guerras civis da história, entre 1861-65, causando 700 mil mortos. Porém, o grande trauma desta sangrenta Guerra Civil marcou o início de um período muito longo da história norte-americana em que o consenso político foi mais prezado do que nunca.

Depois da derrota dos estados do Sul foi alcançado um grande compromisso entre as elites do Norte e as elites sulistas, em 1877. Neste compromisso, os interesses e os direitos de muitos afro-americanos recém-libertados da escravatura foram tragicamente sacrificados. Isto deve recordar-nos de que se a procura do confronto a todo o custo é péssima, a procura do compromisso a todo o custo também o pode ser. Seja como for, o facto é que, para as elites dos partidos Republicano e Democrático, o grande mal a evitar passou a ser o risco de uma nova Guerra Civil. Por isso, estes partidos gabavam-se abertamente da sua ausência de convicções ideológicas. Eram partidos “catch all” ou de amplo espectro, com ligações muito mais históricas do que ideológicas a determinadas regiões e diferentes grupos dentro do país. Como afirmou o célebre senador Borah, no início do século XX, alguém que defenda o desarmamento, a Sociedade das Nações ou outras políticas esquerdistas, se for escolhido como o candidato republicano, então será republicano. No fundo, os dois grandes partidos que dominam a política nos EUA eram grandes coligações de elites regionais. O sistema tinha muitos problemas, desde logo o elitismo e o clientelismo, mas tinha a vantagem de promover uma cultura de compromisso, no interior dos próprios partidos e, depois, entre diferentes coligações de senadores ou congressistas, que permitiu reformas importantes.

Trump é comparado com Andrew Jackson, o primeiro populista a chegar à Casa Branca. O próprio está ciente disso e pôs um retrato de Jackson em lugar de destaque na Sala Oval. Porém, Jackson, eleito em 1828, era um populista sobretudo por comparação com as políticas muito elitistas dos seus antecessores. Mais: Jackson apareceu antes da consolidação dos aparelhos partidários.

Trump é a expressão extrema da frustração com essa cultura de compromisso entre as elites dos dois grandes partidos que dominou a política norte-americana por mais de um século. Outros populistas tentaram no passado quebrar esse consenso, mas tiveram um sucesso limitado. A possível exceção que confirma a regra é o Presidente Andrew Jackson, com quem o Presidente Trump é frequentemente comparado. O próprio Trump está ciente disso e escolheu ter um retrato de Jackson em lugar de destaque na Sala Oval. Porém, Jackson, eleito em 1828, era um populista sobretudo por comparação com as políticas muito elitistas dos seus antecessores. Mais importante ainda, Jackson apareceu antes da consolidação dos aparelhos partidários.

O sucesso de Trump é também uma expressão do peso do bipartidarismo na história política dos EUA. O facto de o Partido Republicano e o Partido Democrático dominarem a política norte-americana há mais de um século não tem a ver com a falta de imaginação política dos norte-americanos. O bipartidarismo resulta da lógica do jogo político nos EUA, em que, por regra, as eleições, de Presidente até xerife, são jogos de soma zero, em que o vencedor ganha tudo e não há prémios para o segundo ou terceiro. Isso terá levado, por exemplo, muitos republicanos a votar em Trump, mesmo com algumas reservas, em 2016 ou 2020, para evitar a vitória do outro lado.

A presidência de Trump também assenta, por fim, em mudanças estruturais que muito dos seus críticos mais acérrimos, nos EUA ou na Europa, dificilmente podem deixar de considerar positivas. A primeira destas mudanças é a crescente democratização do funcionamento interno dos partidos. Foi assim com a generalização de primárias abertas e com a supressão dos mecanismos que davam às elites partidárias um grande controlo do processo de seleção do candidato a presidente. Esses mecanismos praticamente desapareceram do Partido Republicano e atenuaram-se muito no Partido Democrático. Sem primárias abertas, nunca a elite dirigente do Partido Republicano teria permitido que Trump e não um dos seus, alguém como Jeb Bush, fosse o candidato presidencial em 2016.

A segunda destas tendências é uma crescente clareza ideológica e programática dos partidos. É mesmo possível argumentar que parte da culpa da emergência de Trump é dos cientistas políticos norte-americanos e, em particular, da sua associação mais importante. A APSA, num famoso relatório, em 1950, defendeu que os partidos norte-americanos precisavam urgentemente de ganhar maior coerência ideológica. Claro que, para se defender seriamente esta tese, como faz Ezra Klein da Vox, seria preciso acreditar que o referido relatório teve grande influência nos decisores políticos norte-americanos, o que, baseando-me na minha experiência de académico, me parece algo duvidoso.

O argumento usado pela APSA, diga-se, era perfeitamente lógico: tendo em conta a importância central dos dois partidos históricos na política norte-americana, era muito importante eles oferecerem aos eleitores escolhas políticas claras. Para isso, era fundamental que os velhos partidos Democrático e Republicano, muito elitistas, muito clientelares, com base em fortes redes de interesses locais, se tornassem mais nacionais e mais ideológicos. O peso crescente de um eleitorado mais educado e desenraizado acabou por favorecer este processo de polarização, ainda acelerado pelo papel das redes sociais no debate político.

Ora, se podemos elogiar a defesa de maior coerência ideológica nos partidos políticos, devemos também constatar que essa mudança levou a que os dois grandes partidos históricos norte-americanos extremassem posições, o que dificultou consensos e tornou mais difícil fazer mudanças políticas importantes. O culminar desta tendência deu força a um dado fundamental que alimentou Trump: a polarização negativa, a demonização que leva a que se considere que o outro partido não tem apenas más políticas, mas é composto de pessoas más e moralmente corruptas.

A transformação de Trump em celebridade televisiva culminou no enorme êxito do "The Apprentice". Aqui, as diferenças culturais com a Europa são importantes. Nos EUA, ser rico não é um problema na captação de votos. Trump poderá até ter exagerado a sua riqueza para aumentar o seu prestígio, o que é o inverso do que se faria na Europa para se ter uma carreira política de sucesso.

Isto leva-nos ao último dado estrutural que favoreceu a eleição de Trump em 2016: o Colégio Eleitoral e os seus problemas crescentes. A sua criação foi, ela própria, um exemplo da política de amplo compromisso que dominou grande parte da história política americana. O objetivo foi combinar a legitimidade popular e estadual, garantindo que o Presidente era escolhido por uma ampla maioria em todas as principais regiões dos EUA. Mas porque é que o Colégio Eleitoral já não serviria hoje o seu propósito, se o cumpriu durante mais de dois séculos? O problema que ajuda a explicar a eleição de Trump em 2016 (apesar de ter perdido no voto popular nacional) é a crescente urbanização dos EUA, como no resto do mundo, combinada com a crescente transformação do Partido Democrático num partido sobretudo urbano. Na primeira eleição presidencial, em 1790, o estado mais populoso tinha 12 vezes mais gente do que o estado menos populoso. Em 2020, a Califórnia, com 39 milhões de habitantes, tem 65 vezes a população do Wyoming, com 600 mil habitantes. O resultado desta mudança demográfica é que, nos primeiros 200 anos dos EUA, o vencedor do voto popular apenas três vezes perdeu a eleição; nos 20 anos desde 2000 isso já aconteceu em duas eleições presidenciais (2000 e 2016) e esteve quase a repetir-se em 2020. Hoje, o sistema do Colégio Eleitoral tornou-se mais uma vítima da polarização extrema e do fim da conceção dos partidos como amplas coligações nacionais, o que acabou por beneficiar Trump. O problema é que o Presidente dos EUA está habituado a reclamar a sua legitimidade política como resultado de ter sido o escolhido pela maioria do povo norte-americano, e não da maioria dos estados.

Trump a caminho da Casa Branca

Na minha primeira visita a Nova Iorque, em 2000, passei pela Trump Tower, em Midtown, um inconfundível arranha-céus dourado. Foi aí que Trump anunciou, em 2015, a sua candidatura à presidência dos EUA. Em 2000, Donald Trump era ainda apenas uma celebridade, mas, talvez sem o saber, começava já a lançar as bases da sua futura carreira política. Porém, nesses anos, se se falava de uma candidatura presidencial de Trump era apenas como uma piada. O que nos recorda de como é arriscado o negócio das previsões sobre a política norte-americana. Trump tinha efetivamente passado por dificuldades sérias devido à sua aposta ruinosa no negócio do jogo, sofrendo uma série de bancarrotas. Conseguiu sobreviver graças às generosas leis de falência norte-americanas e à sua aposta em transformar a notoriedade do seu nome numa marca. A sua transformação em celebridade televisiva culminou, a partir de 2004, no enorme êxito de audiências do The Apprentice.

Neste ponto, as diferenças culturais com a Europa são importantes. Nos EUA, ser rico não é um problema na captação de votos. Trump poderá até ter exagerado a sua riqueza para aumentar o seu prestígio, o que é o inverso do que se faria na Europa para se ter uma carreira política de sucesso. E, apesar de ter herdado a maior parte do seu dinheiro, Trump também apostou em apresentar-se como uma reencarnação desse ícone da cultura norte-americana, o self-made man, o indivíduo empreendedor que conquistou a sua fortuna.

O ano de 2001 trouxe um outro dado fundamental para responder à questão central do que tornou possível a ascensão de Trump. Ela teve como palco não os EUA, mas a Suíça, a sede da Organização Mundial de Comércio (OMC). Falamos da adesão da China como membro de pleno direito da OMC. Uma decisão que foi tomada longe dos EUA, mas que, evidentemente, apenas foi possível com o acordo dos líderes norte-americanos, e com o forte apoio das principais empresas norte-americanas, um mercado vastíssimo e uma fonte de mão-de-obra muito barata. Já Trump destacou-se porque vinha denunciando violentamente, já desde a década de 1980, a abertura crescente dos EUA a bens importados. Uma primeira obsessão sua foi o Japão, depois a Alemanha, mas a China foi-se tornando o seu alvo principal.

A China tornou-se na maior potência industrial do mundo e começou a ameaçar a preeminência global dos EUA. A sua explosão ajudou a arruinar muitas empresas menos competitivas do Ocidente, onde o desemprego se instalou em certas regiões industriais e criou uma das bases de votantes cruciais para Trump alcançar a presidência em 2016.

Na época, a adesão da China à OMC foi vista nos EUA, mas também na Europa, como mais um sinal de que o velho país comunista de Mao Zedong iria querer convergir cada vez mais com o Ocidente liberal e capitalista. Na verdade, isso não aconteceu. Os líderes do Partido Comunista Chinês estavam determinados a não repetir o que consideravam ser os erros dos seus colegas do Partido Comunista Soviético, nomeadamente, as excessivas cedências ao Ocidente. Optaram, por isso, por uma abertura muito controlada do seu mercado, enquanto lucravam com os mercados bem mais liberalizados do Ocidente. E apostaram no leninismo de mercado: empresas privadas sim, mas desde que fossem leais servidoras do Estado chinês. A extraordinária expansão económica chinesa nas duas décadas seguintes por via desta abertura ao mercado mundial não só transformou a China na maior potência industrial do mundo, como começou a ameaçar a preeminência global dos EUA. Sobretudo, esta explosão da indústria exportadora da China, ajudando a arruinar muitas empresas menos competitivas do Ocidente, onde o desemprego em massa se instalou em certas regiões industriais, criou uma das bases de votantes cruciais para Trump alcançar a presidência em 2016.

Mas será que a hiperglobalização económica liderada cada vez mais pela China a partir de 2000 é suficiente para explicar a ascensão de Trump à presidência em 2016? Não é. Como vimos, na origem disso esteve também a transformação do sistema partidário nos EUA, que enfraqueceu o peso das elites e dos aparelhos partidários sem reduzir em nada o imperativo do bipartidarismo num sistema de círculos uninominais. E há ainda outros elementos contingentes que foram fundamentais em abrir o caminho a Trump: a grande depressão resultante da crise económico-financeira de 2008, o facto de ser Hillary Clinton a candidata democrática e a transformação do panorama dos media norte-americanos.

A crise financeira de 2008, que levou a uma depressão numa escala nunca vista desde a Grande Depressão de 1929, veio agravar dois fatores fundamentais que Trump soube mobilizar na sua campanha de 2016. O desespero económico de uma percentagem crescente da população, cuja situação se tinha vindo a degradar. E o descrédito das elites educadas e urbanas. Sabemos que grandes depressões económicas como a de 1929 ou de 2008, ao criarem crises muito mais profundas do que as recessões económicas vulgares, aumentam significativamente o número daqueles que pensam que não têm nada a perder. As pessoas exigem mais explicações e desconfiam das que são dadas pelos mesmo especialistas, pelas mesmas elites que antes lhes tinham dito que os mercados e os bancos eram de confiar. Neste contexto, é fácil perceber que, depois de anos de prolongadas dificuldades económicas, surjam candidatos a líderes do exterior do “sistema”, que pretendem oferecer bodes expiatórios sob a forma de estrangeiros e elites cosmopolitas e soluções simples a eleitores desesperados.

É verdade que Obama, através de uma task force liderada por Biden, tinha feito muito pela recuperação económica dos EUA. No entanto, a recuperação da economia demorou a ter impacto na redução do desemprego e, sobretudo, nos salários dos trabalhadores menos qualificados. Esta é uma tendência que se vem acentuando nesta era de hiperglobalização e crescente inovação tecnológica, que aumentam a produtividade e os lucros mais do que o emprego ou os salários. As expectativas criadas por Obama foram, por isso, pelo menos em parte, frustradas.

E se o racismo e o sexismo não explicam tudo na América, e também não explicam totalmente Trump, a verdade é que este também se tinha destacado pela promoção de preconceitos e falsidades várias, nomeadamente a afirmação de que Barack Obama não tinha nascido nos EUA, mesmo depois de o ter provado. Ou ainda quando pediu a pena de morte para jovens afro-americanos que tinham sido falsamente acusados de um crime no Central Park.

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Hillary era vista como o exemplo paradigmático das elites urbanas educadas e enriquecidas que se tinham tornado um alvo de eleição das frustrações da América mais rural, mais pobre, que se sentia deixada para trás. O discurso desastroso de Hillary que qualificou muitos eleitores de Trump como “pessoas deploráveis” veio confirmar as desconfianças desse eleitorado.

Trump também foi ajudado pelo facto de Hillary Clinton, a candidata presidencial do Partido Democrático, ter-se tornado numa das figuras mais polarizadoras da política norte-americana. Isso poderá ter sido, em parte, o resultado de Hillary ser uma mulher com uma personalidade forte. Em parte, era certamente a expressão da extrema polarização partidária estrutural que temos vindo a descrever. Mas também resultava de Hillary ser vista como o exemplo paradigmático das elites urbanas altamente educadas e enriquecidas que se tinham tornado um alvo de eleição das frustrações da América mais rural, mais pobre, que se sentia deixada para trás e marginalizada. O discurso desastroso de Hillary que qualificou muitos eleitores de Trump como “pessoas deploráveis” veio confirmar as desconfianças desse eleitorado: o Partido Democrático tinha deixado de ser o partido histórico dos trabalhadores, para ser um partido de minorias étnicas e de elites urbanas, obcecado com o “politicamente correto”. Em zonas industriais tradicionais em crise na Pensilvânia ou no Michigan, muitos homens brancos sindicalizados decidiram que não podiam esperar mais nada da sua opção tradicional pelo Partido Democrático. Esses eleitores vieram a revelar-se decisivos para ajudar a eleger Donald Trump em 2016, e foram pelo menos alguns deles que Biden procurou recuperar em 2020.

Um último dado fundamental que explica a ascensão de Trump é a transformação dos media nos EUA nas últimas décadas. Aqui, a combinação vencedora para Trump foi a emergência da Fox News – como o canal de televisão mais visto nos EUA e muito alinhado com a direita republicana – com a utilização de novos media, como o Twitter, que lhe permitia comunicar diretamente com o eleitorado, ultrapassando a imprensa nacional dita de referência. Mais: Trump passou anos a insistir que toda a imprensa que ele considerava hostil consistiria apenas de fake news, e que só ele, através do Twitter ou da Fox News, falava a verdade.

Se quisermos perceber melhor a lógica da extraordinária militância quase cega que tornou possível a vitória de Trump, temos de perceber a lógica da sua famosa afirmação: “Eu posso disparar contra alguém no meio da 5.ª Avenida e, ainda assim, não perco votos”. Esta lógica é essencialmente o resultado da fórmula: hiperpolarização bipartidária + política mais identitária + desprezo pelas elites + desespero económico + novos media.

Trump na Casa Branca: um populista no poder

O que é que distingue Trump como Presidente? A resposta é a de que foi um Presidente completamente populista. O conceito de populismo é útil para definir um estilo de fazer política em que um ator de esquerda ou de direita se apresenta como campeão do povo bom e verdadeiro face a elites e instituições corruptas. E sempre houve fortes elementos de populismo na cultura política norte-americana. Isso mesmo demonstra um dos meus historiadores norte-americanos preferidos, Richard Hofstadter, que identificou em textos clássicos, como O Anti-Intelectualismo na Vivência Norte-Americana, a importância do que designou de “Estilo Paranóico na Política Norte-Americana” no populismo de direita e de esquerda.  São tipicamente os políticos que vêm de fora do círculo do poder que jogam mais fortemente a cartada de uma retórica populista, nomeadamente, nas eleições presidenciais. Hofstadter refere-se, por exemplo, ao senador Barry Goldwater, cuja campanha presidencial, em 1964, foi o primeiro sinal de uma viragem ideológica à direita do Partido Republicano, e que a sua derrota estrondosa adiou, mas não anulou. Bill Clinton, em 1992, então o governador de um estado pequeno e pobre, o Arkansas, um estranho em Washington D.C., levou a cabo uma campanha populista contra o algo aristocrático, mas muito competente e moderado presidente republicano George H. Bush. Mesmo Barack Obama incorporou elementos populistas na sua campanha: nas primárias contra Hillary Clinton; e, depois, contra Mitt Romney, o milionário mórmon e candidato republicano moderado. O que, aliás, torna menos paradoxal que tenha havido estados e círculos eleitorais onde Obama ganhou e onde Trump ganhou, algo mais difícil de explicar pelos analistas que olham apenas para a questão do racismo.

Mas, então, porquê insistir nesta questão do populismo como algo específico e definidor da presidência de Trump? O que fundamentalmente distinguiu Trump foi ele ter sido um populista não apenas no seu caminho para a presidência, mas também nos quatro anos em que esteve instalado na Casa Branca. É precisamente por isso ser tão inédito na história norte-americana contemporânea que tanta gente, em 2016, nos avisou para não levarmos Trump tão literalmente a sério. Era evidente, diziam-nos, que ele iria fazer como tantos outros candidatos com uma retórica populista. Uma vez eleito Presidente, iria moderar a sua postura e tornar-se um líder nacional responsável. O peso das instituições e dos “adultos na sala” iriam também conter alguns eventuais excessos de Trump.

Fui sempre cético sobre esta tese. Parecia-me que alguém como Trump, sem qualquer experiência política ou lealdade partidária, dificilmente se iria comportar como outros políticos normais o tinham feito. E havia ainda a questão da personalidade de Trump. Sem prejuízo de análises freudianas, a que, aliás, a própria sobrinha do Presidente, Mary Trump, se dedicou num livro publicado há alguns meses, parecia-me pouco provável que um milionário que sempre se habituou a fazer o que lhe apetecia durante toda sua vida fosse mudar radicalmente de postura, sobretudo, depois de ter alcançado uma vitória eleitoral.

O que caraterizou Donald Trump como um Presidente norte-americano eminentemente populista? Uma obsessão por dar troco às elites que o tinham desprezado durante décadas. Os seus alvos prediletos foram o Presidente Barack Obama e os media. Além, disso, foi um Presidente em conflito permanente com o seu próprio governo e com as instituições do Estado.

Mais: o Presidente dos EUA tem poderes limitados pelo Congresso no que diz respeito à legislação e a algumas nomeações mais importantes. Mas, como chefe do executivo, o Presidente tem grande poder sobre toda a máquina da governação. Em áreas em que Trump não tinha uma ideia clara ou um interesse permanente, muitas coisas continuaram como habitualmente. Porém, naquelas áreas em que Trump realmente queria mudanças, acabou por as impor. Foi assim, por exemplo, com a retirada das tropas norte-americanas da Síria, sem qualquer aviso prévio a aliados locais ou europeus. Isso levou à demissão do responsável da pasta da Defesa, Jim Mattis, um dos “adultos” que era suposto controlar Trump. E ninguém impediu Trump de dizer, numa entrevista, em 2018, que a União Europeia era um “inimigo” comercial dos EUA, como a China. Apesar de resistências várias no interior do seu governo, acabou por desencadear uma guerra comercial não só com a China, mas também com a Europa. Impôs tarifas às siderurgias europeias por razões de “segurança nacional”, apesar de vários ministros terem argumentado contra a decisão, e mais contra essa justificação.

Em suma, o que caraterizou, Trump como um Presidente eminentemente populista? Uma obsessão por dar troco às elites que o tinham desprezado durante década. Os seus alvos prediletos foram o Presidente Obama e os media. Foi um Presidente em conflito permanente com o seu próprio governo e com as instituições do Estado. Por exemplo, demitiu dois diretores do FBI. Para perceber o que isto significou, podemos ler os livros de Bob Woodward – Raiva e Medo – com centenas de testemunhos da maioria das pessoas que trabalharam na Casa Branca de Trump, inclusive o próprio Presidente. Ou, ainda, o livro testemunhal de John Bolton, que foi seu Conselheiro de Segurança Nacional. É verdade que este tipo de livros é a continuação da política por outros meios, mas há demasiados episódios, relatados por várias fontes, que parecem demasiado incríveis para serem inventados.

Trump não parece ter tido real interesse em governar. Tinha grande interesse no teatro da política, nomeadamente na comunicação política de medidas com muito impacto mediático, da construção do muro com o México até à guerra comercial com a China. Dito isto, os analistas tendem a subestimar o impacto de políticos populistas. Eles podem ser erráticos e resultar em políticas de qualidade duvidosa, mas não são necessariamente irrelevantes. Da política de imigração até à tensão com a China ou ao combate à pandemia, algum impacto Donald Trump teve, positivo ou negativo. E se a pandemia foi um desafio mortal para governos em toda a parte do mundo, o custo de uma presidência caótica, que promoveu ativamente notícias enganosas sobre a Covid-19, contribuiu alguma coisa para os mais de 200 mil mortos nos EUA. A postura de Trump face à pandemia de Covid-19 e ao processo eleitoral de 2020 é mais uma expressão deste facto central da sua presidência: a guerra permanente com as instituições e as normas tradicionais da política americana.

Trump também deixou claro desde o início que nunca aceitaria que pudesse perder uma eleição. Não lhe interessava o facto de nunca nenhum candidato, e menos ainda um Presidente, ter posto em questão o escrutínio eleitoral, nem mesmo quando o perdedor podia até ter razões para o fazer: veja-se Richard Nixon em 1960, ou Al Gore em 2000.  Não lhe interessa a importância da legitimidade das eleições para uma transição pacífica do poder ou para o prestígio externo dos EUA. Para Trump, o que importa é ele ser sempre vitorioso no Twitter. O que nos leva ao item final da nossa agenda: Trump tem futuro depois de 2020?

Aberração ou transformação: depois de Trump há Trumpismo?

Neste momento a derrota eleitoral de Trump é vista como um dado seguro, mas convém recordar que ficou longe de ser um fracasso esmagador. Mais: o Partido Republicano poderá manter o controlo do Senado e aumentou a sua bancada na Câmara dos Representantes. Foi uma vitória da visão mais moderada da política norte-americana de Biden, mas esteve longe de ser um triunfo claro e inequívoco dos democratas Houve uma grande mobilização contra Trump, mas também houve uma grande mobilização por Trump. Biden foi o candidato com mais votos na história dos EUA, mas Trump foi o segundo candidato com mais votos na história política dos EUA. E as razões para isso parecem ser evidentes: os dados estruturais a que me fui referindo, e mesmo muitos dos dados mais contigentes que tornaram um Presidente Trump possível, que alimentaram a polarização extrema que o levou à Casa Branca e que ele continuamente alimentou, continuam a estar presentes. Veremos se Biden, um veterano de décadas de Washington D.C., terá algum sucesso na sua oferta de uma política mais normal e do regresso a um maior compromisso. Mas há razões para sermos algo céticos. Até porque se neste texto nos focámos em Trump e no Partido Republicano, há também no Partido Democrático elementos radicais, promotores de uma política identitária que também alimenta esta polarização e que rejeitam orgulhosamente qualquer compromisso com o outro lado.

Donald Trump Holds "MAGA" Rally In Central Pennsylvania
Creio que o mais provável é os republicanos tentarem canalizar alguma da energia do Trumpismo, mas reduzindo a influência de Trump e dos seus aspetos mais extremos e imprevisíveis. Mas neste momento não podemos saber como irão decorrer a transição quanto mais as eleições intercalares de 2022 ou quem será o candidato republicano em 2024. E isso fará muita diferença.

Significa isto que o Partido Republicano passará a ser o Partido de Trump? É cedo para o dizer de forma taxativa. Em 2012, o Partido Republicano escolheu um moderado, Mitt Romney, e, depois da sua derrota por Obama, apontou para a estratégia de procurar ser um partido mais inclusivo e moderado. Ora, em 2016, contra todas as previsões, apresentou um candidato e elegeu um Presidente que foi o oposto de tudo isso. Apesar de tudo, Trump perdeu a reeleição, o que é um falhanço para qualquer Presidente. Também não tem propriamente o perfil de líder partidário institucional. Mais depressa poderia liderar um novo canal de media ainda mais polarizador do que a Fox News. E tudo indica que Trump quererá continuar a usar o Twitter para manter alguma influência sobre os seus apoiantes e o partido. E há quem na família Trump sonhe com uma carreira política partidária, e os EUA têm uma paradoxal tradição de dinastias políticas. Há ainda Mike Pence e outras figuras republicanas que abraçaram alguns aspetos do Trumpismo. Creio que o mais provável é os republicanos tentarem canalizar alguma da energia do Trumpismo, mas reduzindo a influência de Trump e dos seus aspetos mais extremos e imprevisíveis. Mas neste momento não podemos saber como irão decorrer a transição presidencial quanto mais as eleições intercalares de 2022 ou quem será o candidato dos republicanos em 2024. E isso fará muita diferença.

Tudo indica que será, em todo o caso, difícil reverter a força destas dinâmicas de polarização negativa e de política hiper-identitária. Grandes mudanças no sistema constitucional não são, como vimos, uma possibilidade realista. Também dificilmente será possível, ou até desejável, voltar atrás no tempo no sentido de voltar a dar o controlo dos partidos às elites do aparelho. Especula-se sobre a possibilidade de passarem a existir primárias e até eleições mais abertas, com vários candidatos e a possibilidade de os votantes escolherem o seu favorito, o que facilitaria a vida aos moderados e não exigiria uma revisão constitucional. Uma recusa de uma política identitária muito racializada e a aposta numa narrativa mais inclusiva é um bom primeiro passo por Biden, até para responder aos problemas que ainda existem de discriminação e pobreza, relativamente às minorias, mas também a muitos brancos pobres e marginalizados. Uma capacidade de resposta ao nível da recuperação económica, com grandes projetos de infraestruturas inteligentes, podem, talvez, ajudar a reduzir a insatisfação dos que se sentem excluídos do sistema. E uma postura mais moderada do Presidente e das lideranças dos dois grandes partidos pode ajudar pelo menos a reduzir o clima de confronto. Mas parece-me, ainda assim, difícil quebrar o círculo vicioso da hiperpolarização partidária.

Quanto ao melhor epitáfio para estes quatro anos de Donald Trump, creio que ele cabe ao antigo reponsável da Defesa de Trump, o já referido General Mattis. Ele referiu-se ao seu antigo patrão como “o primeiro Presidente dos EUA que conheci que nem sequer tenta unir os norte-americanos”. Trump abraçou realmente o lado mais divisionista da política norte-americana. Mas importa lembrar que a extrema polarização política nos EUA não começou com Trump, e provavelmente não irá acabar com ele.

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