Quando chegou o momento de falar, pediu à juíza para que o marido saísse da sala de audiências. Mas, afinal, esta mulher não queria recordar os anos em que foi vítima de violência doméstica: queria apenas explicar que o seu marido tinha um problema de álcool, que devia ser tratado e não ir preso. E não foi a primeira a fazê-lo. Histórias como esta vão se acumulando ao longo dos anos na carreia dos juízes. “Muitas e muitas vezes, nos crimes de violência doméstica, tenho de atuar contra a vontade da vítima“, afirma a juíza Sofia Wengorovius, em conversa com o Observador. E foi isso que aconteceu. O arguido à sua frente tinha agredido a mulher com um machado e, por isso, não teve dúvidas em aplicar-lhe uma pena de prisão efetiva. E, desta forma, tentar evitar um desfecho trágico.
Só que, quando se apercebeu de que o marido ia preso, a vítima quis fazer uma pergunta diretamente à juíza: “Quem é a senhora doutora para me tirar o homem de casa?”. E explicou-lhe: “O homem não é grande coisa, mas é o marido que eu tenho e é o pai dos meus filhos”. A decisão de o prender manteve-se. “É mesmo isso que tem de ser explicado aos juízes nas formações, até os juízes mais novos: aquilo que não está nos livros de direito, a parte psicológica disto. Isto é um crime muito diferente, estas vítimas são diferentes”, conta Sofia Wengorovius, que é também adjunta do Gabinete de Apoio ao Vice-Presidente e aos Membros do Conselho Superior da Magistratura (CSM).
Casos como este vêm-lhe à memória à medida que vai falando com o Observador: “Já tive uma vítima que viu uma bala passar-lhe junto à cabeça e à noite estava na Polícia Judiciária a levar a comida ao marido, com receio de que não fosse bem tratado”. “Isto ultrapassa-nos completamente. Temos de pensar isto de outra maneira”, afirma. É por isso que a magistrada defende a necessidade de “ir contra a vontade que a vítima está a manifestar ao estar calada” para chegar a uma condenação. “É preciso sensibilizar os juízes para que, mesmo com esta postura da vítima, mesmo estando até a viver novamente com o arguido, haja uma valoração do resto da prova”, argumenta, atirando: “Isto é uma questão de direitos humanos. Transcende a relação daqueles dois”.
Porque não quer que o pai ou mãe dos filhos vá preso. Ou porque a vítima depende do seu agressor e não tem para onde ir se tiver de sair de casa. Ou ainda porque o casal já ultrapassou aquilo que foi um mau divórcio e até tem agora uma boa relação. As razões são muitas para uma vítima de violência doméstica ficar em silêncio num tribunal ou falar apenas para pedir ao juiz que não o prenda ou condene. Só que o silêncio das vítimas pode muitas vezes traduzir-se na absolvição do agressor.
Foi esta, aliás, uma das conclusões a que o Observatório Judicial da Violência de Género e Doméstica do CSM chegou num estudo que levou a cabo sobre o crime de violência doméstica. Durante vários meses, os mais de 30 responsáveis ligados à Justiça que compõem este observatório estudaram 100 sentenças de julgamentos de casos violência doméstica de duas comarcas piloto: Braga e Setúbal — por terem um tecido misto de população rural e urbana e devido aos níveis preocupantes de violência doméstica ali.
Todas as sentenças foram anonimizadas: nomes de vítimas, agressores, testemunhas e até dos juízes foram ocultados. “O objetivo não era avaliar o trabalho dos juízes. O que se pretendia era ver quais eram as temáticas mais sensíveis, mais subjetivas, mais polémicas”, explicou uma das magistradas do Observatório. E, depois, chegar a uma conclusão sobre quais delas deveriam ser abordadas nas ações de formação dadas aos juízes pelo Centro de Estudos Judiciários — que estão atualmente a decorrer.
Das 100 sentenças estudadas, cerca de 50% eram absolvições. Depois, em mais de 25% dos casos era aplicada pena de prisão suspensa, ainda que com imposições para os arguidos, designadamente a obrigação de se sujeitarem a tratamento. Números que o Observatório Judicial da Violência de Género e Doméstica do CSM quis perceber.
“Um juiz não pode dizer à vitima que, se ficar em silêncio, a probabilidade do arguido ser absolvido é maior”. Esse trabalho deve ser feito, mas não pelo tribunal
Sem que a vítima conte o que se passou, os juízes acabam muitas vezes por ficar sem outra forma de provar o crime e condenar alguém por ele. “O juiz fica sem prova. Mesmo que quisesse condenar e estivesse convicto de que aqueles factos pudessem ser verdadeiros, não tinha prova em julgamento”, explica ao Observador uma magistrada do Observatório, acrescentando: “São crimes praticados no meio familiar, onde a prova testemunhal é muito difícil de existir”.
Mas também é verdade que há, noutros casos, um “predomínio muito grande da importância dada às declarações da vítima”. “Se calhar podia existir outro tipo de meios de prova que pudessem levar a uma conclusão diferente”, aponta a mesma magistrada, exemplificando: relatórios periciais ou audição de testemunhas, como vizinhos que ouviam os discussões entre o casal ou polícias que vão à ocorrência. “A vítima cala-se no julgamento. O juiz comunica à vítima que, atenta à relação especial com arguido, pode remeter-se ao silêncio e a vítima invariavelmente diz: ‘Eu não quero falar’. E nós ficamos com o quê?”
Ressaltando que esta “problemática não é exclusiva da violência doméstica”, a magistrada envolvida no estudo defende que, nestes casos, “o papel do juiz é muito ingrato”. E justifica: “Um juiz não pode dizer à vitima que, se ficar em silêncio, a probabilidade do arguido ser absolvido é maior. Pode ser entendido como eu estar a motivar a vítima a falar. Não posso motivar. Só tenho de a informar que pode usar do seu direito ao silêncio. A decisão é da vítima”. Mesmo que a vítima tenha prestado declarações na fase de inquérito, se decidir usar o seu direito ao silêncio, essas declarações não podem ser consideradas pelo juiz.
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O facto de haver tantas absolvições está também relacionado “com o sistema processual penal garantístico que defende as garantias do arguido”. “Desde logo, o princípio da presunção de inocência: é o Ministério Público que tem de fazer prova de que o arguido cometeu o crime e não o arguido provar que não o cometeu”, diz a juíza, acrescentando: “Enquanto o sistema estiver feito como está, é natural que haja um elevado número de absolvições“.
Então, o que pode mudar? “Há um papel muito importante que não pode ser desempenhado pelo juiz e que tem de ser feito pela sociedade”, começa por responder. Desde logo, “toda uma preparação da vítima” que pode ser feita por assistentes sociais “no sentido da sua autonomia”. E que, “se calhar, pode levar a que esta vítima tenha uma atitude diferente em julgamento”. Só que “esse trabalho não pode ser feito pelo tribunal”, aponta a magistrada do Observatório da Violência Doméstica.
A vítima deve, também para a juíza Sofia Wengorovius, ter um “acompanhamento do início até ao fim do julgamento”. “Aquelas vítimas estão a falar da sua intimidade, numa sala de julgamento, com toda aquela formalidade, sabendo as consequências que as suas palavras podem ter relativamente à pessoa com quem partilhou ou partilha a vida”, explica, acrescentando que “este ciclo de violência em que há toda uma dependência emocional é muito difícil de cortar”. “Uma sentença sozinha não consegue”, remata.
“Antigamente era muito fácil dizer: ‘Aplico esta pena de prisão’.” Alteração da lei tornou esse trabalho “mais complicado”
A razão para haver tantas condenações com penas de prisão suspensas, em detrimento das efetivas, pode estar relacionada com alterações feitas à lei em 2007. Essa alteração veio fazer com que o juiz tivesse de fundamentar mais a sua decisão quando aplicava uma pena de prisão efetiva. “Antigamente, era o juiz que tinha de fundamentar quando queria suspender. O paradigma mudou: agora é o juiz que tem que fundamentar quando não quer suspender”, explica ao Observador um magistrada do Observatório, acrescentando: “Antigamente era muito fácil dizer: ‘Aplico esta pena prisão’. Agora, além de ter de fundamentar por que é que se aplica uma pena de prisão, também tem de se fundamentar por que é que não a suspende“.
Isto é, na própria sentença, quando o juiz aplica uma pena efetiva tem de fundamentar por que é que não a suspendeu: “Tem de dizer: é previsível que este arguido, com estas condições, nesta situação, venha a cometer outros crimes; os motivos de prevenção geral na sociedade são muito grandes neste tipo de crimes e os específicos deste arguido ainda mais porque continua a ter um litígio com a vítima, continua a persegui-la porque continua a ter uma relação com ela através dos filhos”, exemplifica a magistrada, rematando: “Só assim é que se consegue não suspender. Para o juiz, a alteração tornou o trabalho mais complicado“.
Só que o arguidos deste tipo de crimes estão integrados socialmente e normalmente não têm antecedentes criminais. “É difícil para o juiz fundamentar a não suspensão da pena de prisão“, afirma a mesma juíza. “Se for uma pessoa já com antecedentes, o juiz pode dizer que, manifestamente, a oportunidade dada não foi suficiente para tomar consciência da gravidade do crime e que não há outra pena que não o cumprimento efetivo da pena. Aí é mais fácil”, explica a juíza Sofia Wengorovius, que fez recentemente uma intervenção no Parlamento num ciclo de debates sobre a violência contra mulheres em tempo de Covid-19.
Covid-19. Para as vítimas de violência doméstica a casa foi tudo menos um lugar seguro
Na grande maioria das sentenças estudadas pelo Observatório Judicial da Violência de Género e Doméstica do CSM em que era aplicada pena de prisão suspensa, este era o principal problema: o juiz não tinha como fundamentar uma condenação com pena de prisão efetiva. “Aí, o que o juiz fazia era impor condições de tratamento que, quando violadas pelo arguido, podem levar à revogação da suspensão e tem de cumprir prisão”.
Mas, alerta a juíza Sofia Wengorovius, “ainda que suspensa, é uma pena de prisão”. “Era muito importante que os arguidos interiorizassem isso”, afirma. Só que, tal como defende um acompanhamento para as vítimas, também defende para os agressor: “É preciso haver meios — e aí é que tem de haver um grande investimento — para acompanhamento do agressor, haver mais atenção, mais intervenção”. E dá um exemplo: “Muitas vezes, coloca-se a medida de afastamento do agressor, mas depois ele não tem para onde ir. Se não tiver para onde ir, vai para onde? Bater à porta da vítima”. E a vítima abre-lhe a porta: seja por causa da dependência que tem dele ou por medo.