O discurso de Volodymyr Zelensky

na Assembleia da República

Ontem, na cidade de Borodyanka, perto da nossa capital, foram encontradas mais duas sepulturas de civis mortos pelos ocupantes russos. Numa dessas sepulturas encontram-se os corpos de dois homens de 35 anos e de uma rapariga de 15 anos. Na segunda sepultura há seis pessoas: quatro homens e duas mulheres. Foram mortos quando as tropas russas tomaram controlo de Borodyanka. Os corpos foram enterrados no meio da cidade, perto de casas comuns.

É uma das seis estratégias retóricas que o Presidente da Ucrânia utiliza sempre nas primeiras linhas das suas declarações oficiais: descrever, de modo por vezes gráfico, os acontecimentos que marcaram a guerra nas horas anteriores ao momento do discurso. Embora esta seja uma característica clássica da retórica política, Volodymyr Zelensky utiliza-a de modo único: o objetivo nunca é conquistar o público por meio da pena e da chantagem emocional (essa é a abordagem mais comum), mas semear uma sensação de urgência moral no público em apoiar a Ucrânia; e glorificar o país por resistir aos ataques da Rússia, apesar das constantes adversidades.

Os ocupantes russos já deportaram pelo menos 500 mil dos nossos cidadãos do território que ocuparam. É como duas vezes a cidade do Porto. Imaginem só isso. Havia pessoas — e agora elas desapareceram. Quinhentas mil pessoas! Isto é deportação. Foi o que fizeram os piores regimes totalitários do passado.

Ao utilizar a cidade do Porto como ponto de referência, Zelensky procura que os portugueses compreendam a dimensão das deportações de ucranianos por parte dos russos. Assim, criar empatia e aproximação entre os dois povos. É um truque retórico que cria desconforto no público ao obrigá-lo, embora inconscientemente, a colocar-se no lugar dos ucranianos e a aproximar-se emocionalmente deles. O governo ucraniano tem afirmado nos últimos dias que a Rússia terá deportado pelo menos meio milhão de ucranianos — um número ainda não confirmado por nenhuma organização independente. Vários media internacionais têm, porém, recolhido testemunhos de ucranianos que dizem ter sido enviados para “campos de filtragem”, onde terão sido obrigados e entregar a sua identificação e bens pessoais e interrogados.

Os ucranianos deportados são privados de meios de comunicação, é-lhes retirado tudo, até documentos. São distribuídos para as regiões remotas da Rússia. Os ocupantes montaram campos especiais de filtragem para distribuir as pessoas. Alguns dos que chegam lá são simplesmente mortos. As meninas são violadas. Imaginem como é quando uma rapariga escapa de um campo de filtragem russo e, quando questionada sobre como ela fez isso, ela diz que os soldados russos simplesmente não gostavam dela. Porque se eles gostassem dela, ela teria sido violada e depois morta, como muitos outros.

O termo “campos de filtragem” evoca os campos de detenção usados pela Rússia durante as duas guerras da Chechénia, onde a tortura, violações sexuais e execuções eram frequentes. Os testemunhos ouvidos pelos media dão conta de que, neste caso, os ucranianos terão sido levados para o país contra a sua vontade e falam também em momentos de “inferno” nesses campos. A Rússia nega que esteja a deportar ucranianos — o que, por sinal, é proibido pela Convenção de Genebra em territórios ocupados. Contudo, agências de notícias russas têm dado conta da chegada de centenas de ucranianos ao país, vindas de Mariupol. Moscovo identifica estes ucranianos como “refugiados”, confirmando que mais de 400 mil pessoas saíram “voluntariamente” da região do Donbass com destino à Rússia, mas classifica os relatos de Mariupol e dos “campos de filtragem” como “mentiras”.

Mais de 10 milhões de ucranianos foram forçados a fugir das suas casas devido às hostilidades. Imaginem esse número. É como se Portugal inteiro fosse obrigado a fugir! Não quero chamar esses 10 milhões ucranianos de refugiados. Usamos o termo “pessoas deslocadas” para nos referirmos a eles, a essas pessoas. Esperamos que todos possam voltar para casa quando for seguro. Mas quando será? E o que restará de sua casa?

Volodymyz Zelensky desafia novamente os portugueses a imaginarem o próprio país completamente evacuado à conta de uma invasão — mais uma vez uma abordagem retórica que procura criar empatia, estabelecer uma proximidade emocional e pessoal com quem o ouve. Zelensky fala ainda dos ucranianos que saíram do país e tiveram de procurar refúgio noutros lugares — em Portugal são já mais de 30 mil. O Presidente ucraniano, contudo, sublinha que não considera estas pessoas “refugiadas”, porque garante que é uma saída temporária e que em breve regressarão, embora não possa garantir quando. É também uma forma velada de sublinhar que a Ucrânia não está disposta a fazer cedências territoriais em qualquer possível acordo de paz: para Zelensky, o território deve manter-se integralmente ucraniano: “Que elas possam voltar em segurança” para a terra, “para a nossa Ucrânia”.

Hoje, o ministro da Defesa russo informou o líder russo sobre as hostilidades contra a nossa cidade de Mariupol. Todos vós já ouviram falar de Mariupol. Antes da guerra, era uma cidade comparável em tamanho a Lisboa. Era uma cidade no litoral com meio milhão de habitantes. Agora está completamente destruída. Não há um único edifício intacto em Mariupol. Uma cidade literalmente queimada.

A criação de empatia, em que Zelensky volta a investir ao comparar Mariupol — uma cidade-mártir e símbolo da resistência ucraniana na guerra — com a capital portuguesa foi um truque que o Presidente da Ucrânia repetiu mais do que uma vez nos discursos que proferiu nos Parlamentos de países com uma longa história de paz internacional, como a Suíça e o Canadá. A estratégia aqui é personalizar o discurso ao público-alvo, mas também transmitir a sensação de uma proximidade emocional à realidade ucraniana.

Dezenas de milhares de ucranianos morreram na cidade durante os ataques da Rússia contra Mariupol. Não sabemos sequer o número exato de mortos. E podemos nunca descobrir. Porque as tropas russas trouxeram para a cidade os chamados crematórios móveis — máquinas especiais para a destruição de corpos humanos. Os ocupantes tiraram conclusões sobre como o mundo reagiu ao massacre em Bucha. E agora os russos estão a tentar esconder os vestígios de crimes de guerra.

A referência aos crematórios móveis é sinal de uma nova marca no discurso que a Ucrânia tem tentado introduzir na opinião pública: a ideia de que poderemos não encontrar novas evidências de possíveis crimes de guerra russos, como em Bucha, porque as forças russas estarão “a tentar esconder os seus crimes de guerra” e a “eliminar provas”. Isso mesmo disse também esta quinta-feira o autarca de Mariupol, que denunciou transladações de cadáveres de Mariupol para uma vala comum na região de Donetsk, em Mangush. Essa vala foi captada por imagens de satélite da Maxar. Antes disso, o autarca também tinha garantido a presença dos crematórios móveis em Mariupol, mas ainda não são conhecidas imagens dos ditos crematórios móveis.

Quando nos voltamos para as nações do mundo livre em busca de ajuda, dizemos coisas simples e claras. Precisamos de armas para nos protegermos da brutal invasão russa, que trouxe ao nosso povo tanto mal quanto a invasão nazi trouxe há 80 anos.

Concretamente, o Governo português já enviou armamento letal para a Ucrânia em dois momentos. O primeiro, no valor entre os 8 e os 10 milhões de euros, partiu poucos dias a seguir ao início da invasão e incluía “material ofensivo como granadas, espingardas G3, munições”, e material defensivo, como material de comunicação ou óculos de visão noturna.  Já a 7 de abril, o ex-ministro da Defesa João Gomes Cravinho garantiu que Portugal iria responder aos apelos deixados por Kiev para fornecer “mais armamento e munições”. O ministro explicou que Portugal não tem “armas pesadas” que possa fornecer, mas assegurou que iria apoiar a entrega desse tipo de armamento por outros países europeus.

Tanques Leopard, veículos blindados de transporte de pessoal, mísseis antinavio Harpoon — vocês possuem-nos e podem ajudar a proteger a liberdade e a civilização da Europa com eles. Portanto, apelo ao vosso Estado para que nos forneçam essa assistência.

Nesta altura, Zelensky realiza o chamado “pedido impossível”. O chefe de Estado ucraniano sabe que não conseguirá conquistar todos os apelos que deixou no Parlamento português, mas também sabe que quanto mais pedir, maiores as hipóteses de atingir tanto ou mais do que ditam as suas expetativas mais realistas. O Presidente da Ucrânia entra assim em negociação com o Governo, mesmo que não o assuma diretamente.

Precisamos de uma maior pressão de sanções sobre a Rússia, porque apenas as sanções podem forçar a Rússia a procurar paz e a privar a máquina militar russa de recursos. Precisamos da posição de princípios das empresas europeias, para que todas saiam do mercado russo, porque os vossos impostos, os vossos impostos especiais de consumo, que pagam ao orçamento russo, apoiam este mal.

No que diz respeito à presença de empresas portuguesas em território russo, a situação não é neste momento clara. Segundo um levantamento realizado pelo Observador a 3 de abril, as informações da AICEP e das próprias empresas contradizem-se. De acordo com a AICEP, as principais empresas portuguesas presentes em território russo são a Corticeira Amorim (Amorim Cork Flooring); a Oli – Sistemas Sanitários, que produz autoclismos; a Porto Union, uma empresa portuguesa de distribuição para a Rússia que resulta de uma parceria entre vários produtores de bens agroalimentares de Portugal, como a Sovena, a Ramirez e a Sumol+Compal; a Sogrape Vinhos e a TAP. Contactadas pelo Observador, a Sogrape e a TAP garantem já não ter quaisquer vínculos. Já a Oli, por seu turno, confirma que suspendou os “projetos de investimento previstos”, mas mantém a sua fábrica, com cerca de 40 trabalhadores. As restantes empresas não responderam.

A Ucrânia foi e continua a ser o pilar dos processos democráticos na nossa região. As duas revoluções de 2004 e 2014, que detiveram a ditadura na Ucrânia, de facto defenderam a democracia não apenas para a nossa nação, mas também para todas as nações da nossa região que querem escolher livremente o futuro, sem qualquer coerção — interna e externa.

Quando se refere a “duas revoluções”, Zelensky fala de dois momentos fulcrais na História recente da Ucrânia: a chamada “Revolução Laranja”, em 2004, e a “EuroMaidan”, em 2014. Ambas se referem a momentos em que, através de demonstrações populares, a Ucrânia afastou um político próximo do Kremlin: Viktor Yanukovich. A primeira ocorreu depois das eleições presidenciais de 2004, em que Yanukovich foi declarado vencedor. Perante suspeitas fortes de fraude eleitoral, com a oposição liderada por Viktor Yuschenko (pró-UE e pró-NATO) a não reconhecer o resultado, milhares de ucranianos saíram à rua para protestar e exigir a repetição da eleição. Como resultado da pressão popular ao longo de dois meses, o Supremo Tribunal ucraniano acabou por decretar a repetição das eleições. Yanukovich acabou por ser derrotado. Em 2010, porém, Yanukovich venceu a eleição seguinte. Três anos depois, tomou uma decisão que levaria à segunda revolução mencionada por Zelensky, a EuroMaidan. Ao recuar na intenção de assinar um acordo comercial com a União Europeia, provocou novamente uma série de protestos nas ruas, particularmente concentrados na Praça Maidan, em Kiev. As manifestações foram severamente reprimidas pelas autoridades e resultaram em mais de 100 mortes. Em fevereiro de 2014, porém, Yanukovich acabou por ceder à pressão popular e fugiu para a Rússia. Esta invadiu a península da Crimeia no mês seguinte. Em abril, separatistas pró-russos declararam a independência de duas novas repúblicas (Donetsk e Lugansk), no leste do país — o que daria início a um conflito armado.

E o vosso povo, que em breve comemorará o aniversário da Revolução dos Cravos, que o libertou da ditadura, entende claramente os nossos sentimentos. Compreende exatamente os sentimentos de todas as outras nações da nossa região que procuram a liberdade.

Ao comparar claramente as duas revoluções ucranianas com o 25 de Abril, Zelensky quis aproximar os portugueses dos processos políticos recentes que a Ucrânia atravessou, tentando enquadrá-los como uma resistência “à ditadura” — neste caso “a ditadura” russa, que tentaria manter a sua influência sobre a Ucrânia através de um Presidente pró-russo, Yanukovich. Não por acaso, Zelensky também menciona estes movimentos a par dos “sentimentos de todas as outras nações da nossa região que procuram a liberdade”. A “Revolução Laranja” aconteceu pouco depois da “Revolução Rosa”, na Geórgia, em que manifestantes afastaram outro Presidente pró-russo, Eduard Shevardnadze.

O que a Rússia traz para a Ucrânia? Morte e ditadura. E depois da Ucrânia, tentará levar tudo isso para a Moldávia, Polónia, Geórgia, Estados Bálticos, Cazaquistão e todos os outros países que puder alcançar. A Rússia pode ser parada. Assassinatos em massa, deportação e ditadura podem ser interrompidos. Agora, na Ucrânia.

Esta passagem do discurso de Zelensky é uma referência a um dos discursos históricos que o chefe de Estado já tinha citado diretamente quando se dirigiu ao Parlamento polaco: o de Lech Kaczynski, antigo presidente da Polónia, a 12 de agosto de 2008, durante a invasão da Geórgia pela Rússia. À época, ainda em funções, Kaczynski disse: “Sabemos muito bem: hoje, a Geórgia; amanhã, a Ucrânia; depois de amanhã os países do Báltico. E depois, talvez, vai chegar a vez do meu país, a Polónia”. Volodymyr Zelensky não utiliza a mesma mensagem, nem sequer exatamente a mesma formulação frásica, que o discurso de Kaczynski. Mas recupera o espírito desse discurso para estabelecer o que está verdadeiramente em jogo quando a Ucrânia é invadida pela Rússia: é que a guerra em território ucraniano pode disseminar-se geograficamente. Travá-la na Ucrânia é evitar que entre Europa dentro. Além disso, estas referências resultam porque Zelensky, enquanto orador, fica assim equiparado ao autor de um dos discursos mais populares da História do mundo. Como dizia Oscar Wilde, “a imitação é a forma mais sincera de elogio”. Portugal tem reagido a este apelo sempre no quadro da NATO. Ou seja, perante a decisão da Aliança Atlântica de reforçar a sua presença militar na zona leste na missão de “disuassão”. Portugal decidiu contribuir com o envio de 222 militares para a Roménia — atiradores de uma companhia de infantaria mecanizada e membros da equipa de operações especiais.

Estou grato ao vosso Governo e a todo o povo português pela assistência à Ucrânia que já prestaram. Por apoiarem sanções contra a Rússia. E é importante agora, quando a União Europeia está a preparar o sexto pacote de sanções, que demonstrem a vossa liderança e defendam a necessidade de um embargo petrolífero contra a Rússia a nível europeu.

Portugal, pelo menos as empresas portuguesas, praticamente deixou de comprar produtos energéticos à Rússia. A Galp, a única importadora de petróleo, anunciou logo na primeira semana da guerra que iria parar com todas as compras, sendo o produto mais importante o VGO (um subproduto usado para refinar gasóleo em Sines). A Galp admite que esta decisão pode reduzir a produção em Sines e as exportações de diesel, mas assegura o fornecimento ao mercado nacional. A Prio também suspendeu as importações da Rússia. As compras de gás natural à Rússia, que no ano passado chegaram a abastecer 10% a 15%, serão este ano muito pontuais, a existirem. E terão sido colocadas por empresas não portuguesas que usam o terminal de Sines como porta de entrada do gás com destino a Espanha, pela informação disponível. Portugal tem assumido que segue as sanções impostas ao nível europeu. António Costa questionado, em março, sobre a eventualidade de haver sanções à energia russa, disse ser necessário medir os efeitos de ricochete que cada medida pode ter. Mais recentemente, o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, admitiu que Portugal apoiará a inclusão do petróleo nas sanções à Rússia. Já no Parlamento, PSD, Iniciativa Liberal e Livre defenderam claramente a medida. Os eurodeputados do PCP votaram recentemente contra a medida no Parlamento Europeu.

Também é importante que vocês, juntamente com outros países da União Europeia, insistam numa restrição completa do sistema bancário russo.

Em relação ao sistema financeiro, Portugal apoiou a retirada de vários bancos russos do sistema de informação sobre transações bancárias Swift – o movimento entre bancos portugueses e russos passou de 2 milhões diários para 700 mil euros com esta sanção – e já congelou uma conta. Dados do Banco de Portugal, divulgados em março, revelaram que apenas uma única conta bancária estava ligada a entidades russas alvo de sanções. A conta tinha como saldo 242 euros, valor que ficou congelado. A União Europeia, no entanto, ainda não decretou sanções a todos os bancos russos, mas a ligação financeira de Portugal com a Rússia é limitada.

Precisamos de fechar todos os portos da União Europeia, todos os portos portugueses aos navios russos. Em particular, aqueles que eles estão a tentar esconder sob as bandeiras de outros países.

Relativamente à questão dos portos, o pedido de Zelensky surge precisamente no dia em que os Estados Unidos anunciaram que irão proibir que quaisquer navios russos atraquem nos seus portos. A União Europeia já tinha tomado essa decisão, mais concretamente a 8 de abril, o que abrange naturalmente Portugal. O pedido de Zelensky surge por isso não tanto no sentido de pedir o controlo dos navios russos — que já está assegurado — mas mais como um pedido de fiscalização reforçada a russos que se possam “esconder sob a bandeira de outros países”.

Sou-vos grato por apoiarem o nosso povo, os deslocados ucranianos. Os ucranianos e os portugueses conhecem-se bem. Entendem-se bem. E é importante que vocês usem as vossas oportunidades, tanto na Europa quanto noutras macrorregiões do mundo, para protegerem a liberdade e o direito à vida do nosso povo.

O agradecimento à ajuda humanitária portuguesa refere-se ao envio de bens que Portugal tem feito ao longo dos últimos dois meses. Portugal é um dos 26 países europeus envolvidos no auxílio promovido pelo Mecanismo de Proteção Civil da União Europeia, que garante a chegada à Ucrânia de medicamentos, geradores e outro tipo de apoio. Ao mesmo tempo, inúmeras iniciativas de ONG, empresas e sociedade civil têm feito chegar bens ao país: foi o caso, por exemplo, das embalagens de leite da Mimosa e sumos Fresky fotografados em Bucha

Vocês podem dizer a verdade sobre esta invasão russa, sobre esta guerra contra o povo ucraniano, tanto na América do Sul como em África. Peço-vos que combatam a propaganda russa e a influência corrupta russa nos países que estão perto de vós.

A menção à ideia de verdade “na América do Sul” e “em África” é clara e tem três principais alvos: Brasil, Angola e Moçambique. Os dois últimos (a par da Guiné-Equatorial, também membro da CPLP) foram alguns dos poucos Estados que se abstiveram na resolução das Nações Unidas que condenou a invasão russa à Ucrânia. Há várias razões para essa posição,  desde as ligações históricas dos movimentos de libertação dos dois países à antiga União Soviética, aos interesses económicos russos nos dois países, bem como a presença dos mercenários da Wagner em Cabo Delgado, no passado. Já o Brasil, embora tenha votado a favor da condenação na Assembleia-Geral, tem mantido uma posição ambígua noutros momentos. O pedido explícito de Zelensky para que Portugal ajude a contrariar o posicionamento pró-russo destes países surge depois de representantes nacionais terem declarado em público não colocar em causa as abstenções de Angola e Moçambique na ONU. Foi o caso do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa: “Olhámos para o mundo e aí respeitámos os pontos de vista de cada qual”, disse, a propósito da posição de Maputo sobre o conflito na Ucrânia. Também o novo embaixador português em Luanda, Francisco Alegre Duarte, confirmou aquando da sua chegada ao país que não abordou o tema no seu primeiro encontro com o Presidente João Lourenço. “Temos posições diferentes e respeitamos a posição de Angola”, disse apenas.

E acredito que o povo de Portugal, e com ele os políticos portugueses, vão apoiar o nosso Estado na sua vontade fundamental de estar convosco na União Europeia. O livre deve apoiar o livre. O decente deve apoiar o decente. O consciente deve apoiar o consciente.

Depois de agradecer a ajuda que Portugal tem prestado à Ucrânia, Zelensky deixa no ar que ela não é suficiente e precisa de ir mais longe — uma técnica que, de resto, também aplicou em todos os discursos internacionais que tem protagonizado. Não é a primeira vez que o chefe de Estado ucraniano aponta que precisa de mais compromisso de Portugal: até já o fez mais diretamente quando, numa intervenção no Conselho Europeu, fez um balanço da posição tomada por cada país da União Europeia. Neste momento, também aproveita para estabelecer uma dicotomia “nós vs. eles”, outra técnica retórica que iguala a Ucrânia a Portugal no que toca aos seus valores; e afasta ambos os países dos princípios russos.

E eu acredito que não nos vão trair ou a vós mesmos. Porque a Ucrânia já está a caminho da União Europeia num processo acelerado. Esperamos que num futuro próximo possamos obter o estatuto de candidato à adesão à União Europeia.

Sobre o apoio de Portugal a uma entrada no bloco europeu, no discurso que fez no Conselho Europeu, Zelensky disse que estava “bem, quase…”. Numa entrevista coletiva, no Clube de Jornalistas, quando questionado sobre o tema, António Costa defendeu que “a urgência da Ucrânia nunca se resolve com o alargamento”: “Só se resolve com soluções que sejam compatíveis com a urgência. Por isso, o aprofundamento do acordo de associação com a União Europeia é o espaço ideal”. Mas também disse que “colocar todas as fichas num processo que é incerto, necessariamente moroso e sujeito a múltiplas vicissitudes”, sendo por isso “um risco que acho muito grande”. “Há outra dimensão, que é a de saber se a União Europeia, ela própria, está preparada para novos passos de alargamento. Até agora, a União Europeia não tem sido capaz de acolher países como a Albânia, Montenegro, que têm uma dimensão bastante diferente da Ucrânia”, disse o primeiro-ministro sobre o processo de adesão. Nisso, a posição que Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, comunicou esta quinta-feira foi mais clara — e mais claramente favorável à entrada da Ucrânia na União Europeia.

E quando a decisão for considerada, peço-vos que apoiem a adesão plena à Ucrânia. Porque vocês na extremidade ocidental da Europa e nós na extremidade oriental da Europa temos os mesmos valores, a mesma visão de como deveria ser a vida no nosso continente.

A mensagem que Zelensky transmitiu já no fim do discurso é um contraste com as declarações de Dmitry Medvedev. O antigo primeiro-ministro e ex-presidente da Rússia disse, no início de abril, que o objetivo final da investida da Rússia “é a paz das gerações ucranianas futuras e a oportunidade de, finalmente, criar uma Eurásia aberta, de Lisboa a Vladivostok”. Essas declarações, por sua vez, também já não eram inocentes à época. Quando Vladimir Putin visitou Emmanuel Macron em Paris em 2019, o chefe de Estado francês disse: “A Rússia é europeia, muito profundamente, e nós acreditamos nesta Europa que vai de Lisboa a Vladivostok”.

Liberdade, direitos humanos, estado de direito, igualdade para todos os homens, para todas as mulheres e a oportunidade de viver livremente e sem nenhuma ditadura, para que todos tenham sempre tempo para a felicidade e para a saudade. Obrigado, Portugal!

Volodymyr Zelensky contou com o apoio da embaixada da Ucrânia em Portugal para construir o discurso desta quinta-feira, por isso sabia as palavras do vocabulário português que mais falariam ao coração do público. E “saudade”, uma palavra que dificilmente encontra tradução fiel noutras línguas ocidentais, era uma delas. Foi também com a equipa da embaixada que Zelensky aprendeu a despedir-se em português ao dizer: “Obrigado”.