A 5 de abril, uma publicação com uma imagem do secretário geral da ONU, António Guterres, lado a lado com o presidente chinês, Xi Jiping, dava conta do seguinte: “A China foi nomeada para o Observatório dos Direitos Humanos da ONU. A China ‘compra’ tudo”. A ideia que está por detrás desta imagem é, contudo, enganadora.

Publicação feita a 5 de abril, sem relação aparente com o coronavírus, mas numa altura em que a China é muito criticada nas redes sociais devido à atuação durante a pandemia

Esta publicação tornou-se viral nas redes sociais, mas tem muitas falhas. Primeiro, não é verdade que a China faça parte do Observatório dos Direitos Humanos, já que essa é uma organização não governamental portuguesa que, lê-se no site da instituição, “contribui para a denúncia das violações dos direitos fundamentais em Portugal”.

Depois, podia-se dizer que a China faz parte do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, mas nem isso é rigoroso. Olhando para os membros deste Conselho, podemos verificar que a China fez parte deste organismo até 31 de dezembro de 2019. E fazia, de facto, parte desde que o Conselho foi formado, em 2006, até 2009. Voltou a integrar o organismo entre 2010 e 2012, de 2014 a 2016 e de 2017 a 2019. Em 2013, por exemplo não fez parte, e este ano, 2020, também não.

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Este Conselho contém representantes de 47 países diferentes, de todos os continentes, que são eleitos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Há, portanto, uma distribuição geográfica equitativa: treze lugares para África, treze lugares para os estados pacifico-asiáticos, 8 lugares para a América Latina/Caraíbas, sete lugares para a Europa Ocidental/países adjacentes e seis lugares da Europa de leste.

O mandato de cada país neste organismo tem a duração de três anos, e não são elegíveis para reeleição depois de dois mandatos seguidos. Como o mandato da China tinha expirado no ano passado, este país só poderá voltar a integrar este Conselho em 2021.

Por outro lado, é verdade que a China foi nomeada, a 1 de abril, para fazer parte de um painel consultivo, integrado no Conselho dos Direitos Humanos, que ajuda na tarefa de monitorização dos direitos humanos pelo mundo. Ou seja, a China passou agora a ser a representante regional da zona pacífico-asiática deste painel consultivo, com um mandato que durará até 31 de março de 2021. Esta nomeação ocorreu no passado dia 1 de abril e foi apoiada por Omã, que é o país coordenador da região referente ao eixo Ásia/Pacífico.

Jiang Duan foi o delegado escolhido para representar a missão chinesa em Genebra. Essa nomeação foi contestada, entre outros, por Hillel Neuer, presidente da United Nations Watch, uma organização não governamental com sede em Genebra que monitoriza a performance dos 47 países-membros do Conselho dos Direitos Humanos da ONU. “Permitir que o regime desumano e opressivo chinês escolha os investigadores mundiais da liberdade de expressão, das detenções arbitrárias, da saúde e dos desaparecimentos forçados, é como meter um piromaníaco numa cidade a arder”, disse Neuer via Twitter.

No entanto, é preciso reforçar que este é um grupo consultivo, de onde fazem parte, ao todo, cinco embaixadores de países diferentes. É verdade que a China passa agora a poder influenciar o próprio Conselho e as suas decisões, juntamente com outros países, e vai, por exemplo, contribuir para a escolha de dezassete investigadores diferentes que vão monitorizar os direitos humanos, com mandatos de seis anos.

Apesar de o país ser amplamente criticado por membros da ONU, a China já reúne alguma influência neste órgão — sobretudo depois de os Estados Unidos da América se terem retirado do Conselho dos Direitos Humanos em 2018. Das 15 agências especializadas da ONU, a China tem representantes em quatro.

Em relação à frase “a China compra tudo”, permitindo à ONU “sair da bancarrota”, há aqui uma alusão a uma suposta salvação financeira desta organização por parte do regime chinês. A verdade é que esta organização atravessa um momento difícil a nível monetário, sendo que, no ano passado, António Guterres decretou medidas de contenção para poupar nos custos da ONU.

O secretário-geral admitiu que, desde finais de setembro do ano passado, a instituição apresentava um défice financeiro a rondar os cerca de 209 milhões de euros. Isto porque vários Estados-membros não tinham pago as suas contribuições. Já em 2018 tinha endereçado uma carta aos embaixadores dos 193 países, expressando a sua preocupação com o atraso no pagamento dessas mesmas contribuições.

Mesmo assim, em 2017, o orçamento da ONU ultrapassava os 50 mil milhões de dólares. No entanto, no relatório anual da ONU do ano passado, António Guterres reforçava a crise financeira: “Fiz tudo o que estava ao meu alcance para persuadir os governos para pagarem as suas contribuições dentro do prazo e agradeço à maioria que o fez. Mas ainda não estamos sequer perto do que devíamos estar”, lê-se no relatório.

Para se ser membro da ONU, cada país tem de pagar uma determinada quantia a determinadas partes da organização – como a Organização Mundial de Saúde ou a Agência Internacional de Energia Atómica -, que tem por base a população de cada estado-membro e o seu orçamento do Estado. São as chamadas “contribuições mandatórias”, que cobrem custos administrativos, financiam programas e operações de paz e segurança no mundo.

Há ainda uma “contribuição voluntária” que pode ser feita pelos Estados-membros a outras organizações dentro do corpo desta instituição: UNICEF ou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, por exemplo. Segundo o site norte-americano The Quartz, 74% dos fundos das Nações Unidas vêm dos estados-membros, enquanto o restante vem de outras organizações, como a Comissão Europeia.

Olhando para os dados disponíveis (os mais atuais correspondem a 2017), das contribuições de cada membro, os Estados Unidos são o país que mais contribuiu: com mais de 10 mil milhões de dólares. Mesmo com o criticismo por parte do presidente norte-americano, Donald Trump, em relação aos países devedores, este país acaba por ser o que leva a maior fatia de contribuição. Segundo os dados oficiais, em 2017, a China surge em quinto lugar, tendo contribuído com 1.423 mil milhões de dólares. Verdade seja dita que, em apenas dois anos, a China subiu do décimo lugar para o quinto, reforçando a ideia de que está a tentar dinamizar a sua influência nesta organização.

Todos estes dados podem ser consultados no relatório “Financing the UN Development System 2019: Time for Hard Choices”, feito entre a fundação não governamental Dag Hammarskjold e o UN Multi partner Trust Fund Office, departamento financeiro da ONU.

Ou seja, não é verdade que a China tenha passado a ser o maior contribuinte desta organização, nem que a ONU tenha saído tão cedo da situação financeira difícil onde se encontra graças ao regime chinês.

Finalmente, recorrendo à ferramenta “TinEye”, é possível rastrear de onde a imagem vem originalmente: António Guterres e o presidente chinês encontraram-se em Buenos Aires em novembro de 2018. Um encontro que se repetiu no ano seguinte, mas desta vez foi o secretário-geral da ONU que se deslocou até à China, para estar presente no Fórum “Uma Faixa, Uma Rota”, onde participaram 37 países e regiões diferentes.

Conclusão

Apesar de a imagem ser verdadeira, a legenda da fotografia é bastante enganadora. Primeiro, porque a China não faz parte do Observatório dos Direitos Humanos, já que esta é uma organização não governamental portuguesa. Fez sim parte, até ao ano passado, do Conselho dos Direitos Humanos, órgão pertencente à ONU. E também é verdade que faz agora parte de um painel consultivo que trabalha lado a lado com o Conselho dos Direitos Humanos. Por outro lado, não é verdade que a China tenha salvado a ONU da bancarrota, sendo que, segundos os dados mais atuais, a China, em 2017, era o quinto maior contribuidor desta instituição. Os Estados Unidos foram o maior contribuinte, apesar de todas as críticas à organização por parte do presidente norte-americano, Donald Trump.

De acordo com o sistema de classificação do Observador este conteúdo é:

ENGANADOR

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de factchecking com o Facebook e com base na proliferação de partilhas — associadas a reportes de abusos de vários utilizadores — nos últimos dias.

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