Uma publicação nas redes sociais afirma que o Paxlovid, um medicamento antiviral desenvolvido pela Pfizer contra a Covid-19, funciona com “o mesmíssimo mecanismo de ação” que a ivermectina, outro fármaco que chegou a ser testado para combater a doença provocada pelo SARS-CoV-2 e que já era utilizada noutras doenças, incluindo a malária. Essa ação, prossegue a publicação, será a inibição da protease 3CL, uma proteína essencial nos coronavírus envolvida na replicação viral.

A publicação sugere que há interesses económicos em preferir o medicamento da Pfizer à ivermectina.

Em declarações ao Observador, João Gonçalves, virologista e professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, explica que o Paxlovid é como um cocktail de dois medicamentos — um antiviral criado recentemente pela Pfizer, o PF-07321332; e um antirretroviral chamado Ritonavir, utilizado normalmente em casos de infeção pelo vírus da sida.

O primeiro liga-se à protease 3CL, responsável por cortar as proteínas virais em partes para estas se replicarem e a seguir reunirem-se novamente em novas partículas virais — uma função essencial para a reprodução do vírus — e inibe-a. O segundo garante que o antiviral permanece em circulação no sangue durante mais tempo e em quantidades elevadas o suficiente para continuar a afetar a multiplicação do vírus.

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Mas o modo como a invermectina funciona contra o SARS-CoV-2 ainda não é completamente compreendido, explica João Gonçalves. Uma das teorias sugere que este antiparasitário inibe as proteínas de transporte nuclear (um mecanismo que move moléculas para dentro e para fora do núcleo) do hospedeiro, um processo que o vírus utiliza para aumentar a infeção e suprimir o combate do organismo. Outra possibilidade, que tal como a primeira está descrita no site dos Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos, diz que a ivermectina interfere na ligação entre a proteína S do vírus e o recetor da célula.

E, sim, também há a possibilidade de, à semelhança do Paxlovid, inibir a protease 3CL, tal como apontado num estudo publicado na revista científica Nature. Mas há uma diferença fundamental entre as evidências relacionadas com o medicamento da Pfizer e o outro: é que o mecanismo de ação do primeiro foi testado através de um ensaio clínico em centenas de pessoas; e o estudo que atribui à ivermectina a mesma ação que o Paxlovid teve por base um modelo computacional, não um contexto real.

No caso do Paxlovid, a farmacêutica norte-americana procurou saber a taxa de internamento e de morte num período de 28 dias e comparou-a com os valores de um grupo tratado com um placebo. As análises começaram cinco dias após o início dos sintomas de Covid-19 em pessoas que não tinham recebido tratamentos com anticorpos.

Descobriu-se que a taxa de internamento ou morte foi de 0,8% (oito casos em 1.039 doentes) em pessoas que receberam o medicamento; e de 6,3% (66 em 1.046) para o grupo de placebo, explicou a Agência Europeia do Medicamento. Houve 12 óbitos entre quem recebeu o placebo e nenhuma em quem recebeu o Paxlovid. A Pfizer concluiu assim que o risco de internamento ou morte era reduzido em 89%, como aponta o comunicado da farmacêutica.

No caso da ivermectina, são apontados resultados menos promissores. As autoridades de saúde norte-americanas sumarizaram que, embora a ivermectina pareça funcionar em teoria — nos modelos computacionais e em culturas celulares nos laboratórios —, na prática, seria preciso administrar doses 100 vezes superiores ao permitido em humanos para surtir algum resultado, como está descrito neste relatório.

A própria Merck, farmacêutica que produz a ivermectina para uso humano, disse em comunicado que “não acredita que os dados disponíveis suportem a segurança e eficácia da ivermectina além das doses e populações indicadas nas informações de prescrição aprovadas pela agência reguladora”, “não identificou bases científicas para um potencial efeito terapêutico contra a Covid-19 em estudos pré-clínicos”, “não encontrou evidências significativas para atividade clínica e eficácia clínica em doentes com Covid-19” e “detetou uma falta de dados de segurança preocupante na maioria dos estudos”.

Ivermectina contra a Covid-19: onde está a verdade e em que é que podemos confiar?

João Gonçalves acrescenta que, mesmo que a ivermectina tenha alguma eficácia contra a Covid-19, “não conseguimos quantificar essa eficácia e ela pode ser variável de pessoa para pessoa”: “Não podemos estar a dizer que tem uma ação e não dizer quais são exatamente [os efeitos], em quem funciona e em quem não funciona”. O virologista aponta que já foram descobertos quase 20 mecanismos de ação com a ivermectina, que parece “atuar em todo o lado”, mas “não sabemos qual é a melhor”: “Estarmos a dar uma coisa que não sabemos como atua não é tão eficaz como desenhar algo que tem uma especificidade para o vírus, principalmente quando a alternativa é um medicamento cujos efeitos secundários não compreendemos bem.”

Conclusão

Não é correto afirmar que a ivermectina e o medicamento da Pfizer recentemente aprovado contra a Covid-19 funcionam da mesma maneira. A comunidade científica ainda não sabe qual é exatamente o funcionamento da ivermectina contra a Covid-19, mas sabe que ela se tem demonstrado pouco eficaz no tratamento de doentes. O mecanismo de ação do Paxlovid é bem conhecido, é específico para a Covid-19 e a sua eficácia foi comprovada em ensaios clínicos robustos.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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