À mesa de jantar da casa dos meus avós, mesmo quando o meu avô já não estava, volta não volta o nome do Dr. Albuquerque vinha à baila. Por vezes alguém tinha ouvido notícias da família, outras chegado mesmo a falar com um dos filhos. A primeira vez que ouvi este nome reduzido a um apelido com um doutor à frente (eu era ainda criança e o meu avô ainda se encontrava sentado no lugar do costume, à cabeceira da mesa da sala de jantar) perguntei quem era esse Dr. Albuquerque. Um silêncio sagrado pairou de imediato em cima da mesma e os olhos de todos pousaram sobre mim. ‘O Dr. Albuquerque foi o grande amigo do avô’, alguém me explicou então. Olhei para o meu avô, mas não encontrei nele qualquer reacção. Em África, era ele médico e o dito Dr. Albuquerque jurista, os dois forjaram uma amizade que durou para lá do tempo em que já não existem. Quando olhei para o meu avô não esperei qualquer comentário da parte dele. Fi-lo porque admirei o ter transformado uma amizade em algo capaz de transcender o espaço e o tempo: Nova Lisboa nos anos 50 não era as Picoas nos princípios da década de 80. A vida e as pessoas mudam, mas a relação que as une não, pelo menos se elas não quiserem.

Anos mais tarde, sentado noutra mesa de jantar, o avô de um amigo com uma vida preenchida com altos e baixos disse algo que me marcou. Foi num daqueles jantares em que a conversa se estende muito além da refeição propriamente dita e em que um senhor de idade se rejuvenesce só por conversar com gente nova. ‘Se chegarem ao fim da vossa vida e puderem dizer que têm dois verdadeiros amigos é sinal que foram bem-sucedidos.’ A frase marcou-me porque expressa o que sentia mas que nunca tinha posto em palavras: que o sucesso é sermos lembrados depois. Nunca consegui teorizar muito sobre o que pode ser mais importante na amizade, mas sentir que ganhei o dia porque me telefonaram apenas porque sim, para falar, para saber, para contar, o à-vontade que têm em fazê-lo, qualquer que seja a hora (as melhores são as mais impróprias e as primeiras da manhã as que mais nos enchem a alma), talvez seja o melhor que a amizade nos dá. O sermos úteis nas coisas mais simples e triviais, mas que são as que mais ninguém compreende, para as quais mais ninguém está preparado, disposto e disponível a dar do seu tempo, é o melhor que um amigo nos dá.

A amizade é extremamente igualitária. Os verdadeiros amigos não competem entre si. Entre eles não há sucessos ou insucessos. Os amigos não se comparam porque cada um segue o seu caminho. Não há competição, nem inveja. Apenas uma satisfação, tão imensa quanto natural, de que o nosso amigo esteja bem consigo mesmo. Não há condescendência (uma das maiores assassinas da amizade), nem se está repetidamente a contar o que se fez e o que se deixou de fazer. Entre amigos não há necessidade de ensoberbecimento porque eles sabem bem do que somos e do que não somos capazes. Conhecem-nos melhor que nós, as nossas capacidades e os nossos defeitos, razão pela qual são nossos amigos sem que saibamos bem como nem porquê.

Em ‘History of Political Philosophy’, compêndio organizado por Leo Strauss (e que já referi numa outra crónica neste espaço), o estudo sobre Aristóteles contém um capítulo sobre a Justiça e a Amizade. Aqui se diz que, para o filósofo grego, as amizades se distinguem de acordo com o motivo que as sustenta, seja este a utilidade, o prazer ou a virtude. Naturalmente, a forma mais perfeita de amizade é a que nasce e se baseia na virtude. É aqui que o homem atinge o seu máximo desejando o melhor para um amigo que é seu igual. Para Aristóteles, este tipo de amizade ultrapassa o dilema de a moralidade ser entendida como uma perfeição da virtude individual e também uma faceta da justiça. É esta amizade virtuosa que permite a qualquer homem satisfazer a necessidade de ser íntegro ao mesmo tempo que se entrega ao outro sem que tal o force a questionar o seu compromisso com a virtude. Na amizade virtuosa não há lugar a uma utilidade oportunista, nem o prazer que deriva da simples companhia, o amigo dos copos que nos proporciona um bom momento. Também não há paixão, nem a entrega, a renúncia, que esta pressupõe. Como referido na obra que mencionei, com a amizade baseada na virtude a nossa existência deixa de ser trágica porque deixamos de estar sozinhos. Ganha sentido porque passa a haver mais alguém. E quem tem um, ou dois verdadeiros amigos, (algo muito raro, como também dizia Aristóteles) sabe o que isso significa.

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