São as guerras, as grandes guerras, que sempre marcam o fim e o princípio das ordens mundiais, quer na repartição do território, quer na determinação dos valores dominantes – valores que passam a ser os das potências vencedoras e das suas classes dirigentes.

Tem sido assim na modernidade europeia e assim continua a ser.

Ideologia e Razão de Estado

A Guerra dos Trinta Anos foi uma guerra desencadeada por razões religiosas, uma guerra de blocos, de um bloco católico contra um bloco protestante. No entanto, a França de Richelieu chegou a abandonar, por razões de Estado, a solidariedade católica para combater o seu inimigo principal – a Casa de Áustria, os catolissíssimos Habsburgo, tal como no século anterior se tinha já aliado ao Turco.

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O resto do século XVII e o século XVIII passaram-se entre guerras, equilíbrios e tratados de paz entre os poderes europeus: França, Inglaterra, Espanha-Áustria, com a Prússia e a Rússia a juntarem-se mais tarde aos grandes. As guerras da Revolução e do Império confrontaram a França republicana e revolucionária com as monarquias europeias, que responderam à cruzada dos povos contra os reis, animada por Paris, com uma cruzada contra-revolucionária. A revolução passou depois do Thermidor, mas a França de Napoleão levou as suas bandeiras e baionetas aos confins da Península Ibérica e da Rússia em expedições que não acabaram bem para o invasor.

Espanhóis, portugueses e russos – apoiados pela teimosia, o dinheiro e a marinha inglesa – resistiram aos invencíveis franceses; e, na perseguição, vieram até Paris e restauraram os Bourbon no trono de S. Luís. Depois, em Viena, os poderes vencedores assinaram um tratado de paz para a Europa, com base numa Santa Aliança cristã e monárquica empenhada no policiamento e controle das ideias da revolução e dos seus efeitos subversivos.

Apesar das guerras de unificação das nações italiana e alemã, a partir dos Saboia do Piemonte e dos Hohenzollern da Prússia, a paz geral europeia duraria um século. Depois, a aventura colonial entreteve os europeus nas duas décadas entre a conferência de Berlim e a Grande Guerra.

Um século depois do Congresso de Viena, tudo explodia, em Agosto de 1914, com o assassinato em Sarajevo do herdeiro do trono dos Habsburgo. O fogo propagou-se a toda a Europa e a guerra moderna, a guerra total com as suas “tempestades de aço”, levou à revolta parte dos convocados. A revolta teria sucesso, não na Flandres, o coração da batalha, mas na Rússia, em São Petersburgo, onde a autocracia czarista seria derrubada pelos soldados derrotados. A guerra civil e a Revolução a que a revolta deu origem ia impor-se, tal como a francesa, pelo ideal utópico e pelo terror – mas não teria nem Thermidor nem síntese napoleónica. Ou talvez os tivesse tido, já no final dos anos vinte, com um autocrata mais brutal e fanático que os seus predecessores – Estaline, o Czar Vermelho – que imporia ao seu correligionário e rival Léon Trotsky, partidária da revolução mundial e imediata, uma heresia marxista: “o comunismo num só país”.

Foi, no entanto, perante a ameaça internacionalista da revolução comunista que o fascismo, como alternativa de ordem e força, mobilizou as classes médias e triunfou na Itália em 1922. E foi também como barreira ao comunismo internacional e com a promessa de vingar a humilhação de Versalhes que Hitler conseguiu apoio popular nas eleições alemãs de 1932, que fizeram do NSDAP o primeiro partido da Alemanha de Weimar.

Com a União Soviética comunista e a Alemanha nacional-socialista tudo se perfilava para o regresso da guerra ideológica, versão moderna das guerras de religião.

E a guerra chegou. A maior e mais mortífera guerra da história da Humanidade, uma guerra em que, fruto da tecnologia e da ideologia, os mortos civis superaram os mortos militares. A Segunda Grande Guerra acabou com a bomba atómica, a “nova maravilha” da tecnologia que iria também determinar a paz armada ou a Guerra Fria no coração do mundo euroamericano – embora, nas periferias, os conflitos coloniais, identitários, político-religiosos se multiplicassem.

A guerra civil europeia saíra cara a vencedores e vencidos do velho continente, mas era preciso estruturar a nova ordem do mundo, um mundo que deixara de ser eurocêntrico e onde, por isso, os europeus procuraram formas de união.

A Guerra Fria e o interregno

Um patriota realista norte-americano, George F. Kennan, embaixador em Moscovo, elaborou e ditou as regras do comportamento da América e do Ocidente perante o inimigo soviético, numa estratégia que equilibrava a determinação e a contenção, mas que não deixava de se pôr na pele do outro.

Foi, no entanto, a audácia de Ronald Reagan, aconselhado por William B. Casey, que, aproveitando as contradições na classe dirigente soviética e explorando a rivalidade entre Pequim e Moscovo, levou à implosão do sistema comunista, com a auto-libertação da Europa de Leste. E para esta libertação foram decisivos, além do Papa João Paulo II e de Margaret Thatcher, a resistência de polacos e húngaros, velhas nações perdidas entre impérios. E, claro, Gorbachev, cuja personalidade e temperamento não se coadunavam com o governo de um sistema assente no medo absoluto.

Na euforia da vitória de 1991-92, proliferaram as conclusões apressadas e as profecias optimistas, esquecidas da natureza dos homens e dos Estados. A ideia da “ordem internacional liberal”, como facto irreversível per omnia saecula saeculorum, veio daqui. Havia uma vitória das democracias ocidentais e, a partir dessa vitória, o modelo de democracia partidária competitiva e de economia capitalista de mercado estariam consagrados pela natureza das coisas: a ordem internacional liberal garantia esse sucesso em termos globais, e ninguém se atreveria a recusá-la.

Mas as coisas não foram bem assim. O ataque da Al Qaeda aos centros da nova ordem gerou uma reacção que levou às guerras do Iraque e do Afeganistão e ao renascimento do jihadismo, com resultados perigosos para o Ocidente. O modelo capitalista euroamericano foi abalado pela crise de 2008, detonada pela falência da Lehman Brothers, com George H. Bush a apelar, no G20, aos não ocidentais para ajudarem a sustentar o modelo ocidental. Entretanto, na luta contra a Al Qaeda, uma série de direitos, liberdades e garantias foram suspensos, ou mesmo ignorados, enquanto se levantavam os tradicionais limites da razão de Estado aos entusiasmos das ideologias altruístas. Uma solução política de pretensões ideológicas chocava com a natureza dos homens e das coisas e saía vencida. Nações e identidades históricas e culturais, políticas e ideologias e consequentes diferenças de valores, baralhavam as sedutoras profecias. Afinal, talvez o Choque de Civilizações, de S.P. Hungtinton, dissesse mais da realidade das relações entre os povos do que O Fim da História, de Fukuyama.

A paz pelo comércio?

Em Fevereiro deste ano que hoje acaba, a invasão russa e a guerra quente na Europa vieram acelerar a decomposição da ordem internacional liberal que emergira da Guerra Fria.

Putin invadia a Ucrânia menosprezando o nacionalismo histórico ucraniano e, sobretudo, o reforço identitário que a sua acção desencadearia. Com a expansão rápida da NATO depois dos anos 90 do século passado, era também o medo, o nacionalismo securitário russo “ameaçado”, que arrastava Moscovo para a guerra. E apesar dos pretextos ideológicos invocados – o “antifascismo” ou “antinazismo” avançado por Putin e a “defesa da democracia” proclamada por Zelensly – evidenciava-se o clássico choque de nacionalismos.

Assim, perante o maniqueísmo geral e as posições rígidas dos contendores, a ordem internacional liberal e as suas instituições políticas e jurídicas têm-se mostrado incapazes de encontrar soluções.

Com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, que constituem o núcleo da decisão, divididos (Rússia e China contra os Estados Unidos, o Reino Unido e a França), as Nações Unidas estão bloqueadas. E, enquanto o eixo Euro-Americano está mais ou menos alinhado no apoio à Ucrânia atrás dos americanos, na NATO e na UE, o resto do mundo também se divide, com as potências mais populosas – China e Índia – em discreta cumplicidade com a Rússia, bem como parte dos países africanos, quase todos os árabes e alguns dos Estados centro e sul americanos.

Esta guerra vem também pôr em causa a interdependência comercial ou cultural como meio de evitar o conflito, tornando evidente que a existência de relações económicas entre os Estados, a paz pelo comércio, não chega para impedir o confronto político e militar.

São raros os Estados que se afirmam solidários com Putin e Moscovo, mas são muitos os que, a partir de uma “terceira posição”, estão a marcar a sua independência em relação ao bloco ocidental democrático e liberal. E, apesar de, à primeira vista, a unidade euro-americana – eixo da ordem liberal internacional – sair reforçada, os efeitos colaterais do conflito podem bem vir a enfraquecer e dividir “o Ocidente”. Para esta divisão está a contribuir a desigualdade de consequências em termos económicos e sociais para americanos e europeus.

Assim, como nos grandes conflitos em solo europeu do século XX, a hubris de uns, a exaltação de outros e a incompetência de quase todos lançaram a Europa no ferro e fogo da guerra. Para restaurar a paz, além da justa avaliação e qualificação moral de agressores e vítimas, será preciso uma grande dose de realismo e senso comum. Tendo presente, numa ordem mundial em crise e transição, que nem sempre a Justiça coincide com a Paz.