Exma. Sra. Presidente da ERS,

A 10 de Outubro ao fim da tarde peguei num ecógrafo portátil e fui fazer uma ecografia à minha sogra, senhora independente de 84 anos, que tinha começado com problemas de saúde dias antes. A minha cunhada chamara a médica de família para ir lá a casa. Tendo já visto muitas coisas correrem mal, fui lá e fiz uma ecografia à cabeceira que resultou em que a senhora fosse operada horas mais tarde por abcesso pélvico e peritonite por diverticulite, que dava poucas queixas em termos clínicos relativamente à gravidade da situação.

Ecografei-a de alto a baixo. Hoje em dia, em casos daqueles, aparecem-me por vezes pessoas com pedidos de apenas ecografia abdominal, totalmente inadequados. Na minha sogra incluí a tiroideia e os rins, que mostraram, por exemplo, que não havia contra-indicação ao contraste injectável em eventual TAC que fosse necessária. E vi os pulmões, com derrame bilateral. E vi o coração, com derrame pericárdico e insuficiência cardíaca. Como está à vista, um exame destes não se enquadra, de maneira nenhuma, nas obsoletas tabelas de comparticipação dos actos médicos em uso no SNS: cobrar por inteiro a ecografia da tiroideia seria demais, nada receber por ela leva a que nem se passe uma vista de olhos.

A própria ecografia ao domicílio tem que se lhe diga.

Há uns anos, houve um projecto para certificar os locais onde a ecografia poderia ser praticada. Uma pessoa da DGS [Direcção-Geral de Saúde] fez-me chegar secretamente o projecto lei e fiquei horrorizado. Fiz um parecer ponto a ponto contra este projecto, passei-o a outra pessoa, que por sua vez o passou à terceira, que assinou com modificações o que eu tinha escrito e o fez chegar ao Secretário de Estado, que matou a questão. Noto que, se tivesse ido para a frente com a ecografia ao domicílio à minha sogra teria sido pura e simplesmente ilegal e lá me arriscava a, mais uma vez, ter a ERS [Entidade Reguladora da Saúde] em cima de mim.

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No hospital não fizeram TAC torácica à minha sogra, mas apenas abdominal e pélvica, certamente por uma intenção mal avisada de poupar dinheiro onde não se devia. Numa senhora de 84 anos, e grande fumadora desde os 20 anos, mais ainda com derrame bilateral pleural, esta falha só é (mais ou menos…) compreensível no enquadramento restritivo em que vivemos.

Mas uma TAC pulmonar simplificada – e mais económica, claro, aceitando finalmente que a qualidade não tem, nem deve, ser sempre, a ”máxima” – teria sido muito mais informativa e muito mais barata do que o RX de tórax, que lhe foi feito em nova deslocação ao serviço de radiologia. Como saberá, a ERS rejeita esta manipulação sensata, inteligente e explícita do binómio preço/qualidade.

Horas depois da cirurgia da minha sogra, fui para Paris, para um congresso de radiologia, aonde constatei o fosso cada vez maior entre a ecografia que lá se pratica e a que se faz por cá.

Por exemplo, quando um francês tem uma ruptura muscular e um hematoma importante – é comum – tornou-se prática, lá, executar de imediato a aspiração do hematoma, com marcada redução de fibrose e dor crónica subsequente – em qualquer consultório, sem nenhumas condições sofisticadas.

Isto era o que estava a começar a fazer-se em hospitais de ponta, quando lá estagiei há 30 anos, tendo aprendido e praticado também drenagens de abcessos abdominais, muito mais complexas, técnica que pus em prática durante os meus anos no Hospital Particular de Lisboa, com 100 por cento de sucesso. No consultório, no entanto, nunca tive coragem de fazer aspirações de hematomas musculares, como, por sinal, é focado marginalmente em vários dos processos que tenho na ERS. Da maneira como as coisas correm, o sucesso em 500 casos não compensaria as complicações que me resultariam, se o caso 501 tivesse, por exemplo, uma infecção banal e daí resultasse uma reclamação.

O sistema de reclamações vigente, tão acarinhado pela ERS, faz isso: intencionalmente descontextualiza os casos, valorizando uma reclamação sobre um elogio imenso relativo à mesma prática.

Veja o que fazíamos, por exemplo, com as taxas de urgência ou com as pequenas taxas de suplemento em ecografias obstétricas ou de partes moles, em que o acesso atempado a exames convencionados de qualidade razoável é uma miragem. Depois das intervenções da ERS, as pessoas que aqui vinham de muito longe para beneficiarem dessas opções desapareceram. Na verdade, elas continuam a existir, mas deixaram de ter aqui a alternativa que as fazia percorrer, por vezes, centenas de quilómetros para chegar ate nós.

E o que é que lhes foi dado em troca pela ERS? Rigorosamente nada. Com palavras bonitas – e cinicamente falsas – sobre equidade, direitos, etc., essas pessoas, que não têm visibilidade, que não sabem reclamar com eficácia, foram simplesmente varridas para debaixo do tapete. Eu, que não tenho qualquer responsabilidade, sinto vergonha! E a Srª Presidente, que em tempos foi enfermeira?

Estas pessoas, efectivamente deixadas para trás pelo Estado, lembram-me a tragédia dos incêndios. Em Pedrógão, nas horas iniciais em que o fogo podia ter sido controlado, dois helicópteros que podiam ter feito a diferença não foram chamados, porque as regras de empenhamento mencionavam 40 quilómetros e as aeronaves estavam a 41 vírgula qualquer coisa. Será que a Dr.ª Bárbara Soares, para quem “os casos individuais não interessam”, teria autorizado a vinda dos helicópteros? Qual a posição institucional da ERS numa situação destas?

Mas regresso à minha sogra.

Dias mais tarde, ela está com febre e aparece novo abcesso abdominal; e era um abcesso susceptível de drenagem percutânea, ou seja, através de um cateter introduzido na parede abdominal e levado até ao sítio da colecção – tal como eu fiz muitas vezes há vinte e tal anos.

No entanto, esta técnica – absolutamente banal no estrangeiro – não consta das opções práticas disponíveis em 2017 num grande hospital público nacional.

As coisas andam todas ligadas: se a drenagem das pequenas colecções resultantes das rupturas musculares fosse uma realidade do dia-a-dia, a aceitação das drenagens percutâneas de abcessos abdominais teria muito mais facilmente entrado na consciência e no uso geral, mas assim não.

Como sempre, as coisas más atraem as coisas más.

Um sistema absolutamente rígido como o nosso, em termos formais e informais, atrasa a inovação e, portanto, se o tratamento com antibióticos que foi feito – muito mais caro, demorado e com antibiótico de largo espectro, agravando os riscos de resistência e de infecções hospitalares – não tivesse resultado, sendo as probabilidades na ordem de 50 por cento, o que iria acontecer à minha sogra era ser operada outra vez, à moda antiga, como há 30 anos.

O tratamento prosseguiu ao longo de muitos dias sem monitorização por nova TAC, mesmo quando, perante a não melhoria esperada, foi necessário mudar o antibiótico. Como ficou claro, ao não ter sido pedida a TAC pulmonar, existe restrição efectiva quanto a estes exames. Em vez de um exame muito simplificado e embaratecido para monitorização focada, que teria sido claramente útil, mostrando mais cedo que o abcesso não estava a diminuir, não se fez exame nenhum, porque a mentalidade é, ou se faz a sério ou não se faz – que pensamento estreitinho… E exames simplificados não estão nas tabelas…

Quase um mês após a admissão, continuada devido ao tempo de tratamento do abcesso, apareceu sangue nas fezes.  Uma colonoscopia detecta então um cancro extenso, de 7 cm (!), na transição rectosigmoideia, cancro esse que passou despercebido nas duas TAC abdomino-pélvicas anteriores.

Essas TAC (embora a primeira tenha a desculpa, só muito relativa, do grau de urgência) foram feitas sem distensão do intestino, que teria sido suficiente para ter identificado a neoplasia, mesmo sem limpeza prévia. O suplemento de insuflação do cólon nas TAC era um dos que oferecíamos, mediante pagamento razoável, às pessoas que faziam exames de TAC abdominal e pélvica no meu consultório. As vantagens eram óbvias, bem como era óbvio o aumento de esforço de execução e de interpretação. Levou-nos a detectar precocemente múltiplos cancros do cólon assintomáticos, por exemplo. Mas não sendo permitido, de forma clara, cobrar um valor extra aos exames convencionados (eu fazia-o, andando nos limites, porque sou como sou), os outros médicos, consultórios ou hospitais nunca pegaram nesta inovação e a consequência está aqui à vista, mais uma vez, nesta grosseira falha de diagnóstico.

A senhora irá ser operada para o ano e espero que tudo corra bem.

É óbvio que não é a ERS, esta ERS, o princípio nem o fim de todos os nossos males. É apenas mais uma camada de cimento sobre um sistema tão tristemente esclerosado.

A descrição pormenorizada deste caso da minha sogra – e omiti vários pormenores – serve apenas para ilustrar a questão macro, da urgência de reflectir sobre a estrutura regulamentar obsoleta que a ERS tão denodadamente acarinha, como várias vezes lhe escrevi.

Acrescento que, quando estava a examinar a minha sogra, em casa dela, apareceu a médica de família e questionou-me se eu não podia fazer um serviço daqueles num lar onde trabalhava, considerando o esforço, a dificuldade e o preço que era transportar um idoso a uma clínica ou hospital, de cada vez que era necessário uma ecografia.

Há 30 anos, de facto, fiz exames ao domicílio e em lares e também em povoações mal servidas de transportes e que não tinham volume para justificar um posto de ecografia. Cobrava, naturalmente, um extra ao valor convencionado que receberia da ARS [Administração Regional de Saúde] pelo exame, se fosse o caso.

Actividade sem grande interesse económico, mas de evidente utilidade social.

Houve uma denúncia anónima à ARS e o correspondente inquérito. Fui acusado de ser ilegal esta prática e ameaçado de ficar sem a convenção mas, finalmente, alguém escreveu no processo que a actividade que eu tinha desempenhado era útil para as populações, que não tinha prejudicado o Estado, que eu não tinha tido benefício económico indevido. E, assim, fui advertido de que teria de parar imediatamente, mas não seria sujeito a qualquer punição.

Satisfeito (relativamente), escrevi ao presidente da ARS, dizendo que, perante as conclusões de que se tratava de actividade útil, etc., etc.,  se deveria modificar o articulado da convenção para que tal actividade pudesse ser abertamente realizada.

Passaram-se 30 anos e, como seria previsível, está tudo na mesma. E foi o que expliquei à colega para lhe dizer que não podia realizar ecografias no seu lar de idosos, a não ser a título inteiramente privado, sem qualquer comparticipação para os beneficiários.

O que este caso da minha sogra tem de especial, é, exactamente, não ter nada de especial. É ser uma situação perfeitamente idêntica a numerosas outras que vou conhecendo, que correm mal, mesmo para padrões ocidentais de 2017, mas que nos parece que correm bem. Nós tomamos coisas que deveriam ser inaceitáveis como fazendo parte da normalidade, até porque nos faltam referências para comparação e, infelizmente, a ERS é mais um factor importante no sentido de que tudo continue na mesma. Dentro dos inegáveis constrangimentos económicos do país, seria possível fazer muito melhor.

Dois livros que li recentemente, que hesitei presentear-lhe, mas depois decidi em contrário, focam exactamente os importantíssimos custos escondidos das actividades regulatórias, por um lado, e, por outro, as consequências devastadoras que o não reconhecimento e a não-aceitação do pagamento legítimo de actos de natureza intelectual têm sobre a criatividade, sobre a inovação e sobre a qualidade.

Do primeiro livro, Messy, incluí umas páginas avulsas com aplicação directa à ERS e à realidade portuguesa. Do segundo, World Without Mind, também interessantíssimo, só envio cópia da capa.

Nada me daria mais prazer do que oferecer-lhe como presente de Natal estes dois livros, se houvesse a mínima manifestação de interesse da sua parte o que, infelizmente, sei que não acontecerá (relembro o número do meu telemóvel: 965129886). De qualquer forma, anexo algumas fotocópias de páginas ilustrativas.

Nesta altura, cada vez mais lemos apenas o que se coaduna com a nossa visão do mundo quando, muitas vezes, o que nos traria maior ganho seria exactamente o contrário. Seria sermos confrontados com o que questiona aquilo que fazemos no dia a dia e aquilo em que acreditamos. Por outras palavras, seria a Presidente da ERS ser confrontada com prosa inteligente e bem escrita, questionando a sério a validade daquilo que faz.

Com os melhores cumprimentos e desejos de Boas Festas.