Talvez seja útil alargar o campo de visão da presente guerra entre Israel e o Hamas, na tentativa de ultrapassar as limitações do debate em curso na comunicação social e de, ao mesmo tempo, tentar a sua simplificação, a fim de tornar mais racional o que abunda em ideologia. Ainda para recordar que a função histórica da ideologia é tornar mais complicado o que na sua essência é simples.

Uma nota para informar os leitores de que estou sob uma forte influência da leitura recente do livro “Liderança” de Henry Kissinger, de onde retiro muito do que pretendo escrever de seguida, nomeadamente a importância da moral e da ética na resolução dos grandes problemas que afectam a humanidade. Por exemplo, não sei se a fundação do Estado de Israel na fase que seguiu ao fim da guerra de 1939-1945 foi a melhor decisão possível, mas sei que resultou certamente da dívida moral dos alemães em vista da morte de milhões de judeus. Da mesma forma, foi uma boa dose de moral e de ética que conduziram os estadistas daquele tempo a criarem as Nações Unidas e a NATO, além de iniciarem a construção da União Europeia. Ao tempo existiu um forte debate, nomeadamente na Alemanha, entre os possíveis interesses do povo alemão e as razões morais que prevaleceram.

Talvez não seja inútil recordar aquilo que, segundo Kissinger, o chancelar Alemão Konrad Adenauer disse no parlamento alemão em Setembro de 1951: “Em nome do povo alemão… foram cometidos crimes indizíveis que exigem reparação moral e material. Estes crimes respeitam a danos causados a indivíduos bem com a propriedade judaica cujos donos não estão já vivos…. Foram dados os primeiros passos a esse nível, mas muito resta por fazer. O Governo da República Federal apoiará a rápida elaboração de uma lei respeitante à restituição e justa implementação. Será restituída uma parcela identificável da propriedade judaica. Seguir-se-ão futuras restituições.”

Esta decisão foi aprovada com os votos contra de 14 membros do Partido Comunista e a abstenção de 86 membros da CDU, o partido do chanceler Adenauer, em que 106 votaram a favor. O Partido Social Democrático (SPD) na oposição, teve o voto a favor de todos os seus deputados. Como resultado, os pagamentos a sobreviventes individuais das perseguições políticas, raciais e religiosas nazis, a maioria dos quais eram judeus, atingiu 40,4 mil milhões de marcos em 1971, 77 mil milhões em 1986, e cerca de 96 mil milhões em 1995. Segundo Henry Kissinger o já então simples cidadão alemão Konrad Adenauer, de 92 anos, visitou Israel onde ouviu dizer ao primeiro-ministro de Israel Levi Eshkol: “Não esquecemos e nunca esqueceremos” A resposta de Adenauer foi então: “Sei como é difícil para o povo judeu esquecer o passado, mas caso deixásseis de reconhecer a nossa boa-fé, nada de bom daí resultaria”.

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Não resisti a escrever sobre estes simples factos de um outro tempo para fazer notar que as considerações éticas deixaram de estar presentes nesta guerra bem como no presente debate público. Do lado do Hamas porque ninguém esperaria que as tivesse, mas também do Governo de Israel que continua a julgar ter o direito, quase 80 anos passados, a todas as indemnizações e apoios, como justificação para as suas políticas violentamente expansionistas, à custa dos povos que ocupavam o espaço que é hoje o Estado de Israel.

Razão por que reconhecendo embora as boas intenções do Presidente dos Estados Unidos Joe Biden e porque também reconheço que já não vivemos em 1945, que lamento simplesmente que Biden não tenha dito a Benjamim Netanyahu durante a sua viagem a Israel, mais ou menos o seguinte: “caro Benjamim, tem 48 horas para abrir os portões de Gaza a toda a ajuda humanitária que ali está à espera, porque caso contrário os porta-aviões voltam à sua origem”. Na política, como na vida há limites para tudo, mesmo sabendo que a reeleição de Biden é importante para todo o planeta, mas também porque temos a obrigação de saber que sem moral e sem ética os resultados da actividade política só podem ser maus.

Neste contexto, é verdade que do radicalismo nunca resulta nada de bom, como é o caso do Hamas, mas acredito que há momentos em que a decisão justa fica na memória dos povos. Por exemplo, durante a entrada dos primeiros vinte camiões em Gaza dei comigo a pensar o que aconteceria se os camionistas de todos os restantes camiões decidissem também entrar, com ou sem autorização. Provavelmente nada.

Uma outra questão desta guerra é que todos dizem, penso que com razão, que o Hamas não representa o povo palestino, mas poucos se interrogam se o Governo de Israel representa o povo judeu. Penso que também não, nomeadamente em vista das manifestações dos israelitas anteriores à guerra, mas também porque sei que há milhões de judeus em Israel amantes da paz. Ou seja, não deveria este reconhecimento ser mais consensualizado na União Europeia, a fim de evitar declarações e visitas a Jerusalém que têm tanto de apressadas como de inúteis?

Infelizmente, tenho a consciência que na Europa e um pouco por todo mundo, há muita gente que gosta de aproveitar cada erro dos governos dos Estados Unidos, presentes e passados, para diabolizar a democracia americana e os seus mortos em defesa de outros países democráticos. O mesmo acontece com a União Europeia, mas o pior que podemos fazer é deixar de intervir democraticamente, nomeadamente criticando aquilo que consideramos estar errado. É esta a razão, ética e moral, que garante a superioridade das democracias no contexto da confusão em que estamos a viver um pouco por todo o planeta.