Lembram-se quando Barack Obama tinha acabado de ganhar as eleições presidenciais? Estava em estado de graça. A sua eleição ficou marcada por três grandes elementos, do ponto de vista europeu. Por um lado, acabava-se o pesadelo Bush, que quase tinha destruído as relações transatlânticas e podia voltar-se à normalidade diplomática da aliança permanente. Por outro, a eleição de Obama, o primeiro presidente afro-americano, deixou os europeus com a sensação que a América tinha dado um passo civilizacional importante, deixando para trás, de uma vez por todas, aquelas ideias do racismo e da segregação, que ficam tão mal numa democracia madura. Entre os analistas e os observadores europeus, havia mesmo a narrativa, às vezes mais ou menos explícita, que Obama ia mudar o mundo para (muito) melhor, quase que como uma espécie de Messias, que ia pôr tudo outra vez nos eixos e a Europa no lugar de destaque que ela merecia.

Se a narrativa que rodeava Obama era de otimismo irrealista, ainda que, durante a campanha eleitoral, o Democrata tenha vindo a Berlim dizer que cada um dos países europeus tinha que contribuir com 2% do PIB para o orçamento da NATO (o que, de resto, era um apelo que já vinha de George W. Bush, na última fase da sua presidência em que se esmerou por recuperar alianças tradicionais e novas alianças com democracias), Donald Trump, o atual presidente, é recebido na Europa com a predisposição oposta.

Na imprensa corre já a notícia que o afável Papa Francisco não lhe sorriu e organizam-se manifestações anti-Trump em Bruxelas. Abro um parênteses para dizer que a “narrativa Trump” me parece muitíssimo mais justificada. As pessoas podem sair às ruas pelos mais diversos motivos: o muro prometido com o México, as atitudes displicentes e xenófobas na campanha eleitoral, as confusões à volta dos serviços secretos que põem em questão a idoneidade do presidente e de parte da administração, ou até o aparente abandono dos valores liberais e democráticos que nos têm norteado nos últimos 70 anos. Mais: Trump gastou demasiado tempo a explicar que a NATO não só é inútil como esvazia os cofres americanos. Daí que seja justa a revolta europeia.

Mas também, tal como no caso de Obama, em que estávamos predispostos a distorcer os seus discursos em favor da imagem positiva, também estamos todos predispostos a não acreditar numa palavra de louvor que Trump dirija à Europa ou à Organização do Tratado do Atlântico Norte. Há razões para receber o presidente americano com má vontade. Mas é mais importante o conteúdo político desta curta visita e é nisso que nos devemos concentrar. A Europa não está preparada para garantir a sua segurança sozinha. Por isso, é do interesse europeu que esta visita seja um sucesso.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Neste caso, a medida do sucesso radica no entendimento em três questões. A importância do artigo 5º, a extensão e as prioridades da organização. Nenhuma destas questões é nova, mas o presidente é, e trás consigo novas formas de ver o mundo. É natural que muito fique em aberto, mas vamos assistir ao pontapé de saída de negociações informais e convém que estejamos atentos.

Em primeiro lugar, o Artigo 5º. Trata-se de uma cláusula que qualquer membro da aliança pode acionar no caso de ser agredido e que obriga todos os outros a envolverem-se na sua defesa. Diz o texto que um “ataque a um aliado é considerado um ataque contra todos os aliados”. Sobre os líderes europeus recai a responsabilidade de convencer diplomaticamente Donald Trump a reiterar publicamente o empenhamento americano na segurança coletiva dos membros da Aliança Atlântica. Caso contrário, é o primeiro passo para que a NATO se comece a desfazer.

O segundo ponto é o âmbito da organização. A NATO deve permanecer uma organização regional. As tentativas (poucas) de globalizar a aliança sob o pretexto de a manter viva – a presença no Afeganistão acima de todas – quase matou a segurança coletiva. A Aliança não tem capacidade de projeção de força a esse nível. Aliás, esta poderá ser a questão menos difícil. Se Trump aceita um mundo dividido em esferas de influência, em que os estados – neste caso a organização – mais poderosa deverá partilhar o fardo de apaziguar o estrangeiro próximo, a NATO continua a ter razão de existir como organização regional. A vizinhança da Europa compreende o Norte de África, fundamental para o equilíbrio no Médio Oriente e para o combate contra o terrorismo. O terrível atentado em Manchester poderá ter o potencial de unir, em vez de dispersar a segurança coletiva, que tem pelo menos este desígnio comum.

Finalmente – e porventura o assunto mais delicado diplomaticamente – está em causa a definição das prioridades. Trump vê como objetivo fundamental da sua presidência a derrota do Estado Islâmico (na qual a Europa pode e deve cooperar), mas poderá haver discordâncias de fundo quanto aos métodos. Central nesta discordância será o papel da Rússia.

Se a Europa já não pode ignorar Moscovo como uma ameaça depois da anexação da Crimeia e das permanentes interferências em assuntos europeus, nomeadamente através do apoio a partidos extremistas de esquerda e direita, assim como no uso da ciberespionagem para influenciar os resultados eleitorais, Trump quer Putin como parceiro nesta e noutras questões. Provavelmente, pouco se dirá sobre este assunto. Mas esta será uma tensão sempre presente. Uma espécie de elefante na sala, de que ninguém fala, mas toda a gente sabe que existe.

Não é muito frequente a política externa levantar tantas indignações e predisposições. Mas acontece. Tal como aconteceu com Obama, que, no entendimento europeu, tinha potencial para mudar o mundo – lembram-se do timing da atribuição do Prémio Nobel da Paz? –, também há uma narrativa oposta a Donald Trump. Mas é importante ter em mente que o que está em jogo é a nossa segurança e a função dos líderes europeus é arrancar compromissos relutantes de quem tem a faca e o queijo na mão.