Não sei se é de estar a ficar mais velho mas captam a minha atenção as mulheres que são capazes de se maquilhar nos transportes, que me parecem em maior quantidade hoje do que antigamente. Não sei explicar o fenómeno mas a desenvoltura de se embelezar em público traz uma paradoxal humildade. A mulher que se maquilha em público assume, afinal, que pode beneficiar de um extra que, sobre si, a tornará mais bela. É uma pessoa que convive bem com a ideia de que a formosura não depende do que já existe naturalmente em si—ser belo é saber pôr em mim o que em mim ainda não está. Eis a humildade possível da maquilhagem, especialmente expressa quando se compõe publicamente.

Claro que alguém poderá obstar, dizendo que o uso de maquilhagem é tão somente uma manifestação de vaidade, de nos rendermos ao projecto de nos fazermos mais belos. Ainda mais se essa vaidade for tão tranquilamente disposta para os olhos dos outros, rotineiramente no trânsito para os seus trabalhos e sem qualquer vontade expressa de serem incluídos no trajecto de auto-embelezamento alheio. Entre estas duas teorias divergentes acerca das mulheres que vejo maquilharem-se nos transportes públicos, tendo para a primeira, em que espero habitar algum tipo de benevolência e até espanto. Não quero ceder automaticamente aos meus instintos mais moralistas, no fundo.

Estas mulheres, sejam mais ou menos novas, trazem espelhinhos que as servem nesses momentos de aperfeiçoamento público. Manejam-nos habilmente, junto de outros apetrechos que sublinham contornos ou, pelo contrário, esbatem contrastes indesejados. São, para todos os efeitos, pessoas que transportam espelhos. E este facto, de pessoas que transportam espelhos, é imemorial. A minha tese é esta: não sabemos viver sem transportar connosco espelhos. Ser pessoa corresponde também à inevitável capacidade de transporte de superfícies luzidias ao ponto de nos podermos ver reflectidos nelas. Obélix tinha o seu escudo polido, Narciso o riacho cristalino. Todos transportamos espelhos.

(Quando comecei a escrever este texto, interessava-me principalmente chegar ao ponto de afirmar que levamos espelhos para o abismo. Tendo em conta que me fixei no exemplo das mulheres que se maquilham em transportes públicos, o projecto levou uma guinada. E reconheço que não sei a esta hora conciliar o propósito original com as ruminações mentais para as quais a minha curiosidade se abriu. Até porque não me parece particularmente simpático ou até inteligente fazer da mulher que se maquilha nos transportes públicos o exemplo de uma conclusão mais existencialista acerca dos espelhos que carregamos em direcção à cova. Mas também pode ser esse o encanto do texto que se escreve sem eficiente domínio do seu destino.)

Há, todavia, uma teoria mais ou menos estética, mais ou menos artística, de certeza teológica, que quero sugerir: talvez mais importante do que transportarmos espelhos para verificarmos quem somos e, a partir dessa verificação, suplementar beleza à nossa aparência, interessa transportar espelhos para que os nossos lugares de chegada se vejam a eles mesmos. Estou convicto de que a utilidade dos espelhos que transportamos se tende a desvanecer quando fica no exercício do auto-reflexo. Não me entendam mal: bem-aventurado quem se auto-reflecte e prolonga a prestigiada tarefa do conhecimento próprio. Mas ainda mais bem-aventurado será quem espelha também o lugar onde se encontra, para que os próprios poderes do local sejam interrogados.

Os cristãos são chamados a carregar espelhos, que furtivamente poderão consultar para aprumar o seu aspecto. Mas os cristãos são também chamados a transportarem espelhos para darem aos lugares que os provam a prova que os lugares também merecem. No caminho irremediável para a morte que nos espera, compete espelhá-la na hora derradeira. O privilégio do cristão é, nessa medida, ter já morte em vida para que quando a morte apareça, leve com um valente reflexo dela mesma. Já tenho murmurado semelhantes moralizações antes, e volto a repetir a mesma ideia: quanto mais vivinhos e solares nos comportemos, menos pertinência teremos na hora da partida. Quero levar o meu espelho para a morte para ela, ao encontrar-se comigo, se encontre com ela mesma. Menos com menos dará mais.

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