Percebemos, de forma talvez mais clara que nunca, que a mentira é um elemento estruturante da vida política. No folclore das redes sociais propôs-se já ‘galambar’ como novo verbo com o sentido de mentir, iludir, enganar. Uma pergunta que fica é qual o papel afinal da mentira na cultura em geral e na cultura política em particular. Precisamos de uma história social da mentira.

Numa breve pesquisa exploratória em dissertações de mestrado e teses de doutoramento em Portugal, só 16 documentos surgem (todos de mestrado que doutoramentos sobre mentira já seria demais!), a grande maioria na área da psicologia e, especificamente, mentira na infância e juventude; mentiras e patologias e, principalmente, sobre deteção de mentiras. Portanto, a mentira dos cidadãos que pode ser escrutinada pelo poder (médico, policial, etc.) mas nunca a mentira do poder que pode ser escrutinada pelos cidadãos. Como a ciência é sempre tão ideológica! Não se encontra uma única investigação sobre a mentira como instituição social ou a mentira como parte da cultura política ou a mentira na cultura em geral. De facto, o respeitinho é muito bonito. E o que é mais importante aprender nunca está nos livros nem em teses. Ou se arranja bons professores ou não se aprende nada!

A mentira implica uma relação e ela parece mais funcional numa relação de distanciamento de poder ou poder polarizado. A boa mentira mantém a distância, cria uma ilusão e as suas próprias condições de não verificação. Quem tem poder pode mesmo classificar documentos para que a mentira prevaleça… e quem tem mais poder ainda pode recorrer à polícia política. Propõe-se, assim, que numa relação mais paritária a mentira é menos útil. Se tal hipótese tem sentido, a mentira como instituição social é um instrumento de poder e, se prevalente, sintoma de deficit democrático. A descoberta em cascata de mentiras na instituição política só pode ser entendida como incompetência e desalinhamento dos mentirosos (temos cada vez piores mentirosos) ou então… uma sociedade mais atenta e menos permissiva ao poder e seus abusos.

Numa esboçada e simplista história social da mentira em Portugal (tema deveras interessante com dificuldade em caber num artigo de jornal), podemos identificá-la como relação com hierarquias a partir de baixo; como gestão de posições sociais de poder e prestígio e, finalmente, como a mentira grande que possibilita a (re)produção do poder organizacional e político. A mentira surge-nos, assim, como resistência de pobres e desconfiança de subalternos; esperteza de colonos e aparência de esforçados; estratégia de espertos e maquiavelismo de estrategas.

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Os que vieram do norte, os galegos (‘trabalhas como um galego’) chamaram ‘trasacordo’; os que vieram do sul, os mouros (‘és um mouro de trabalho’) chamaram ‘vagar’: dizer que sim ainda que talvez não se faça ou simplesmente, no máximo, se tentará ir fazendo. Estas ‘armas dos fracos’ evidenciam a mentira como resistência dos pobres num quadro de forte diferenciação socioeconómica num tempo de oposição entre grandes proprietários e jornaleiros. Uma outra evidência é a religião do átrio da igreja. Todos aqueles, mormente homens, que iam à igreja ao domingo e entravam e saíam ou nem entravam sequer. A possível utilidade dos padres e o seminário como educação mesmo sem vocação alimentavam esse regime moral duplo de que a mentira das sobrinhas dos padres também fazia parte. Esta desconfiança de subalternos e ambivalência perante uma autoridade imposta de fora relaciona-se certamente com a emergência dos ‘católicos não praticantes’, essa mentira aceite por todos e que é, porventura, a religião maioritária em Portugal.

Mas o império também foi um campo rico para uma história social da mentira. Por um lado, porque reencontramos a resistência dos pobres, agora com diversidades étnicas. Respostas relativas ao trabalho como ‘ainda patrão’ ou, se havia mais confiança, ‘o trabalho não acaba’ atribuível a africanos ou a ‘lesera baré’, leia-se a preguiça dos índios Baré, eram alguns dos correspondentes coloniais do trasacordo e do vagar da nossa cultura continental para justificar resistências ao trabalho. Mas o império também possibilitou referências a ‘ordens que vêm do Reino’ ou ‘ordens de cima, da metrópole’ como mentira. Esta esperteza dos colonizadores (sobre brancos, negros e todos os demais), umas vezes verdadeira, mas porventura uma mentira útil, as mais das vezes, fazia-se valer da impossibilidade de verificação por todas as distâncias do poder. Também não é difícil lembrarmos todos os emigrantes portugueses que retornavam cada verão nos idos dos anos 80 e 90 nos seus carros fantásticos (alugados por vezes) e cheios de prendas que evidenciavam uma aparência que dava apenas a entrever a gente esforçada que amargava a vida durante o ano para mostrar que valia a pena a falsa aparência em cada verão, quando voltava à terrinha. Valia a pena ver os vizinhos a virem às janelas a perguntarem-se a cada carro que passava a quem pertenceria.

Esta dialética entre mentiras para nos defendermos do poder e mentiras como manipulação do poder são, porventura, mentiras pequenas, ainda que se alimentem da mentira grande: a da legitimidade de alguns para governarem todos os outros. O Estado. Ser os primeiros num determinado território, o clã familiar mais antigo, ser os melhores ou ser simplesmente os eleitos pelos demais foram sendo as justificativas mais ou menos mentirosas de realidades que se compreendem melhor entre o ‘pôr-se a jeito’, cliques de poder, lutas fratricidas e traições várias. No Estado Moderno precisávamos de outras legitimações que pudessem esconder a prevalência da escolha de linhagens familiares, amigos e cabos de ordem. Assim, a mentira passou a aprender-se na universidade. É o tempo da estratégia dos espertos e maquiavelismo de estrategas.

Determinados cursos e determinadas escolas tornaram-se mais especializadas nesta área, ainda que não haja ninguém doutorado em mentira. As áreas de conhecimento são mais vastas, como o direito, a economia, a ciência política, a administração, etc. A história de várias das ciências sociais aplicadas, que logo se autonomizaram, é, em grande medida, uma história da mentira, ainda que sob outras denominações: ‘motivações’ para o trabalho e a produtividade, na administração e gestão; ‘medições’ da produtividade no caso da economia; ‘interpretações’ da lei no direito; ‘táticas’ e ‘estratégias’ de poder no caso da ciência política. Todos estes conceitos servem à legitimação da manipulação, por vezes de forma abusiva, por parte de lideranças para o acesso e manutenção do poder de um grupo. Esta visão cínica decorre do facto de tudo o que seja pensado em favor do cidadão será sempre manipulado em desfavor dele se não houver processos de efetiva fiscalização. E, nesse sentido, todos esses conceitos científicos incluem em si a perversidade da mentira. Claro que a universidade não chega e os partidos, a maçonaria e outros poucos clubes propiciam o resto da aprendizagem.

O Estado e, já agora, muitas das direções na administração pública, constroem-se grandemente ainda por legitimidades de tipo feudal, a chamada ‘confiança política’, que não é senão pessoal. Uma legitimidade de manipulação científica dá-lhes o verniz suficiente de meritocracia que serve de justificativa quando se percebe que o poder é endogâmico, reproduzindo linhagens familiares e outras quasi-famílias. O cidadão vai descobrindo que ‘o rei vai nu’: o Estado que não tenha o serviço público e o cidadão no centro não é senão, de facto, uma mera mentira grande.