O termo grego panourgos (plural, panourgoi) é formado por pan (tudo) e ergon (trabalho, obra). Panourgos é alguém capaz de fazer todas as coisas, alguém de extrema adaptabilidade, apto a responder à variedade de situações que o mundo oferece. Face aos imprevistos da roda da fortuna, nunca lhe faltam expedientes e saídas, meios e astúcias, recursos e engenho. O termo tem no seu sentido um pouco de «homem dos sete ofícios» e de «desenrascanço». Numa palavra: um habilidoso. As primeiras ocorrências do termo estão documentadas nos tragediógrafos. Talvez não seja por acaso. Trata-se precisamente da época em que a tradição se dissolve e as posições sociais se tornam incertas – cada qual faz por si. Pelas mesmas razões, o termo possui igualmente um travo negativo. Ser capaz de tudo significa ser desprovido de escrúpulos, vencer todas as inibições, ultrapassar os obstáculos. Para o panourgos tudo serve para levar a água ao seu moinho – está sempre de olhos postos nos seus próprios interesses, e apenas neles. Para esta acepção, os dicionários propõem várias hipóteses de tradução: patife, biltre, trampolineiro ou intrujão.

É assim que o termo é retomado por Aristóteles. No livro VI da sua obra Ética a Nicómaco, a escolha dos meios de uma acção tem sempre uma referência ao fim a alcançar, o que implica tomar em consideração os outros e o mundo, e, ao mesmo tempo, baseia-se numa disposição boa e estável, ou seja, saber o que fazer não é uma mera questão de optimizar os meios de um modo neutro com vista a um fim qualquer. O panourgos possui um conhecimento da situação, usa de tacto relativamente aos outros, prevê as consequências dos seus actos, mas em tudo isso tem apenas em vista um único fim: ele mesmo. Por isso, Aristóteles vê num tal ser, caricatura e distorção éticas, algo de deinós (terrível, formidável), na medida em que nele dão-se as mãos uma grande capacidade de compreensão e uma indiferença por tudo que não se refira a si mesmo. No panourgos, esse habilidoso, verifica-se a cisão entre as capacidades e os fins, ou seja, entre a técnica e a ética.

Na esfera política, o panourgos não se deixa enlear por considerações de outra espécie, além do exercício das capacidades que o têm a si mesmo como finalidade. É para isso que o poder serve, e só para isso: uma versão grotesca da unidade sujeito-objecto. Um tal poder não fica vinculado a nenhuma responsabilidade ou verdade objectivas. Essa vertigem do poder pôde ser observada recentemente no discurso do primeiro-ministro, António Costa, na sua intervenção na comemoração dos 50 anos do Partido Socialista. No mesmo discurso, consegue apelar à luta contra o populismo e diagnosticar que a “direita tem a inveja no seu ADN”, sem que aparentemente vislumbre a mais pequena contradição nas duas afirmações. Mas a pièce de résistance foi a atribuição da primeira maioria absoluta do PS a Ferro Rodrigues. Não se tratou apenas de menorizar o feito de José Sócrates; a operação não é de mera cosmética. Decorrido mais de um ano de maioria absoluta, as múltiplas vicissitudes do pessoal político contratado por António Costa mostram impudentemente que são a continuação do passado socrático do partido – a famosa tralha socrática, nos termos do não menos famoso eufemismo desresponsabilizante. Todas as mentiras, os embustes e as aldrabices do caso TAP o demonstram. A necessidade de reescrever a história prova à saciedade que José Sócrates – o panourgos originário – continua a ser senhor do PS. E António Costa sabe-o. Enredado num double bind, quanto mais o nega mais o fortalece.

Por isso, nestes casos não se trata de incompetência, antes é o poder panúrgico no seu esplendor: sem freio nem finalidade. Com a agravante de todos eles se sucederem – pasmem os homens, espante-se o mundo – em plena maioria absoluta. A surpresa, porém, é enganadora. A maioria absoluta faz cair as últimas inibições dos panourgoi e dá razão ao velho prolóquio: se queres conhecer o vilão põe-lhe uma vara na mão. Destituídos da solidariedade mínima que até Ali Babá e os seus 40 ladrões unia, os conflitos entres os panourgoi são inevitáveis e crescentes. A maioria absoluta revela-se paradoxal. Por um lado, proporciona-lhes o teatro de operações perfeito; por outro, obriga-os a colidirem nas respectivas trajectórias. Neste último sentido, fechados como ratos numa gaiola, ao sentirem o fogo da execração pública hão-de morder-se entre si. É da natureza das coisas. Aliás, segundo o relatado, já começaram.

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