Desde que a Uber (e, mais tarde, a Bolt) passaram a estar presentes em Portugal que não usava os serviços do táxi tradicional. Até há uns dias atrás. Porque decidi escrever este texto e recuperar alguns escritos que produzi há uns anos? Porque assinalo, com tristeza, que o serviço do táxi, não tendo mudado nada face o que lhe conhecia há uns anos atrás, é hoje muito mais fiável do que o das ditas “plataformas”.

Para entender como chegámos aqui – leia-se, para perceber como é que um serviço que nasceu disruptivo e de excelência adquiriu todos os vícios do incumbente “táxi” – vale a pena escavar um pouco o tema.

A Uber e a Bolt são, grosso modo, plataformas tecnológicas que fazem a mediação em ambiente online entre quem procura transporte em perímetro urbano e quem está disposto a oferecê-lo. A Uber e a Bolt não apresentam, nos diversos países onde atuam, um serviço único e homogéneo, adaptando-se não só às necessidades locais, mas também ao que são as regras e exigências colocadas pelos legisladores e poderes políticos nas diferentes jurisdições. A Uber nasceu como um dos expoentes máximos da “economia da partilha”, um fenómeno que tem expressão significativa no setor dos transportes (existirão milhares de plataformas de partilha neste segmento), mas também em inúmeras outras áreas, como por exemplo no alojamento local (Airbnb ou a bem portuguesa Uniplaces), nos correios, nas entregas ao domicílio, no financiamento de micro-negócios, na prestação de serviços de design, na partilha de espaços de trabalho, sendo as suas possibilidades quase infinitas.

Boa parte das dificuldades de afirmação das plataformas que fomentam a economia da partilha são de natureza cultural e normativa. As plataformas de partilha, entre outros aspetos, são particularmente disruptivas em relação aos nossos hábitos, à nossa noção de propriedade e à forma como encaramos o trabalho. Ora, com frequência temos vindo a desvirtuar os benefícios das plataformas e da economia da partilha para evitarmos as dores próprias de um processo disruptivo, limitando a mudança – e, até, eliminando o potencial disruptivo até um ponto em que as plataformas se tornam apenas meros concorrentes das soluções clássicas.

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Nesta linha de pensamento, há muito defendo que a Uber em Portugal deixou de ser um expoente da economia da partilha, para se tornar um mero espelho do incumbente “táxi”. Prescindimos dos benefícios da disrupção em favor de um fenómeno de substituição onde as plataformas se limitam a acrescentar concorrência ao serviço clássico de táxi, que se encontrava bastante degradado.

Explico: quantos motoristas da Uber ou da Bolt são free-lancers, a fazer três a quatro horas para juntar uns trocos e com eles pagar uma viagem a Aruba? E refiro este exemplo porque foi o motivo que me foi apresentado por uma motorista que me transportou em 2016, nos EUA. A motorista deu-me nota que só ia trabalhar na Uber até juntar os 3.000 dólares necessários para pagar as suas férias de sonho. Um outro contou-me que andava na Uber, trabalhava mais arduamente do que no seu emprego anterior, mas sendo ele “patrão de si próprio”, e guiando o seu próprio carro (que já estava pago), nas seis horas de trabalho em horário noturno, estaria a acumular o suficiente para pagar as propinas na Universidade de Georgetown, que ascendiam a 60 mil dólares por ano. As plataformas de partilha nestas situações que descrevo – para muita gente, “precárias” – têm o potencial de ampliar a eficiência económica e o aproveitamento dos ativos – neste caso, o próprio carro, que não é comprado especificamente para o serviço de transporte (mas poderia ser de alojamento) – e garante que a remuneração é orientada para quem presta efetivamente o serviço. Favorece a qualidade de vida e aumenta a mobilidade social. Mais, numa altura onde estamos tão preocupados – e bem – com o esgotamento dos recursos do planeta, e até em que há falta de matérias-primas, a economia da partilha é a forma mais racional de utilização dos bens.

Em Portugal (mas não só), porém, os empresários do sector do transporte – explorando uma já habitual tendência para a preocupação que o poder político e as massas pensantes têm em relação a tudo o que possa vir a ser um serviço que considerem ser um “biscate” (a menos que sejam serviços ilegais de que os próprios beneficiam) – conseguiram assegurar junto do legislador que só podem circular viaturas que estejam legalizadas em empresas de transportes de passageiros (leia-se, um sucedâneo do serviço de táxis). Ora, estas empresas são detidas por pessoas que investem em frotas e contratam motoristas, procurando atrair para si o nicho de mercado daqueles que não estão satisfeitos com o serviço tradicional de táxi – substitui o táxi no espaço de ineficiência que este tenha deixado vazio. A Uber e a Bolt em Portugal têm vindo a “fazer-se” à custa de empresários que foram adquirir carros em leasing ou renting, e contratar motoristas, sabe-se lá onde, para conduzirem a frota. A Uber em Portugal não ampliou as possibilidades no plano laboral, os motoristas estão num regime de subordinação idêntico (ou pior) ao do mero condutor do táxi (que não empresário do táxi). Como na prática a Uber ou a Bolt não são em Portugal um expoente da economia da partilha – ninguém aloca carros que já estão comprados, ou cujo custo já existia (“custo afundado”) –, e os encargos são elevados, num mercado onde a concorrência se faz, muito, no preço, o serviço tem vindo a degradar-se – os carros são cada vez piores, e já não é raro encontrar motoristas que na sua condução em nada diferem dos taxistas-fangios que habitualmente combatem nas ruas da cidade de Lisboa (com a agravante de que muitas vezes não conhecem as ruas, e frequentemente se recusam a fazer as viagens que lhe são alocadas pela plataforma, cancelando-as). Os serviços de transporte associados a plataformas estão condenados, neste quadro regulamentar e cultural, a oferecer um serviço tendencialmente mau e onde os ganhos mínimos vão parar aos mesmos do costume – aos “empresários do sector”.

Ironia das ironias, a precariedade (entendida no sentido marxista, de exploração de mão-de-obra barata) que possa existir em Portugal resulta em grande medida de tudo se ter feito para forçar a Uber e a Bolt a serem iguais ao táxi, a terem um quadro regulamentar que não fuja muito daquilo que já existia, incorporando os mesmos problemas e vícios.

O mesmo fenómeno – embora com menor intensidade – ocorre no Airbnb, onde boa parte da oferta já não é feita em contexto de partilha, mas de mero fenómeno de substituição. Com a recente decisão judicial que baliza o alojamento local em prédios que não estejam exclusivamente alocados à atividade turística, os benefícios da economia da partilha ficam ainda mais limitados, em favor dos empresários da hotelaria ou dos grandes investidores. Deixassem a Uber, a Bolt, o Airbnb, e a generalidade das plataformas serem expressões efetivas de uma economia de partilha, e teríamos mais rendimento nos bolsos de quem presta efetivamente o serviço, teríamos muito mais capitalismo popular, e menos nas mãos dos intermediários que encontram no quadro disléxico criado pelos reguladores oportunidades para gerar rendas de investimentos financeiros protegidos. Teríamos, ainda, uma forma muito mais racional de utilizar os nossos bens, de acrescentarmos complementos de rendimento às nossas atividades tradicionais, reduzindo, paradoxalmente, a precariedade que nasce de algumas formas menos saudáveis de relação laboral.

Para isso, seria fundamental que legisladores, governantes e políticos em geral se preocupassem em compreender as disrupções da economia digital, bem como os valores emergentes das novas gerações, sem os preconceitos das ideologias políticas em que foram educados, pensadas para dar resposta aos problemas económicos e sociais dos séculos XIX e XX e que, em muitos aspetos, estão ultrapassadas.