Também eu, em mil desabafos mal pensados, sempre achei que as coisas más deviam acontecer, sobretudo, aos maus. É verdade que desabafava, como todos nós, esse presságio sem pensar. Tinha qualquer coisa de tribunal sumário? Tinha. Mas, um bocadinho a exemplo das histórias do cinema, chega-se ao fim da história e quem perde ou quem morre? Os maus. Há uma história de amor. E que é feliz para sempre? Os bons. E, pronto, à boleia disso, sempre achei, como todos nós, que as coisas ficavam todas mais ou menos arrumadinhas – para meu descanso, digamos assim – se os maus perdessem mais vezes. Haveria (vejam do que somos capazes quando não pensamos) uma espécie de ordem natural das coisas. Os bons para um lado; os maus para o outro. Como se houvesse uma espécie de omnisciência na matéria que não contemplava o acaso, a necessidade, as contradições ou o azar. E, como todos nós, nessas circunstâncias, não pensava mais nisso. Era um desabafo. E nada mais.

Dir-me-ão que seria uma visão com o seu quê de cristão. É; sim. Eu assumo-o; claro. Não andando Deus a jogar dados com o Universo, até o aleatório teria de ter um sentido de justiça. Qualquer coisa mais ou menos assim. Logo, se os maus estivessem prontos a “esticar-se” não haveria volta a dar-lhes e o sofrimento (ou o castigo…) jamais sobraria para os bons.  É claro que, se eu pensasse por breves segundos, isso de pôr justiça no aleatório faria com que a vida nunca fosse apanhada de surpresa. Que ela não tivesse o arrojo de quem cavalga uma onda. Ou não fosse um reboliço de coisas quando elas mexem todas com todas. Porque a ideia de uma “ordem natural” nos remete para a… ordem. Qualquer coisa de sereno e meticuloso. Alinhadinho. Uma engrenagem — funcionante! — de grandes dimensões. E, lá está, com um grande arquitecto, na mesa do comando, mexendo todos os cordelinhos.

Claro que “a ordem natural das coisas” já me começou a irritar quando, recentemente, todos acabámos por viver a morte dos mais velhos como uma coisa “natural”. “A ordem natural da vida” faz com que os mais velhos morram mais e morram primeiro. Logo, esqueçam a negligência dos cuidados que eles mereciam e não tiveram. E, a protestar, protestem com o arquitecto de todas as ordens naturais. De acordo?…

A par disto tudo — um pouco como quando troco de fila na auto-estrada, e fico sempre com a sensação que a minha nova fila é a que mais engonha — ao conversar com os meus botões, fui-me dando conta que há inúmeras circunstâncias em que a sorte protege os maus. Isto é, que parecemos estar, vezes demais, na fila errada. Que, muitos, não são castigados. E, mais, que são indemnizados mesmo desconfiando nós que eles são mesmo maus. De tal forma é assim que fui ouvindo que a ‘maldade conserva”. Isto é, a maldade protegê-los-ia da “ordem natural das coisas”. E aí, reconheço, não pretendendo mandar ninguém para o inferno (por mais que espere que os maus sofram um bocadinho mais que os bons, o que – desconfio – me desconta alguns pontos na minha relação com “a ordem natural das coisas”) já me sinto um bocadinho insultado. Desculpem. Mas ninguém resiste a tantos aditamentos à “ordem natural”.

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Entretanto, tive um azar. Dos grandes. E vim parar a uma cama de hospital. Aí, pensei para comigo: ou esgotei os pontos que me faziam falta para que “a ordem natural da coisas” não se revoltasse contra mim; ou o grande arquitecto da ordem natural das coisas está em teletrabalho e, portanto, menos disponível para pôr justiça no mundo. Foi quando, nesse momento, me entrou, quarto de hospital adentro, uma orientadora espiritual a falar de sacramentos. (Atenção, eu gosto de tudo o que é sagrado!) Mas, a nossa conversa começou mal.

– Então, teve um imprevisto…

Ora, não é bem assim! Um imprevisto entra, para mim, é privilégio. Um azar do diabo já é outro campeonato. Certo? É castigo! Pior do que até eu seria capaz de desejar aos maus.

Estava eu, ainda, a recompor-me de uma conversa estranha (pensando, para mim, o que é tem demais assumirmos que, muito mais que o castigo, a religião devia servir como um exercício de compaixão, de compreensão e de bondade) entra-me um enfermeiro – frágil mas muito boa pessoa — que não foi capaz de me dizer melhor que isto:

– “Uma pessoa nunca sabe para que o está guardada!”

Ora, alguém sensato, no meio disto tudo. Se houvesse uma “ordem natural das coisas” claro que um destino traçado  seria uma espécie de aditamento óbvio à tal ordem. “Quer as coisas todas planeadas, certinhas, a funcionar? O seu destino é uma preocupação que fica só para nós!”  Mas, agora, um azar do diabo, mostra-nos o quê? Que “a ordem natural das coisas” é banha da cobra. Usada porque há quem  se justifique com “a ordem natural das coisas” para achar que — da relação entre os géneros, à relação entre os povos — “as coisas são como elas são”. A ironia é quem mais usa como argumento contra a mudança “a ordem natural das coisas” — o que não escolhe cores, esquerda ou direita,  ou seja o for — não está contra a desordem das coisas. Está contra a vida. E, mesmo quando se refugia nos números ou na ciência, fá-lo não numa perspectiva religiosa. Mas, tão só, esquizoide. Num registo assustador: “Fujam da vida que ela, sem a ordem natural das coisas, é um caos!”

Não! Eu tive um azar dos diabos. O que é uma categoria superlativa de imprevistos; sim. Mas quando somos capazes de perceber que a vida é mais parecida com a metafísica e o topo dos topos de gama do pensamento científico é a subjectividade, precisamos duma ordem natural para quê ? A vida procura o equilíbrio. Não a ordem. A “ordem natural” atenta contra o equilíbrio. Porquê? Porque, mesmo diante de azares do diabo, a vida é arte de transformar o sofrimento num exercício ainda mais clarividente conhecimento, de determinação e de beleza. E não há ordem natural que chegue aí.