As falhas de abastecimento de equipamentos de diagnóstico e tratamento da covid19 parece ter tornado consensual a ideia de que o país não pode ficar dependente de terceiros para ter acesso a produtos críticos, sobretudo em tempos de pandemia. Muitos referem a necessidade de Portugal fabricar localmente ventiladores, máscaras, kits de teste e outros dispositivos médicos. Caso não se consiga o pleno da produção nacional, ao Estado incumbe pelo menos assegurar a gestão das respectivas cadeias de fornecimento, dizem.

Em tempos estranhos este sentimento nacionalista bacoco faz o seu caminho.

A zaragatoa é um instrumento composto por uma haste de plástico flexível com uma ponta de algodão que serve para recolher amostras biológicas na cavidade nasal. Todavia, nenhuma pessoa ou empresa no mundo a consegue produzir sozinha. Até chegar à fábrica, o algodão precisa de ser produzido. É plantado noutros países e colhido por milhares de agricultores de paragens longínquas com recurso a produtos químicos fabricados em geografias distintas e com a ajuda de máquinas concebidas pela engenharia de outros estrangeiros. Por sua vez os químicos são compostos por elementos extraídos em locais diferentes, por outras pessoas com equipamentos diversos, etc., etc. O ciclo repete-se infindavelmente e ainda nem sequer nos debruçamos sobre a imensa teia de relações necessárias para obter a haste plástica flexível e nem referimos que, para assegurar testes covid fiáveis, o algodão deve ser esterilizado e as zaragatoas com as colheitas devem ser introduzidas num tubo laboratorial próprio, com tudo o que isso implica também em termos de cadeia de fornecimento.

É por isso extraordinária a presunção de que uma aparentemente trivial zaragatoa possa ser um produto inteira e genuinamente português. Ou, ainda mais quimérico, pressupor que alguém consiga mapear toda a complexa teia de interacções necessárias para a produzir. Uma zaragatoa lusa é algo que não existe e jamais existirá. Assim como nunca o Estado fará a mínima ideia de qual é a sua completa cadeia de fornecimento global. Só o comércio internacional livre e a integração espontânea das economias no permite aceder a bens tão essenciais.

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Mas é um facto que os fornecedores de produto acabado para Portugal têm sido empresas da China que sofreram paragens bruscas com a crise sanitária. E também é verdade que o aparente paulatino regresso à normalidade de laboração não desbloqueia instantaneamente os estrangulamentos da oferta para a procura actualmente existente.

Todavia os políticos não podem ficar isentos de responsabilidade pela falta de previdência e consequente ruptura de stocks no sistema de saúde. A composição e gestão dos fluxos da chamada “reserva estratégica do medicamento” são definidos por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da defesa nacional e da saúde, através do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos. O que verificamos no país não foi uma falha de mercado nem um efeito nefasto do comércio internacional. Apesar do tempo que tiveram à sua disposição que a evolução prévia da doença noutros países permitiu, os dirigentes da administração pública não acautelaram o reforço das reservas de material para níveis minimamente razoáveis nem equilibraram de forma inteligente a escolha e origem dos fornecedores a fim de garantir a continuidade e o nível de serviço num sector fundamental como a saúde.

Convém por isso que os agentes públicos aprendam com os seus erros, passando a planear de forma prudente e precavida. O Estado, em vez de procurar dirigir politicamente a economia e a indústria local, deve preparar-se para com a retoma dos circuitos internacionais obter os equipamentos de que precisamos em quantidades suficientes para protecção da nossa saúde.

Não aproveitar os preços mais competitivos que divisão global do trabalho e a especialização que o comércio internacional nos permite é uma forma de aumentar ainda mais os encargos suportados pelos contribuintes e de ficarmos menos capazes de combater uma futura covid20.