É notório o esforço dos partidários da legalização da eutanásia e do suicídio assistido de tentar, através da linguagem, branquear ou atenuar a crueza e gravidade daquilo que representa a quebra do princípio da proibição de matar (“não matarás”), princípio em que tem assentado a nossa civilização e a nossa ordem jurídica.

Os eufemismos sucedem-se. Fala-se em morte assistida, como se estivesse em causa a prestação de assistência aos moribundos e alguém a tal se opusesse. Fala-se em morte digna, como se a morte provocada se revestisse de particular dignidade.

Da leitura do projeto de lei recentemente apresentado pelo Bloco de Esquerda sobre esta questão, é impossível não notar mais um esforço neste sentido do recurso ao eufemismo. Esse projeto nunca usa as expressões “eutanásia” ou “suicídio assistido”. Fala sempre em antecipação da morte. É claro que quando se provoca a morte de alguém, seja quando for e seja qual o motivo, a morte da vítima é antecipada, porque ninguém é imortal. Mas ninguém se lembraria de dizer que quem comete um homicídio antecipa a morte da vítima. O uso desta expressão (antecipar a morte) inculca a ideia de que está em causa uma morte inevitável e iminente, o que retiraria gravidade ao ato. Mas a morte é sempre inevitável. Nem sempre está iminente, mas o facto de o estar não retira gravidade ao ato de a provocar.

E, lendo com atenção o projeto de lei, dele não decorre que a eutanásia e o suicídio assistido sejam legais apenas em caso de morte iminente, ou de doenças terminais, como sucede, por exemplo, no Estado norte-americano do Oregon, onde o suicídio assistido é legal apenas quando o prognóstico aponta para a morte dentro de um máximo de seis meses. Neste projeto, fala-se em «lesão definitiva ou doença incurável e fatal». O que parece poder significar uma deficiência irreversível, ou uma doença crónica, que permitam viver ainda durante vários anos. Mesmo nesses casos, será legal antecipar a morte.

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Outro eufemismo a que recorre esse projeto de lei é o da palavra despenalização, quando o que está verdadeiramente em causa, para além da despenalização, é a legalização. Uma conduta apenas despenalizada não passa, por isso, a ser lícita, a beneficiar de cobertura legal e a poder ser praticada com a colaboração ativa do Estado e dos seus serviços (de saúde, neste caso). O consumo de droga foi em tempos despenalizado, mas não legalizado: o Estado não passou a fornecer droga a quem o solicite, seja em que condições. A eutanásia e o suicídio assistido, de acordo com esse e os outros projetos em discussão, passarão a ter, pelo contrário, cobertura legal e a ser praticados com a colaboração ativa do Estado e dos serviços de saúde públicos e privados. Mas falar em despenalização, e não em legalização, também pode suscitar mais facilmente a adesão de pessoas menos informadas, a quem a penalização (associada quase sempre a penas de prisão), por si só e de um modo geral, não suscita particulares simpatias

Um expediente semelhante se notou (e então ainda mais) a propósito da legalização do aborto, insistentemente designada como despenalização da interrupção voluntária da gravidez (outro eufemismo).

Para além destas questões de linguagem, a leitura do projeto de lei do Bloco de Esquerda suscita mais alguns comentários.

Já muitos salientaram a preocupação do projeto em garantir que a expressão da vontade da pessoa que requer a eutanásia e o suicídio assistido seja consciente, firme e reiterada. Por isso, poderá ter de ser repetida cinco vezes. Essa preocupação (que não duvidamos seja sincera da parte dos proponentes) já indicia, por si só, que haverá riscos de decisões precipitadas ou mal interpretadas, em relação à mais irreversível e irremediável de todas as decisões. Mas não é a repetição dessa expressão de vontade (por cinco ou mais vezes que seja) que afasta esses riscos.

Poderá ser autêntica e genuína a expressão de vontade de prática da eutanásia e do suicídio assistido da parte de um doente que experimenta (de acordo com a exigência constante do próprio projeto) um «sofrimento duradouro e insuportável»? Ou este sofrimento insuportável não induz a manifestações de desespero que não exprimem a vontade mais autêntica e genuína? Ou não se esconderá por detrás dessas manifestação de vontade, não o desejo de ser morto, mas o de viver de outra forma, sem esse sofrimento tido por insuportável? Por muitos repetido que seja o pedido, a dúvida persiste sempre.

Seja como for, não é a repetição do pedido que alguma vez tornará legítimo o ato de provocar a morte de outrem. Nem se diga que se trata de respeitar a liberdade da pessoa como valor supremo, porque pôr termo à vida é destruir a fonte e a raiz da própria liberdade (sem vida, não há liberdade).

E, bem vistas as coisas, a decisão final cabe ao médico, a quem cabe interpretar conceitos tão indeterminados como o de “sofrimento insuportável” e ajuizar da verificação dos demais pressupostos legais do pedido. O conceito de “sofrimento insuportável” pode ser interpretado de forma estrita, partindo da asserção de que os cuidados paliativos podem sempre tornar “suportável” o sofrimento. Ou pode ser interpretado de forma alargada, como um conceito necessariamente subjetivo (o que será “suportável” para uns, não o será para outros), deixando o critério ao próprio doente (só ele saberá se o seu sofrimento é, ou não, “suportável”). Cabe ao médico seguir um ou outro critério.

Os médicos (e pouco adianta que sejam vários) ficam, assim, investidos do poder de decidir se outra pessoa deve, ou não, viver. E de agir em consequência. Um poder que mais ninguém tem em ordens jurídicas como a nossa, que há muito aboliu a pena de morte. Um poder que, naturalmente, muitos consideram que desvirtua em absoluto a própria missão da medicina.

Mas não são só os médicos executores da eutanásia ou do suicídio assistido quem ficam comprometidos com a legalização desses atos. O respeito pela vontade do doente, mesmo que este a exprima de forma repetida e autêntica, não descompromete a sociedade e o Estado. A resposta destes a um pedido de quem está marcado pelo sofrimento e pelo desespero não pode ser a morte provocada (ou antecipada), que não elimina esse sofrimento e confirma esse desespero. Deve ser a de quem não desiste de aliviar esse sofrimento e de suscitar a esperança.

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz