Os franceses não têm sorte com a literatura. O seu maior escritor do século XX, Louis-Ferdinand Céline, era um anti-semita, e não pode ser comemorado, nem sequer publicado integralmente. Agora, o único escritor francês cujos livros suscitam recensões em Inglaterra e nos Estados Unidos mesmo antes de serem traduzidos, Michel Houellebecq, tem a reputação de detestar, em medidas iguais, o Progresso e o Islão, o que já o levou a tribunal por “incitação ao ódio”. No entanto, a indústria cultural francesa precisa de Houellebecq (mais do que do benigno Patrick Modiano, Prémio Nobel) e da sua auréola de escândalo, sem a qual hoje não há sucesso, e portanto há que resgatá-lo, arranjar-lhe um lugar.

E a melhor maneira é não o levar muito a sério, tratá-lo como um comediante. Houellebecq, no seu último romance, Submissão, agora publicado em português, imagina a França submetida a um regime islâmico? Costumava ser, se a memória não me falha, um slogan de Le Pen (qualquer coisa como “vote Frente Nacional para a França não se tornar uma república islâmica”…). Mas, dizem-nos agora os comentadores, Houellebecq não é bem a versão literária de Marine Le Pen: Submissão é apenas um livro irónico, divertido, para rir, com que não nos devemos preocupar. Faz lembrar a célebre crítica de André Gide a Bagatelles pour un Massacre de Céline: não pode ser a sério…

Sim, Submissão é uma ficção delirante, uma caricatura divertida. Mas é também uma reflexão séria sobre a Europa contemporânea, e que merece ser examinada seriamente.

Houellebecq parte de uma possibilidade perversa: e se o Islão fosse a solução para os impasses da França? É à direita que o islamismo suscita mais hostilidade. Mas talvez só os islamistas possam proporcionar às direitas o que elas desejam: uma restauração tradicionalista na moral e nos costumes, e uma real liberalização da economia. Em Submissão, Houellebecq imagina o novo governo islâmico, em 2022, a privatizar o ensino e a segurança social, a fazer as mulheres regressarem a casa, e a assentar a economia em pequenas empresas privadas. Tudo justificado pela doutrina islâmica, dispensando as referências ideológicas europeias, e sem “convulsões sociais”, porque a esquerda, intransigente com o FMI, não saberia reagir a uma religião associada ao Terceiro Mundo e às “minorias”.

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A segunda provocação do livro de Houellebecq está no seu anticlímax. Submissão não contém as cenas apocalípticas previsíveis. No início, há intimações de guerra civil. Mas pouco acontece. A Fraternidade Muçulmana é um movimento islamista, mas a quem repugnam as brutalidades do jihadismo. Aliás, conquista o poder nas eleições presidenciais de 2022 com os votos dos partidos da V República, socialistas e gaullistas, que decidem votar no candidato muçulmano para impedir a vitória de Marine Le Pen. Le Pen tiraria a França do euro e da União Europeia. O novo presidente islâmico, pelo contrário, é um entusiasta da integração europeia, em que logo procura incluir os Estados muçulmanos do Mediterrâneo. Para primeiro-ministro, escolhe François Bayrou, “centrista” e “europeísta”. O Islão é assim a maneira de a velha oligarquia se conservar no poder e prosseguir os seus projectos internacionalistas. De resto, a vida francesa continua, apenas com algumas erratas: as secções “kosher” desaparecem dos supermercados, e as mulheres vestem-se com mais resguardo.

Houellebecq põe o protagonista e narrador do romance, um professor catedrático de literatura, na pista dos escritores convertidos ao Catolicismo no fim do século XIX, como J. K. Huysmans. Huysmans aderiu a uma religião que, como todos os cavalheiros progressistas, se habituara a menosprezar como uma simples crendice, mas que finalmente lhe surgiu como a única via para ultrapassar o mundo decadente do liberalismo e da ciência moderna. Para o protagonista de Submissão, porém, o Catolicismo, despojado entretanto do seu lado “misterioso, sacerdotal e monárquico”, faz agora parte desse mundo decadente. Não é alternativa. A alternativa é o Islão.

A questão de Houellebecq não é nova. Auguste Comte foi o primeiro a ensinar que a humanidade podia descartar o Cristianismo, mas não o dogmatismo religioso. Para Comte, um dogma de tipo medieval era indispensável à vida “normal” dos seres humanos. Um regime sem uma autoridade espiritual protegida do choque das opiniões, seria apenas uma receita de divisão, instabilidade e angústia. Submissão desenvolve-se à volta desta tese de Comte, de quem Houellebecq prefaciou há uns anos uma pequena reedição. Comte ainda pensou criar uma nova religião fundada na ciência e no “culto da humanidade”. Mas o pressentimento de que o verdadeiro sucessor do Cristianismo medieval poderia ser o Islão é antigo. Joseph de Maistre admitiu algures que talvez tivesse sido preferível uma vitória muçulmana em Tours em 732, para poupar a Europa às revoluções protestante e liberal.

Mas não vive a Europa num ambiente de “descrença” já sem remédio? Como nota um dos personagens de Submissão, precisamente o reitor da nova Universidade Islâmica da Sorbonne, o ateísmo contemporâneo é demasiado “superficial” para resistir. Os secularistas europeus, uma vez no poder, usaram o Estado para fazer recuar o Cristianismo, sem perceberem que, recorrendo aos mesmos meios, o seu “homem novo” será igualmente reversível.

Tudo isto é inquietantemente plausível, não apenas graças à arte de Houellebecq, mas porque para nós, modernos, a questão neste assunto não é tanto a verdade, mas o poder. Afastámo-nos do Cristianismo, não por nos parecer uma religião falsa, mas por nos parecer uma religião fraca, de “profetas desarmados”, que Gibbon chegou a responsabilizar pela queda do império romano. Maquiavel propôs o patriotismo da antiguidade clássica como uma “religião” mais efectiva para integrar os indivíduos num movimento imperioso. Desde então, várias ideologias têm pretendido desempenhar esse papel. Hoje, o Islão, com a sua demografia, o seu petróleo, e os seus fanáticos, permite imaginar uma submissão interessante, até pela curiosa possibilidade, a que o herói de Houellebecq naturalmente não resiste (ou este não fosse um romance de Houellebecq), de interpretar o islamismo à luz da História de O (o homem submete-se a Deus, mas para que a mulher se submeta ao homem). O professor convertido de Submissão não só obtém, como contrapartida da sua nova fé, um salário triplicado, mas também três esposas escolhidas entre as alunas da universidade.

Lido assim, este não é um romance sobre uma qualquer “ameaça islâmica”, mas sobre a tentação do poder, e principalmente sobre a venalidade e o oportunismo da oligarquia política e intelectual contemporânea, de quem é possível suspeitar que esteja disposta a todas as sujeições para manter e acrescentar os seus privilégios. Houellebecq apaga as últimas ilusões: mesmo que tudo aparentemente mudasse, os nossos oligarcas continuariam na mesma.