A História julgará, severamente, o Ocidente, pelas razões que encontrou para deixar a Ucrânia, uma comunidade que aspirava à liberdade, ficar à mercê de um poderoso vizinho transtornado pelos seus delírios de grandeza perdida.

A História julgará, severamente, os dirigentes da Alemanha, em particular a Chanceler Merkel, por conviverem fraternalmente com esse vizinho transtornado, na esperança de que essa comunhão na mesa da abundância lhe regularizasse os apetites assassinos.

A História julgará, severamente, o Ocidente, em geral, por aceitar, sem quaisquer rebuços morais, que a força do dinheiro, mesmo o de origem mais negra, constituísse passaporte suficiente para a aquisição de bom nome, direitos e privilégios.

A História não perdoará que, depois da Segunda Guerra Mundial, fosse possível de novo pactuar com o extermínio material e humano de toda uma comunidade, só porque ela foi julgada como um empecilho para os planos imperialistas do agressor. Depois de tudo o que já se sabia sobre a invasão da Rússia à Ucrânia, a descoberta agora do genocídio perpetrado nos territórios brevemente ocupados, é uma repetição dantesca do que os nazis já fizeram há 80 anos e constitui um ponto de não retorno ao mundo da normalidade que insistíamos em sonhar possível.

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A História não perdoou a Chamberlain e Daladier, os líderes das potências democráticas da altura, por se terem ajoelhado a Hitler em Munique em 1938, aceitando o injustificável na ilusão de que a paz seria o prémio. A História também não vai perdoar agora às democracias escondidas atrás da cortina da NATO, o terem repetido um salvo-conduto a um monstro assassino, na ilusão de que o resto do Mundo seria poupado. Assim como Hitler depois da Áustria e da Checoslováquia exigiu a Polónia, Putin está apenas no início do ajuste de contas da sua loucura com a geografia. Procura-se, desesperadamente, entre as sociedades democráticas, por um Churchill. De momento, temos Boris Johnson que elevou à condição de Lord um dos veículos do dinheiro e da dominação do Kremlin assim como nos anos 30, Eduardo VIII confraternizava com os nazis. E em França temos um Macron que insiste no respeito institucional ao monstro porque ele está sentado num dos tronos nucleares. Falta hoje qualquer coisa para que o resultado não venha a ser, desta vez, o oposto de 1945. Infelizmente não é certo que Biden tenha as condições políticas e anímicas que, na altura, o também idoso Churchill, galhardeou.

As comparações com o final dos anos 30 do século passado parecem óbvias. Uma potência ferida (na altura a Alemanha, hoje a Rússia), fica refém de um indivíduo que nada tem de recomendável. Em ambos os casos, os actores eram provenientes do Lumpen social e cultural de sociedades que até eram culturalmente sofisticadas. Hitler era um pobre diabo, ressabiado pela sua insignificância, imbuído de uma pseudocultura de café (cervejaria, no caso da Alemanha) e Putin era um picheleiro dos negócios sujos da União Soviética. Só que ambos foram capazes de tocar, até às profundezas, as teclas do ressentimento nacional, utilizando a mentira sem limites nem restrições. Ambos foram inexcedíveis como mestres no condicionamento comportamental dos seus concidadãos, fosse pelo constrangimento através da força física ou pelo canto das ideias. Ambos levaram os seus compatriotas ao altar do sacrifício, como se fossem um bando de carneiros dóceis. Falar de Hitler nos anos 30, exigiria falar também de Estaline cujo modelo-base não diferia muito do de Hitler, apesar das diferenças que reclamavam estridentemente.  Hitler, Estaline e Putin conseguiram todos o milagre de aliar a sua missão ao serviço dos interesses egoístas das suas castas, à angariação – feita mesmo com cruzadas abertas – da solidariedade de outros povos que, em boa verdade, tudo deveriam temer dos seus objectivos confessos. Ver os Partidos de extrema-direita e de extrema-esquerda que proliferavam nos diferentes Países da Europa nos anos 30, cantar orações a Hitler ou a Estaline quando estes sonhavam em exterminá-los, é como olhar hoje para tantos políticos em França, Itália, Inglaterra ou nos Estados Unidos, que, recebendo subsídios em rublos para os seus gastos do dia-a-dia, dizem beatificamente lutar pela suposta independência das suas paróquias. Putin hoje, como Hitler e Estaline na altura, foi exímio no uso de espontâneos servidores fora de portas. Impressionante como conseguiu mesmo convencer os ingleses de que o melhor para eles era destruir a União Europeia e como ajudou um corrupto, ignorante e amoral empresário falido, a ser eleito para presidir aos destinos da potência sua principal inimiga. Assim como o povo Judeu do Séc. VI a.C. não percebeu porque o seu Deus o abandonou ao invasor babilónico, não impedindo que fossem escravizados, também a nossa Fé na Humanidade, passa por momentos incompreensíveis.

Mas sejamos claros, não há regras determinísticas inscritas no ADN do tempo, que nos obriguem a passar repetidamente pelas mesmas vicissitudes. A História é o produto caótico de inúmeros acasos, encontros e desencontros, e não segue uma cartilha pré-escrita. Os ensinamentos que o conhecimento da História nos proporciona limitam-se a ajudar-nos a entender como reagem os Homens em circunstâncias que nós consideramos semelhantes. O conhecimento da História é uma ajuda à compreensão, não é predestinação. Olhar para o passado, torna o presente mais compreensível, mas não mais do que isso.

Tanto Putin como Hitler foram considerados génios da táctica e da estratégia até ao seu colapso. Hitler venceu tudo e todos até encravar na invasão da Rússia.  Putin foi o herói da geostratégia mundial até à invasão da Ucrânia. O que ambos fizeram em termos de barbaridade, foi afinal semelhante. Julgávamos que a civilização humana havia ultrapassado a memória dos Hunos, dos Mongóis e dos Nazis, mas afinal ainda estamos no tempo das trevas.

Confrontados com as aterradoras imagens que nos chegam através da televisão e dos telemóveis da massacrada Ucrânia é nossa obrigação dizer Basta. Não é possível continuar como se a normalidade ainda existisse. Hitler teve Roosevelt e Churchill para fazer frente à sua loucura. Putin ainda só encontrou a coragem ilimitada de um pequeno povo que sonhava com a liberdade e que arriscou a exterminação, e um amedrontado novo ‘grupo de Munique’ que ainda não percebeu que Putin quer mesmo repetir a História.