A Nave dos Loucos é uma figura simbólica muito antiga, desde o fim da Idade Média, com aparições na literatura e na pintura, principalmente. Mas parte de factos irrefutáveis. O Narrenschiff existiu mesmo, principalmente nas cidades alemãs. Os loucos – que não eram então considerados doentes, mas antes pessoas com vícios ou defeitos e, por vezes, criminosos – eram apanhados nas ruas ou nos campos e metidos dentro de barcos que os transportavam erraticamente para locais distantes e desconhecidos.

Os loucos, fechados nos barcos, no mar alto ou em rios, não podiam sair para lado nenhum. As águas navegadas durante as viagens tinham também um papel purificador. E quando chegavam ao seu destino, um pouco ao acaso, ninguém os conhecia, nem sequer sabiam que eram loucos e pelo menos no início não os tratavam como tal. Como imagem, isto é muito bonito.

Estou aqui a falar destas coisas porque estava a ler as últimas notícias sobre as escolhas dos titulares para os altos cargos da União Europeia, como sempre, sem acordo à vista, e fiz esta associação: a Nave dos Loucos e 27 ou 28 pessoas fechadas numa sala, sem rumo, sem razão, a falarem línguas diferentes, sem poderem sair.

No início, há 60 anos e até ao final dos anos 80, não era assim, mas a certa altura alguém se lembrou de pôr uma bicicleta a andar sem parar, bastava pedalar, entravam 10 ou 15, tanto fazia, criava-se uma moeda única, depois logo se via como era. Lançaram referendos, levaram negas, repetiram referendos, mas insistiram sempre na bicicleta. Criaram instituições que ficcionam as de um estado nacional, como um Parlamento sem iniciativa legislativa, mas com duas sedes, e uma espécie de Tribunal Constitucional. Admitiram batalhões de funcionários, porque todos os países têm a sua quota. Aprovaram um tratado que infelizmente carrega o nome de Lisboa e que é um dos maiores monstros jurídicos da nossa história comum. Como ninguém está satisfeito com essa peça, mas são muitos e não se entendem, não se consegue mudar uma vírgula. E assim acabaram todos numa nave que se parece com uma sala que não navega, mas voa de capital em capital.

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Por algum motivo, 60 anos depois, ainda se continua a falar no Projecto Europeu. É o paraíso dos consultores. Entretanto, um dos 28 ousou dizer que não queria mais ficar ali. Os outros 27 não gostaram e estão a dificultar o mais possível a sua saída, por diversos motivos, mas essencialmente porque estão todos metidos numa nave daquelas. A água podia purificá-los, inspirá-los. Podiam pelo menos começar a fazer as mesmas perguntas que os britânicos estão agora a fazer: quem somos, onde estamos, para onde queremos ir?

São perguntas muito importantes, mesmo que ainda não se conheçam completamente as respostas, ou mesmo que as respostas sejam várias e incompletas. E são perguntas que nós, os outros 27, vamos inevitavelmente fazer daqui a uns anos, quando a nave chegar ao seu destino e todos tivermos de desembarcar e pudermos voltar à essência que foi a livre de circulação de pessoas, bens, serviços e capitais.

Para além disso, existe apenas um Grande Desacordo, interiorizado por todos, mas não dito. Neste momento, sabemos e vemos que há uma grande convulsão no Reino Unido por causa disto, mas nada que eles não sejam capazes de resolver. Quando Neville Chamberlain se esgotou a assinar acordos que não acordavam nada, nem resolviam nada, foi substituído por Winston Churchill. Boris Johnson já cortou o cabelo, não se sabe como vai fazer/deliver, mas estou a torcer por ele. They’re coming home!

Advogado