Há dias comecei a escrever um artigo seminal (todos os que escrevo são seminais, na minha opinião que naturalmente respeito) sobre a desejável coligação pré-eleitoral de todas as direitas, que evidentemente não vai suceder mas deveria.

Nosso Senhor, que talvez me acompanhe os lavores, brindou-me depois com uma notícia já antiga sobre o Chega, onde este defende a prisão perpétua para traficantes de droga, e outra actual sobre este artigo de Cavaco, ambas susceptíveis de me bulirem na bolha dos princípios.

Quanto ao Chega, repito o que já disse noutras marés: as linhas vermelhas não devem ser desenhadas à volta de partidos, mas de ideias; uma coligação faz-se em torno do mínimo comum, e o mínimo dos mínimos é desalojar o PS, na presente circunstância histórica uma doença crónica que vai estiolando o país. Medir forças e pesos eleitorais, em vez de um exercício de humildade que consistiria em aproveitar as vantagens do método de Hondt enquanto existem e deixar semelhante guerrilha para quando o país estiver menos adernado à esquerda, é evidentemente suicidário.

Quanto a Cavaco, estivesse a campanha eleitoral mais adiantada e eu fecharia a minha quase ignota matraca: não é no meio de uma batalha que se critica o camarada de um exército aliado porque a farda não é regulamentar.

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Mas Marcelo, decerto preocupado com a invernia, marcou eleições segundo os princípios dos licenciamentos pela Administração Pública: hão de vir um dia, lá mais para a frente, de modo que entretanto vão as costas folgando.

O artigo é um exercício de suposta clarividência e cientificidade de um monstro de vaidade que se imagina depositário de verdades incontestáveis. E isto é o menos, que a vanglória, se genuína, é ainda assim preferível à modéstia, se falsa: pretende uma revisão constitucional feita por ele, Cavaco, através de artigos de jornal. A qual transfere para um comité de sábios poderes soberanos que, se calhar com grande imprudência, pertencem constitucionalmente ao Parlamento. O homem acha, como sempre achou, coitado, que um doutoramento em economia, se feito na universidade certa sob a orientação de colegas que rezem pelos mesmos manuais, que estima bíblicos e lhe construíram a mundividência económica, transforma cretinos em inteligentes, chanfrados em poços de sabedoria, e ambos em patrões do eleitor ignaro.

Esmiucemos, e nada melhor do que transcrever, comentando, os versículos do esforçado portento doutrinário.

«Em artigos publicados por Daniel Bessa e por Ricardo Paes Mamede a expressão “contas certas” é qualificada de insólita, absurda, vazia e equívoca. Nos capítulos sobre política orçamental dos tratados de Finanças Públicas, “contas certas” é um conceito que não existe.»

Lamento desiludir Cavaco mas o conceito existe pela razão comezinha de que há um mundo fora dos “tratados” e nesse, que é o das pessoas que não empinaram manuais de finanças públicas, “contas certas” quer dizer que não se gasta o que não se tem. Pessoas, portanto, que se exprimem em Português e não em financês. Tanto Bessa como Paes Mamede acham a ideia enganosa não por causa da falta de rigor tecnocrático da expressão mas porque censuram o modo como se chegou ao resultado e a deificação do objectivo, que acham nem sempre ser recomendável, sendo que as razões de um e outro são muito diferentes. De resto, estes dois exemplares da Academia, se postos a elaborar um qualquer Orçamento, fariam dois completamente diferentes. E se para tal empresa Cavaco também fosse convidado haveria ainda um terceiro, mais próximo do primeiro que do segundo, e presumivelmente criticado pelos dois.

Isso acham eles. Já eu entendo que o melhor que o PS pode dizer de si é que talvez tenha feito passar definitivamente para a parte maior da opinião pública a ideia de que há limites, e esses são os da receita, para o que o Estado pode gastar. E que isso tenha sido conseguido com doses massivas de propaganda, por processos ínvios e de democraticidade duvidosa, como o mecanismo das cativações, e sem cortes na despesa (pelo contrário), não oblitera o ponto.

«O valor desejável para o saldo orçamental em cada ano, sendo uma restrição, deve ser determinado antes de o Governo elaborar a sua proposta de Orçamento, não por políticos, mas por um comité independente de especialistas de modo a satisfazer duas exigências.»

Comité? Especialistas? “Deve ser determinado”? Temos então uma Assembleia eleita, um Governo democrático, mas o saldo, ai o saldo, esse deve ser determinado por uns sábios armados de folhas de cálculo e teorias unívocas. Esses sábios, está bom de ver, são todos economistas e não uns quaisquer: daquela variedade única, que só existe na imaginação de Cavaco, que acha nestas matérias o mesmo que Cavaco acha. Ou então estas interessantes figuras razoavelmente anónimas têm divergências e chegarão às suas conclusões após discussão e votação. Caso em que os que não foram eleitos condicionam, votando entre eles, os que o foram. O Professor Cavaco de Finanças Públicas entenderá muito, concedo; de democracia representativa é que nem por isso. Enunciemos o que deveria ser óbvio: os organismos técnicos estudam, informam e aconselham; quem tem legitimidade decide; o eleitor vai avaliando perante o desfilar das opiniões contraditórias (porque tudo isto deve ser público), e em devido tempo os resultados contribuirão para uma opinião pública que se vai fazendo; e, no fim, o eleitorado escolhe. Mal muitas vezes, senão quase sempre. Mas a democracia não é o regime dos que raramente se enganam e nunca têm dúvidas (expressão injustamente atribuída a Cavaco, parece, mas que lhe cabe bem), é aquele em que ninguém detém o poder sem consentimento expresso do eleitor e este goza de um certo número de liberdades intangíveis que o habilitam a formar opinião.

«O comité de especialistas terá certamente em devida conta os níveis da dívida pública e do endividamento do país para com o estrangeiro, a evolução da situação económica e social do país com as políticas vigentes, a informação disponível sobre a natureza expansionista ou contracionista da política monetária do Banco Central Europeu (BCE), as previsões económicas internacionais e as regras orçamentais europeias.»

Terá. O Governo, responsável pela proposta de Orçamento, também. Com a diferença que não é o técnico de contas que decide a política da empresa, um facto comezinho que Cavaco, que nunca teve um respeito mais do que teórico pela figura do patrão, nunca foi verdadeiramente capaz de entender.

Vem a seguir, finalmente, um argumento de peso: o controle da moeda e a competência para fixar as taxas de juro foram transferidos para o Banco Central Europeu, coisa muito mais importante do que a fixação do valor do saldo do Orçamento. Sem dúvida. Porém: essa transferência reuniu a aprovação, e reúne ainda hoje, da maioria esmagadora do eleitorado e dos deputados. Maioria, portanto, qualificada, a mesma que se requer para a revisão da Constituição. Como é aliás relativamente pacífico que os bancos centrais tenham autonomia que lhes permita controlar a inflação, que é um fenómeno dissolvente da racionalidade económica e penalizador sobretudo dos pobres. Invocar o tratado de Maastricht (sobre o qual tenho não poucas discordâncias, mas isso não vem ao caso) a este propósito é o clássico caso do passo maior do que a perna. Quer Cavaco retirar competências à AR e transferi-las para um senado de técnicos de contas? Muito bem, o PSD (e alguns mais, talvez) que inclua isso na futura proposta de revisão da Constituição.

Vem a seguir uma lista pertinente (e mesmo assim não exaustiva porque o artigo ficaria demasiado longo) das malfeitorias do Governo socialista, alegadamente encobertas pela propaganda em torno das “contas certas”. O que Cavaco não prova, nem poderia provar porque não há uma relação de causalidade, é que qualquer desses desastres teria sido evitado se o tal comité de anciãos (se é que lá no meio não haverá uns moços ainda com acne, saídos de fresco dos bancos da faculdade) tivesse estatuído que o saldo orçamental deveria ser assim ou assado.

Estranho caso: uma das medidas da mediocridade da nossa vida pública é que sempre que Cavaco fala o mundo oficial estremece. O seu tempo foi um de esperança e progresso, o de agora é de conformidade e arrastar de pés. E esse capital administra-o, e faz bem, para apoiar o seu partido de sempre. Não fora pior, porém, que Cavaco, em questões de regime, consultasse uma qualquer unidade técnica de apoio antes de se pronunciar; e que, em vez da suficiência que lhe sobra, tivesse alguma humildade que lhe faz falta.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.