1 Teorias da cidadania

Um dos domínios da teoria política em crescimento nas últimas décadas é o das teorias da cidadania, em torno de autores como T. H. Marshall, Quentin Skinner, Philip Pettit ou Will Kymlicka, que trabalham a partir dos modelos clássicos de cidadania (o republicano, na tradição de Aristóteles, Maquiavel ou Rousseau; e o liberal, na tradição de Locke, Smith ou Mill) ou de modelos pós-modernos ou multiculturalistas.

Will Kymlicka chama a atenção para o cuidado conceptual a ter com a palavra cidadania: se, no discurso quotidiano, ela é entendida como sinónimo de nacionalidade, em contexto filosófico, ser cidadão “é ser reconhecido como um membro pleno e igual da sociedade, com o direito de participar no processo político”. Para o filósofo canadiano, trata-se de um ideal distintamente democrático, pelo que os dois termos se encontram inevitavelmente ligados.

Na verdade, a relação entre democracia e cidadania é estabelecida de forma quase imediata pela maioria dos autores que se dedicam ao tema na atualidade, mas parece ser uma interpretação limitada: se considerarmos que a categoria moderna de cidadania nasce no período do renascimento e o nosso entendimento de cidadania remonta à instauração dos regimes liberais nos séculos XVII e XVIII, momentos em que não é possível falar em regimes democráticos, aquela relação causal parece questionada. Por outro lado, é possível fazer, como Rui Ramos faz, uma história da cidadania portuguesa dos últimos dois séculos, apesar de o regime democrático ter sido implementado apenas em 1976. Desta forma, e ao contrário daquela que é a doutrina dominante, uma melhor compreensão do conceito de cidadania implica pensá-la em termos mais amplos, compreendendo diferentes graus e funcionalidades, conforme o regime em causa.

Adotando esse entendimento mais amplo de cidadania, podemos identificar o seu âmago: a condição de cidadão significa uma emancipação face a condições políticas alternativas, nomeadamente de servo ou de súbdito, compreendendo alguma forma de participação política que decorre de um regime de leis. É isso que podemos encontrar nas poleis gregas, sujeitas ao domínio das leis, e também na república romana, como os escritos de Cícero demonstram. É esse regime de leis que garante a universalidade e a igualdade da condição e dos direitos dos membros da comunidade política, e que é recuperado com o contratualismo moderno e a primeira geração de direitos civis. A esse espírito junta-se, progressivamente, a ideia de soberania popular, que expandiu o direito de sufrágio numa fase inicial dos regimes liberais, quando os direitos civis se ligam aos direitos políticos.

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Um aspeto fundamental nesta condição de cidadania liberal era o seu entendimento do cidadão como homem livre (conforme demonstra Rui Ramos, era esta a razão que justificava as restrições do direito ao sufrágio, resultassem elas da educação, do rendimento ou das funções sociais) – articulando-se este princípio de forma harmoniosa com a ideia liberal de propriedade privada como inerente à condição de liberdade: só aquele que detém propriedade e cuja sobrevivência não está, por isso, na dependência de outrem é verdadeiramente livre. A emancipação política liga-se, deste modo, à emancipação económica: a condição de pobreza é uma condição de subserviência.

Com o passar do tempo, esta consciência conduzirá a uma transformação do conceito de cidadania, que assumirá em muitos estados europeus, no final do século XIX e ao longo do século XX, uma condição de direitos económicos e sociais. O estado-providência é o resultado desse novo entendimento de cidadania e procurará assistir os seus membros, assumindo a tarefa de garantir esta nova vaga de direitos.

Refletindo sobre esta evolução histórica, o sociólogo inglês T. H. Marshall apresentou, em 1949, a mais importante teoria no domínio das teorias da cidadania. No ensaio “Citizenship and Social Class”, Marshall divide os direitos de cidadania em três categorias, que evoluíram cronologicamente em Inglaterra: os direitos civis, como o de propriedade ou liberdade de expressão, nos séculos XVII e XVIII; os direitos políticos, como o de sufrágio, no século XIX; e os direitos sociais, como o de saúde ou educação, no século XX. Diz-nos Kymlicka: “[p]ara Marshall, o culminar do ideal de cidadania é o estado-providência social-democrata. Ao garantir direitos civis, políticos e sociais a todos, o estado-providência assegura que todos os membros da sociedade podem participar plenamente na vida comum da sociedade.”

Pese embora a sua popularidade, a teoria de Marshall tem sido sujeita a múltiplas críticas. Uma delas consiste em afirmar que esta grelha de análise reflete o contexto britânico, mas não tem função descritiva ou preditiva na maioria dos outros países. Basta pensar que o regime nazi garantia um amplo leque de direitos sociais àqueles que considerava cidadãos, mas não assegurava a maioria dos direitos civis ou políticos. No caso português, encontramos também uma realidade diferente: não podemos afirmar uma evolução gradual das três categorias, mas antes uma implementação específica em cada um dos regimes que formam a nossa história constitucional.

Ainda assim, a teoria de Marshall torna evidente a condição passiva que marca o caminho percorrido pela cidadania nas democracias liberais, que se caracteriza pela acumulação de direitos e a desvalorização das dimensões de dever e responsabilidade, tão relevantes para a tradição republicana dos antigos. De facto, se a cidadania nas cidades gregas e na república romana (as coisas alteram-se com a fase imperial) se centrava nos deveres do cidadão para com a comunidade, a cidadania moderna foi construída em torno dos direitos que o cidadão pode exigir ao estado. Assim, o amadurecimento das democracias liberais conduziu a uma cidadania enquanto mero recetáculo de direitos – e ao mesmo tempo que cresce a lista de direitos que os cidadãos reivindicam, crescem também as funções que o estado deve garantir. Por consequência, aumenta a dependência do cidadão face ao estado, que espera dele a proteção total perante todo o tipo de intempéries.

2 A cidadania menorizadora portuguesa

Esta dinâmica tem-se verificado um pouco por toda a Europa, mas é particularmente evidente em Portugal. Por essa razão, e apesar das suas fragilidades, a teoria de Marshall contribui para uma melhor compreensão da transformação da cidadania no nosso país no século XXI.

No ensaio sobre a história da cidadania em Portugal, Rui Ramos nota que aqueles que introduziram a cidadania moderna entre nós, a partir dos conceitos de liberdade e independência individuais, condicionaram o modo como o conceito de cidadania evoluiu, gerando um efeito contrário ao desejado: “Para os liberais, a necessidade de resgatar a pátria da ignorância e do atraso justificava plenamente o uso do poder do Estado com o fim de transformar a vida dos portugueses.” Isto significa que o nosso estatuto de cidadão não se afirmou como independência face ao estado, mas antes como dependendo da sua intervenção para assegurar não só a autonomia intelectual, mas sobretudo a autonomia económica.

No século XX, essa particularidade traduziu-se numa versão específica de cidadania. Como Filipe Carreira da Silva aponta, “verifica-se entre os portugueses uma invulgar valorização da dimensão material ou substantiva da democracia: não são tanto os aspetos processuais (onde se incluem os direitos civis e políticos) quanto a capacidade do Estado de garantir a todos um nível mínimo condigno de vida (leia-se direitos sociais) que parece caracterizar a forma como em Portugal se concebe a democracia”. Este tipo específico de cidadania gerou o paradoxo atual: temos cada vez mais direitos, mas não estamos mais emancipados.

Analisemos as condições atuais: apesar de ser um tipo de cidadania que resulta da nossa história e não remete só para a última década, o processo de cidadania menorizadora agravou-se rapidamente nos últimos sete anos. Recordemos como, há dez anos, a sociedade portuguesa se agitava socialmente perante uma grave crise económica e a rua era ocupada pelos seus protestos. Podemos concordar ou não com esses protestos, e até com a forma como foram conduzidos, mas havia cidadania emancipatória na tentativa de condicionar as políticas do governo. E, a esta distância, devemos recordar o modo digno como o governo de então ouviu as grandoladas e foi adaptando as suas políticas por pressão da opinião pública. Independentemente do nosso posicionamento quanto às políticas adotadas, foram tempos de cidadania emancipatória num país que se costuma dizer sereno.

O que aconteceu desde então? Registou-se um acelerado processo de apatia generalizada da sociedade portuguesa, adormecida ao som das novas narrativas que trocaram austeridade por cativações, pobreza por tarifas de água, luz e internet, dignidade por dependência do estado. E seguiram-se dois anos pandémicos que só agravaram a situação: aceitamos passivamente leis sem racionalidade (andar de máscara na rua), medidas inadequadas (escolas fechadas durante meses), o vaivém do discurso vacinal (impede contágio, não impede contágio), a permanência de medidas de contenção (quando tantos países já as dispensaram). Na verdade, a invasão russa tornou evidente como a crise pandémica era muito mais fabricada do que real, mas continuamos, obedientemente, agarrados a regras e máscaras.

De uma condição idealizada de cidadãos emancipados, estamos hoje condenados a uma posição de menorização face ao poder e ao estado, declinando liberdade, pedinchando sobrevivência e fazendo filas humilhantes nas bombas de gasolina porque temos tão pouco que tudo nos assusta. O modo como o governo tem lidado com a subida do preço dos combustíveis apenas aumenta a nossa humilhação: perante a consciência crescente de que vivemos submetidos a uma carga injustificada de impostos, contribuições e taxas, o governo oferece-nos pequenos vouchers (que diligentemente descontamos como senhas de racionamento de outras alturas e outros regimes) e pedincha autonomia junto da União Europeia, enquanto esta aumenta a nossa subserviência com promessas de planos de apoio e assistência a cada nova crise.

O nosso vocabulário de cidadania reduz-se hoje a palavras como apoio e ajuda estatais, ao mesmo tempo que aceitamos um controlo digital progressivo por parte do governo, desvalorizamos os seus tiques autoritários e nos deixamos embalar pela ideia de consenso permanente, desde a covid-19 à invasão russa, como se o dissenso fosse uma ameaça. A nossa cidadania tornou-se menorizadora: estamos mais próximos de súbditos com direitos protegidos (para usar a expressão de Rui Ramos) do que de homens livres, que (para usar o espírito de Herculano) sabem que a sua liberdade assenta na consciência da própria dignidade.