Vem aí um novo governo. É normal. Um dos principais critérios para se validar uma verdadeira democracia é, precisamente, a possibilidade de alternância pacífica no poder entre diferentes partidos. É, certamente, graças a essa válvula de escape e consequente capacidade de renovação que os regimes políticos mais antigos são democracias pluralistas, como a Grã-Bretanha, sem ruturas revolucionárias desde o final do século XVII, ou os EUA, desde final do século XVIII. É fundamental para isso que da mudança não resulte caos, mas um governo eficaz. É, sobretudo, fundamental se se quiser dar resposta ao descontentamento flutuante atraído por populismos que prometem tudo e o seu contrário. É na eficácia da resposta a problemas concretos das pessoas que o novo governo se deve focar.

Como se faz um governo eficaz à maneira britânica?

Para além da réplica de senso comum – escolher os melhores para o lugar – que é demasiado genérica e vaga para ser útil, há diferentes respostas. Para fugir a alguma politiquice nacional peguemos no exemplo de dois velhos regimes constitucionais com muita experiência no assunto, os EUA e a Grã-Bretanha. Na Grã-Bretanha, há uma tradição de ministros políticos profissionais e também dos chamados “ministros sombra” que, na oposição, acompanham uma área governativa. E todos têm de ser parlamentares, pelo que a forma de incluir independentes não-eleitos é elevá-los à Câmara Alta do Parlamento, a Câmara dos Lordes, o que apenas depende de nomeação do primeiro-ministro e da aceitação do soberano. No entanto, nos últimos anos generalizaram-se as mudanças frequentes de pastas, com os nomeados a passarem por ministérios muito diferentes e em áreas em relação às quais não têm qualquer experiência ou conhecimento prévio. Liz Truss, antes de ser a mais efémera chefe do governo britânico, começou pela pasta do Ambiente e acabou na dos Negócios Estrangeiros, duas áreas pelas quais nunca tinha mostrado interesse. O atual Ministro da Defesa britânico, Grant Shapps, era tão desconhecedor da matéria que não sabia que um porta-aviões é assunto da Marinha e não da Força Aérea.

Qual é a lógica? A teoria dominante em terras de Sua Majestade é que um bom ministro é alguém com boa capacidade política e de liderança. Para as minudências específicas da pasta, há uma administração pública muito profissional. É, no fundo, o modelo do Sir Humphrey, da genial série de comédia política Sim! Senhor Ministro. Claro que essa série aponta, precisamente, para um risco desse modelo: o da burocracia anular decisões políticas na prática, explorando a ignorância do titular da pasta. Outro risco, denunciado por Rory Stewart numas memórias recentes da sua passagem pelo parlamento e o governo britânico, é o das políticas serem decididas de forma precipitada apenas em função de slogans ideológicos e do suposto impacto mediático de curto prazo, ignorando a realidade, com consequências desastrosas.

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A variante americana

Nos EUA é diferente. Todos os lugares de chefia e todos os enormes gabinetes ministeriais são renovados a cada mudança de Administração presidencial. Estamos a falar de mudar mais de 4000 pessoas no topo do Estado, desde a chefia das embaixadas à de múltiplas agências governamentais. Isto poderia ser potencialmente um desastre para a continuidade e qualidade da governação e da ação externa do Estado, mas não é necessariamente assim, nomeadamente porque os EUA institucionalizaram a prática de uma transição bem financiada e preparada ao longo de muitos meses. E institucionalizaram também uma outra prática fundamental, que é a da chamada “porta-giratória”. O que é isto da revolving door? Muitos destes quadros políticos quando saem do governo, vão para universidades, mas sobretudo vão para os chamados think tanks, ou seja, centros especializados na investigação de políticas públicas, da defesa à diplomacia passando pela economia. No fundo, durante quatro anos são pagos para se manterem a par do que está a acontecer e do que se pode vir a mudar na área governativa em que se especializaram.

Esta prática permite escolher muita gente conhecedora e experiente, mas, claro que nem sempre é assim. Os governos de Bush pai (1989-1993) e de Bush filho (2001-2009) são casos interessantes e contrastantes. George H. Bush apostou sobretudo na experiência. E em termos de política externa é considerado dos presidentes mais eficazes, nomeadamente, na gestão do período crucial do final da Guerra Fria. O seu filho George W. Bush apostou em combinar escolhas mais ideológicas e alguns veteranos. Criou um governo dividido na sua ação externa por grandes rivalidades pessoais e visões muitos diferentes do papel do país. O planeamento caótico da ocupação do Iraque foi um dos resultados dessa opção. Ironicamente ou não, Bush pai perdeu a reeleição e Bush filho conseguiu um segundo mandato. Ou seja, eficácia governativa e sucesso político podem não coincidir. Donald Trump começou por se rodear de governantes com alguma experiência prévia, mas foi apostando em nomes cada vez menos experientes e mais ideológicos. Joe Biden seguiu, também nisso, a via mais tradicional, criando uma equipa relativamente experiente, coesa e eficaz, concorde-se ou não com todas as suas opções.

E em Portugal?

Em Portugal, um novo primeiro-ministro não tem uma missão fácil. Não existe uma administração pública forte que possa facilmente dispensar bons quadros para gabinetes, como na Grã-Bretanha. Não há uma abundância de institutos bem financiados dedicados ao estudo de políticas públicos, como nos EUA. Ser especialista académico num determinado tema não garante que se conheça bem o funcionamento da administração ou se domine a dimensão política das questões mais prementes na pasta. E os parlamentares da oposição raramente têm equipas de apoio especializado ou tempo suficiente para se especializarem a fundo numa área governativa. O problema é maior quando o partido de governo está afastado do poder há algum tempo, como é agora o caso do PSD. Aliás, Luís Montenegro não tem, ele próprio, experiência governativa. Tem, no entanto, experiência política e mostrou ser um debatedor eficaz, com provas dadas como líder parlamentar num período difícil. E não faltam quadros políticos experientes no PSD ou CDS.

A gestão política do governo, embora seja um desafio exigente num contexto de maior fragmentação partidária, a exigir acordos cruzados com vários partidos, não é um problema inultrapassável. Mais difícil poderá ser encontrar nomes disponíveis para integrar o governo, que combinem credibilidade e solidez política, bem como um conhecimento suficiente das pastas e do que é a administração pública. Sendo este um governo que pode não durar – a aprovação do primeiro orçamento será o grande teste desse ponto de vista – isso será um problema ainda maior se os membros do governo tiverem de passar meses até conhecer os cantos à nova casa. Saberemos a 28 de Abril. E se só o soubermos nessa altura isso será já um primeiro sinal de gestão política eficaz do novo primeiro-ministro.