A grande dúvida que permanece sobre o projeto europeu é a seguinte: é possível construir a legitimidade política do projeto europeu a partir da sua aparente e visível megalomania, da sua crescente omnipresença, que nos esmaga e sufoca, do seu racionalismo ofensivo e da imponência da sua ordem burocrática que nos ofuscam e irritam?

Estamos em 2018, na ressaca de uma grande crise sistémica do capitalismo, sem projeto nem futuro à vista, à espera de um profeta ou de uma ordem nova. Nestes tempos, de equívoco da identidade e do seu poder, como podemos nós ficcionar a ambicionada identidade europeia ou, se quisermos, essa “união cada vez mais estreita entre os povos da Europa”, de acordo com o artigo 1º, alínea dois, do tratado de união europeia?

Cuidado, porém, com os termos da equação, pois podemos estar a laborar num equívoco comprometedor. De facto, no estado atual da arte da política europeia, poucos acreditarão que para construir uma identidade política de nível supranacional bastará uma operação de engenharia jurídico-institucional, mesmo que prevaleça uma linha empirista, discreta e utilitária de negociação permanente que é cara à burocracia das instituições europeias. E qual é, então, o equívoco em questão?

Os equívocos da identidade e do unitarismo unionista

A identidade não é uma razão de Estado, mas uma razão de Nação. A identidade europeia não se enuncia ou anuncia como transcendência política ou institucional, mas como experimentação moderna, em resultado de uma política modesta, levada a cabo por uma grande diversidade de poderes e saberes, porventura em ordem caótica, mas todos eles imbuídos do interesse público benevolente. A identidade não é o atributo de uma razão pretensiosa, unificadora ou unitária, e muito menos o iluminismo tecnocrático de um qualquer eurocrata. No mesmo sentido, se as políticas europeias e nacionais privilegiarem uma economia padronizada para um espaço abstrato e plano, de onde se apagaram as memórias, as pequenas economias regionais e as vivências dos lugares concretos, a desobediência civil poderá explodir em todas as direções, não apenas como poder identitário, mas, também, como movimento hostil de indignação e rejeição.

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Estamos em 2018, basta olhar à nossa volta, está aí o movimento nacionalista e populista a provar o que dizemos. A União Europeia mordeu o isco, o curto prazo tomou conta da contingência, ao mesmo tempo que o capitalismo europeu procura purgar-se das suas frações menos competitivas. Nesta “descida aos infernos”, onde o desmantelamento do estado social é especialmente visado, é muito provável que o neoliberalismo deixe à sua mercê, à sua sorte, as instâncias coletivas históricas mais representativas, incluindo a cultura, mas a sorte do indivíduo-sujeito parece, igualmente, preocupante a avaliar pela fulgurância dos sintomas.

Estamos em 2018, sem ordem, sem moral e sem sistema, um autêntico esplendor do caos nas palavras de Eduardo Lourenço (Lourenço, 1998). Nesta vertigem, o recurso às identidades portáteis, emprestadas, é cada vez mais frequente, seja por via dos ícones mediáticos, de todo o tipo, seja por via das apelações de cariz identitário, localistas e regionalistas, que se forjam contra o inimigo exterior ou construções megalómanas, como é, de resto, o caso da própria União Europeia.

No menu dos discursos legitimadores, o discurso sobre a cidadania responsável não parece ter feito, ainda, ganho de causa, não obstante o esforço e a mais valia proporcionados pelo estatuto de cidadania europeia. Não há qualquer dúvida, as sociedades nacionais melhoraram bastante, em muitos domínios, devido, justamente, às iniciativas europeias. No entanto, se prosseguir a desinstitucionalização da família, a desafeição pela política e pela religião, a descrença na justiça e na ética científica e tudo, ou quase tudo, se resumir à exibição do individualismo e ao consumo desenfreado dos acontecimentos, fica difícil construir a nova estrutura de ordem, uma ordem institucional mais simples e mais próxima das pessoas. Assim, entre a governação de proximidade e a governação remota das instituições europeias, como construir uma individuação responsável que evite a guerra civil entre os cibernautas dos mercados globais e os guerreiros das identidades locais?

Sabemos, nesta matéria, que a dogmática política favorece o vencimento do pensamento dicotómico em detrimento do pensamento reformista e moderado. Assim, de um lado, temos os “solenes” problemas de soberania e independência nacional, de outro, a “inevitabilidade” do reforço das instituições pró ou pré-federais. A sequência é já conhecida. O pensamento político está prisioneiro desta compressão do espaço-tempo e os códigos comunicacionais e discursivos dominantes não deixam que se afirme o nascimento da derradeira utopia, a aventura de uma cidadania autêntica numa Europa Democrática. A esta luz, são confrangedoras a inépcia e a pobreza da reflexão institucional europeia. A coberto da sua racionalidade burocrática, produziu um “tratado constitucional”, um belíssimo exemplar da sua razão normalizadora e transcendental que, depois de chumbado, foi finalmente transposto para o tratado de Lisboa. Em vez disso, perguntamos nós, para quando um tratado modesto que seja um elo de ligação de povos e culturas e elemento de renovação do ideal democrático, se quisermos, um Ato Federal com duas ou três dezenas de artigos?

Cidadania europeia e legitimidade política

No estado atual da política europeia, em plena era digital das redes e comunidades distribuídas, nada mais paradoxal do que a identidade europeia, a megalomania e omnipresença unionistas, a razão pretensiosa, unificadora e normalizadora, a transcendência política e institucional da ordem burocrática da União Europeia, tudo o que as redes sociais distribuídas não gostam. A utopia europeia, a aventura europeia, estão, por isso, numa encruzilhada. Não vale a pena escamotear que o longo movimento de descida para a sociedade civil irá prosseguir, que a representação será cada vez mais direta e que as práticas quotidianas estarão cada vez mais ligadas ao combate e à decisão políticas. Se a este movimento centrífugo das democracias atuais, por vezes perigosamente nacionalista e comunitarista, se opuser a arrogância, a sobranceria e o racionalismo unionistas, o unitarismo unionista, então temos sérias razões para ficar preocupados.

Sabemos que as constituições nacionais criaram a ideia de cidadania, de emancipação individual, para separar o indivíduo da sua identidade local e regional. A igualdade de todos perante a lei reforçava a ideia de emancipação individual. A proteção conferida pela lei fazia-o dispensar a proteção que lhe era assegurada pelo seu grupo de referência. A ideia de federação não pode visar fazer o mesmo com a cidadania europeia relativamente às identidades nacionais e regionais. No fundo, a ideia de federação promove e reforça uma tripla fidelidade, europeia, nacional e regional, todas elas valorizadas no confronto direto entre si. A ideia de federação é o lugar geométrico desta confluência e é imperioso encontrar uma formulação jurídico-institucional apropriada para esta nova realidade que valorize, igualmente, todas as suas componentes. E o “patriotismo constitucional europeu”, veiculado pela carta europeia dos direitos fundamentais, não chegará para um reforço da legitimidade política europeia?

Sabemos que a construção europeia sempre se fez do particular para o geral e que os direitos sempre tiveram sempre um carácter instrumental e funcional ligados à necessidade de pôr a funcionar o mercado e a economia. O que agora se constata, com o tratado de Lisboa e a carta dos direitos fundamentais, é a colocação dos direitos fundamentais à cabeça do tratado, a querer significar uma relação de precedência com os direitos funcionais e, portanto, de certa forma, condicionando a interpretação jurídico-política desses direitos funcionais. Por detrás desta intenção parece haver uma ideia luminosa, não sei se racional se romântica, qual seja, a de que é possível conceber uma espécie de “novo patriotismo republicano”, a partir de um conjunto de direitos fundamentais, localizados, desta vez, no plano supranacional, como se, por via simbólica, fosse possível mobilizar irresistivelmente os europeus para este destino comum.

Por isso, os referendos em França e na Holanda serviram, antes de mais, para descer à terra e repor a “verdade dos factos” do quotidiano sobre as “promessas constitucionais” de um futuro incerto. De forma mais prosaica, para lembrar que a relação concreta entre a comunidade de direitos fundamentais e o quotidiano dos cidadãos implica, antes de mais, debater profundamente a dinâmica entre a política de crescimento económico europeu e a formação do espaço social europeu. Infelizmente, a União Europeia, depois de ter conseguido o mercado único e a moeda única, foi incapaz de desenhar uma política económica que conciliasse crescimento económico e espaço social europeu, isto é, que preservasse o essencial do estado social europeu. Hoje, poucos acreditarão que exista uma austeridade virtuosa por detrás da política económica dominante na União Europeia, a não ser os grandes credores que buscam a todo o custo recuperar os seus créditos.

Hoje, em 2018, se do catálogo de direitos fundamentais fizéssemos um catálogo de aspirações e objetivos pessoais, quem na União Europeia estaria em condições de garantir que essas promessas podiam ser convertidas em resultados e benefícios materiais? E quem responderia pelo desapontamento e pelos danos provocados sobre as nossas convicções pessoais?

A União tem uma presença obsessiva agravada pela relevância que lhe dá o espaço público mediático. A sua presença obsessiva é contraproducente. No atual contexto, tudo o sugere, o princípio da legalidade serve-se frio. A Europa não pode ter a pretensão de legislar sobre tudo, de invadir todas as áreas de atuação, sob pena de a sua omnipresença se tornar asfixiante e desmobilizadora. A União tem de escolher o que é essencial, de optar pelo reconhecimento mútuo, pela harmonização de referência ou pela harmonização mínima, nunca pela regulamentação uniforme.

Aqui chegados, eis o estado da arte em matéria de legitimidade política europeia: identidade europeia, carta europeia dos direitos fundamentais, patriotismo constitucional europeu, espaço social e sociedade civil europeia, nenhum destes fatores ou valores está em condições de sustentar “um direito sem Estado” que crie as condições mínimas de emergência de uma sociedade política europeia. É verdade que na União todos aderimos aos mesmos princípios da democracia representativa, do Estado de direito e dos direitos humanos, mas esta adesão, que só muito vagamente traça os contornos de um patriotismo constitucional, não funda senão um débil consenso sem grande valor prático.

A utopia e a aventura europeia, apesar de tudo

E, não obstante, precisamos de muita inteligência política emocional para enfrentar a extraordinária conjuntura política europeia que irá decorrerá daqui até às eleições europeias de maio de 2018. Nos meses que temos pela frente podemos deitar tudo a perder. Por um lado, temos o radicalismo cosmopolita e civilista que esgota uma boa parte das suas energias na desestatização da sua relação umbilical, uma vez que os aparelhos estaduais se constituem em alvo preferencial para atingir a sua maioridade cívico-política e esta é, talvez, a sua maior contradição e fragilidade. Por outro lado, é o fim do monopólio da ação política do Estado, mas não é o fim do Estado. Aliás, a chegada do nacionalismo e do populismo é uma espécie de alerta para as pretensões da proclamada sociedade civil, elemento fundador e instituinte da democracia cosmopolita que, “finalmente”, nos libertaria da civilização do capitalismo global. Muito cuidado, porém, com as precipitações. A deriva securitária que é suscitada por via dos fluxos migratórios e o endurecimento da política doméstica que daí decorre não favorecem a emergência da sociedade civil, seja no plano interno ou internacional. A virtude cívica global dos “movimentos sociais” que são necessários ao cosmopolitismo republicano fica seriamente posta em causa, enquanto o “velho-Estado” recupera ou faz novo ganho de causa.  De facto, se os movimentos sociais do radicalismo democrático, nascidos no caldo de cultura das redes sociais, cometerem alguns erros de palmatória, a possibilidade de serem capturados pelo sistema político securitário crescerá na mesma proporção. A radicalidade cívica da sociedade cosmopolita dará lugar à segurança das razões de Estado. Regressa a violência simbólica e na rua cairá a virtude cívica.

Seja como for, a nossa aventura continua. Somos indivíduos embarcados. Já passámos por escravos, servos, súbditos e cidadãos, num longo caminho que nos levará até à república universal e à cidadania cosmopolita. E se um catálogo de direitos não faz uma política, não é menos certo que a constitucionalização dos direitos fundamentais é uma garantia adicional de acrescida proteção política, legal e jurisdicional dos cidadãos europeus, inclusive contra o seu próprio Estado nacional, seja por ação ou omissão.

Sabemos que a União Europeia não é um bem de consumo imediato, que a utopia comunitária parece um anacronismo em tempo de terrorismo internacional, que a globalização põe a nu as fragilidades da construção europeia, enfim, que ninguém está disposto a morrer pela pátria europeia. E, no entanto, entre a domesticidade tradicional do Estado nacional e o cosmopolitismo da sociedade global, nós precisamos, urgentemente, de um ancoradouro seguro que nos ajude a ultrapassar as limitações do Estado-nação e os constrangimentos impostos pelo mercado mundial. Este é o espaço da “utopia europeia”, o bem comum mais precioso que precisamos de reinventar e recriar a todo o custo. O “mais fácil” ficou, aparentemente, para trás, o mercado único e a moeda única. Agora que nos abeiramos da união política, vemos avolumarem-se as diferenças nacionais e regionais e as singularidades histórico-culturais tornarem-se, por vezes, quase ameaçadoras.

Apesar de tudo, há uma ideia ou “espírito comunitário” que faz lentamente o seu caminho, em busca de um novo interesse geral, que está já contido em conceitos como “cidadania europeia”, “coesão e ultraperiferia”, “serviços de interesse económico geral”, “redes transeuropeias”, “cooperação transfronteiriça”, “ajuda à cooperação e desenvolvimento”, “a proteção dos bens comuns da humanidade”, “a prevenção dos riscos globais”, “os programas de mobilidade para jovens”, “a procuradoria europeia”, entre outros. Precisamos de harmonizar, mas não de uniformizar. No fundo, continuamos a política dos pequenos passos, de longa data, aguardando pacientemente que o sistema comunitário e a negociação permanente das instituições transformem problemas sérios e graves (a vaga migratória e o populismo nacionalista) em problemas “institucionalizados e sob condição” e que novos protagonistas políticos e coligações de interesses tragam o bom senso e o impulso político que agora pecam por defeito.

Nota finais, as questões pendentes

O protonacionalismo popular e a tribalização da cultura

Estamos em 2018. As sociedades europeias estão muito divididas e o pacto social fundador já diz pouco à Nação. Assistimos ao enfraquecimento do Estado, em particular do estado social, à fragmentação social e cultural das regiões, aos territórios que ficam devolutos e as populações abandonadas. O regresso do protonacionalismo popular, hostil à globalização e à integração europeia, é um sinal dessa fragmentação. A nação, privada de transcendência e discurso unificador, presta-se a ser apropriada por grupos sociais particulares e degrada-se em ideologia mole alimentada pela tribalização das redes sociais. Ao mesmo tempo, a falta de líderes priva a Nação e o Estado de ação histórica coletiva na boa direção. O fascismo societal abeira-se novamente das linhas vermelhas democráticas.

A nação-internet e a uberização da política europeia

Estamos em 2018. O projeto europeu faz navegação à vista, talvez na boa direção, mas longe, ainda, de oferecer uma nova síntese ou imagem forte de referência. Não se providencia suficiente capital simbólico. Retornam os velhos laços comunitários quase tribais: identidades populares, reivindicações multiculturalistas, mobilizações antipopulares. O começo do século XXI marca a recusa da linguagem da história, a síntese nacional está posta em causa e o progresso já não se mede no eixo do tempo. Por isso, a legitimidade política europeia tem de ser tudo isto: uma ideia de futuro, um novo recomeço, um lastro simbólico, um programa de cidadania, uma imagem de referência, novos protagonistas e lideranças acreditados, todos os tempos num tempo só.

E o que dizer da nação-internet, filha da revolução digital e protagonizada pelas gerações mais jovens. Elas nunca suportarão a megalomania e a omnipresença das instituições europeias, pela simples razão de que elas apostam na desintermediação institucional e burocrática. E o que pensa a União Europeia deste assunto, do mercado único digital e, de uma maneira geral, do lançamento de instituições-plataforma que otimizam os recursos e permitem a inovação em larga escala, se quisermos, que lançam o “processo de uberização” da própria União Europeia. A “uberização comunitária” pode, finalmente, dar materialização à chamada “subsidiariedade descendente”. É tempo de a União Europeia aplicar a si própria os princípios que recomenda a terceiros, criando no interior da administração europeia um hub de inovação visando a sua progressiva plataformização por via de uma rede europeia de administração pública muito mais descentralizada.

Valor acrescentado europeu e comunicação política

Na atual conjuntura europeia, estou convencido, não é pela via simbólica, institucional ou digital que se refrescará a legitimidade política da União Europeia, por mais importantes que sejam todos esses contributos. Um impulso político vigoroso na área-problema das migrações, com soluções efetivas nos países de origem e de trânsito, e uma comunicação política mais poderosa na explicação e divulgação do valor acrescentado europeu, usando, para o efeito, as plataformas sociais europeias e os milhares de jovens que hoje beneficiam dos programas europeus, é uma linha de rumo na boa direção. Simplesmente, o valor reputacional atual dos líderes europeus deixa muito a desejar, pelo que fica difícil suscitar a inteligência política emocional dos cidadãos europeus para esse desiderato.

No mesmo sentido, a sociedade política europeia teria muito a ganhar em estruturar-se através do estabelecimento de uma rede de comunicação entre os parlamentos nacionais e mesmos regionais, coroados pelo Parlamento Europeu enquanto instância de síntese (uma rede parlamentar). Do mesmo modo, seriam instaurados procedimentos similares para os conselhos nacionais de concertação social, coroados por um conselho europeu de concertação social. O mesmo se poderia fazer com as regiões e os municípios e com os conselhos do ensino superior, já para não referir os “parlamentos jovens” em várias áreas. Finalmente, é bom não esquecer que nos Estados-nacionais falamos da natureza adversatorial do regime político, todavia, no quadro europeu, este solo comunicacional contraditório não existe, o grau de conflitualidade é menor e o debate político perde nitidez. O regime comunitário não é de oposição ou adversatorial, é um regime de concertação e negociação permanente designado de consociativo. E isso faz toda a diferença. Quanto ao resto, o caso italiano será a provação derradeira para testar a força legitima da política europeia.

Universidade do Algarve