Pode parecer estranho um português homenagear um Rei castelhano, e ainda mais quando este está sob suspeita de ter cometido ilegalidades. Mas a admiração nunca é excessiva quando estamos perante um homem que, como mais ninguém, ajudou os seus conterrâneos a evitar erros do passado e a alcançar e conservar as coisas boas do presente, incluindo a sua preocupação de toda a vida, a Monarquia. Pode parecer pouco, mas foi muito o que fez por Espanha e, indirectamente, também por Portugal.

O reino do país vizinho deve ser compreendido à luz do que Fidelino de Figueiredo denominou como as «Duas Espanhas». A centralista, comandada por Castela e iniciada no período filipino, e que também se manifestou durante a governação franquista com a imposição da língua castelhana em todo o território espanhol. E a heterodoxa ou regionalista, que é a actual em que o poder se encontra descentralizado pelas autonomias que representam as diferentes nações que compõem o conjunto chamado Reino de Espanha.

A história de Espanha dos últimos séculos mostra a alternâncias entre estas duas realidades. Quando uma destas faces está activa, a outra está “adormecida”. Nesta perspectiva de alternância entre poderes é fácil perceber que Espanha possui um grande factor agregador, o próprio monarca.

A grande preocupação ao longo da vida de D. Juan Carlos I foi sempre uma: a monarquia enquanto garantia de união do Reino de Espanha. É com esta ideia que deve ser compreendida a sua saída de Espanha. D. Juan Carlos I saiu do país para não colocar em perigo o futuro da monarquia espanhola e do seu filho enquanto Rei.

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Este exílio trar-lhe-á com certeza à memória a decisão que tomou quando, ainda jovem, deixou o Estoril e foi para Madrid preparar a sua ascensão ao trono. Nessa altura, foi o seu pai, o Conde de Barcelona, que ficou no exílio e se sacrificou em prol da restauração da coroa.

Mas para além das memórias pessoais e familiares, D. Juan Carlos I merece uma homenagem pela forma exemplar e única como, em conjunto com D. Adolfo Suárez, geriu a transição da sociedade espanhola de uma ditadura para uma democracia, e pelo papel fundamental que teve na sua consolidação e no desenvolvimento de um país que hoje — diferentemente do tempo do franquismo — proporciona maior prosperidade aos seus habitantes do que a que os portugueses usufruem.

Um episódio mostra bem a importância do seu papel e de como soube aprender com os erros do passado. Foi ele que tomou a iniciativa de contactar o líder do Partido Comunista espanhol, Santiago Carrillo, no sentido de negociar a legalização deste partido. Numa altura em que um processo de transição democrática difícil estava a decorrer, D. Juan Carlos I compreendeu que Espanha nunca se consolidaria como uma sociedade livre e aberta se houvesse espanhóis que fossem deixados de fora. O contraste com a atitude revanchista e persecutória de republicanos como Manuel Azaña é revelador.

Isto é admirável se pensarmos que foi o medo do comunismo que “alimentou” o regime franquista, como aconteceu em Portugal, e que em 1975 esta ideologia era temida e recusada por uma parte significativa da sociedade espanhola. É mais admirável ainda se nos lembrarmos que os comunistas eram um dos principais adversários do grande objectivo do Rei de reinstalar e consolidar a monarquia e de tornar Espanha um país democrático e livre.

Mas torna-se digno de uma homenagem se considerarmos que Santiago Carrillo esteve envolvido num dos maiores massacres ocorridos durante a guerra civil espanhola, quando milhares de madrilenos inocentes foram trazidos à força para Paracuellos del Jarama, onde foram simplesmente chacinados. Este facto era do conhecimento generalizado dos espanhóis, o que ainda aumentava a sua repugnância pelo comunismo e por quem o liderava em Espanha.

Este papel fundamental na consolidação da liberdade e da democracia foi confirmado novamente em 1981, quando tropas comandadas pelo Capitão-General Milans del Bosch e pelo Tenente-Coronel da Guarda Civil António Tejero Molina tentaram um golpe de Estado e ocuparam o parlamento. A acção do Rei foi decisiva para derrotar os golpistas e manter a liberdade em Espanha.

O papel do Rei teve o apoio fundamental de dois grandes de Espanha, que nunca se amedrontaram com o desafio: D. Adolfo Suárez, o suporte político da transição, e D. Torcuato Fernández-Miranda, que foi responsável pela educação escolar de D. Juan Carlos I enquanto príncipe, presidente das Cortes e um dos suportes teóricos e legais da mesma transição.

Ao prevenir uma segunda guerra civil em duas ocasiões, D. Juan Carlos I não só prestou um serviço único ao povo espanhol como evitou grandes problemas aos portugueses. A eclosão de uma guerra na nossa fronteira, quando a liberdade e a democracia ainda estavam em grande risco e os militares detinham papel muito significativo, poderia ter consequências muito negativas para Portugal e para os portugueses. Nunca o devemos esquecer.

Por isto, que é bem mais importante do que o que agora se passa, presto a D. Juan Carlos I uma merecida e singela homenagem.