Comecemos pelo facto de o palácio se chamar “da Ajuda”. Será que a comunicação social estrangeira traduz? “Portugal: new government’s inauguration takes place, as usual, at the Palace of Help”. E se precisamos de uma. E se o governo precisa. E se soa a coisa portuguesa. Mais, só se fosse o Palácio da Ajudinha, do jeitinho, da mãozinha, o Palácio do Vá Lá, do Só Desta Vez, do É Para Um Amigo. O palácio inacabado, o Versailles que ficou a meio, aliás, a um terço. Onde não se entra pela porta principal, que nunca foi feita, mas pela do lado. Todo um tratado acerca do país que somos.

Seguem-se os convidados. O Chega, que se apressa a criticar o governo porque tem muita gente do PSD (o que é giro, porque sabem onde é que também há imensa gente do PSD? No Chega.), e os que nem lá põem os pés porque, como sempre, são superiores a isto tudo: a esquerda pura, de raça. Porque só ela representa, entende e defende o povo. E por isso só ela tem direito (esquerdo, porque não?) a desprezar as escolhas desse mesmo povo, virar-lhes as costas, desancar governos antes de eles sequer existirem. O Bloco, que já concluiu ser este “um dos governos mais à direita de que há memória” (com efeito, começa a não haver muitas pessoas com idade para se lembrarem de outros); e o PC que, naquele estilo raimundo-lapaliciano, logo foi anunciando estar “à espera de tudo o que é mau” e que há uma semana comunicara já o chumbo preventivo a um orçamento de Estado de que ainda não haverá sequer um Excel chamado “Notas” no computador de Miranda Sarmento.

E cá fora, é claro, a inefável CGTP, com a renovada subtileza de um martelo pneumático estragado e embora o programa de governo não seja apresentado senão na próxima semana, que já sentenciou que o que viu na campanha “traduz um forte ataque, nomeadamente aos trabalhadores e aos seus direitos, ao Serviço Nacional de Saúde, à escola pública, à Segurança Social, o favorecimento dos grupos económicos, o agravamento da exploração e a acentuação das injustiças e desigualdades”. É obra. E isto foi o que concluíram da campanha, a parte em que os partidos só anunciam coisas boas e fazem promessas. Imaginem quando eles começarem mesmo a governar. Não espero menos que o genocídio do proletariado.

Sim, penso que é seguro dizer que o governo não terá direito a estado de graça – talvez a um estalo de graça, para não dizer que não vai daqui. É como uma daquelas relações em que ninguém acredita. “Não lhes dou seis meses”, diz-se no café. O pai não gosta da profissão do rapaz, a mãe da maneira como se veste, as amigas suspeitam que tenha outra. É um governo comprado sem garantia nem direito a trocas. Sem aquele mês gratuito de “trial”, sequer. É um governo em precária: à primeira falha, volta tudo para o sítio donde veio.

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Às vezes, muito às vezes, são os que correm melhor. Sem expectativas, contra todas as apostas. Pode ser que sim. Oxalá que sim. Como disse António Costa, com um desportivismo que, lamentavelmente, só foi passeando depois de se demitir, a sorte de Montenegro será a sorte do país.

E o país precisa de sorte? É capaz. É que, no meio da conversa do excedente e dos tacticismos políticos com que nos entretiveram nos últimos meses, talvez não tenham reparado na quantidade de problemas que aguardam solução. Fazer o PIB crescer sem os contributos artificiais, quando não perversos, da inflação mais alta dos últimos 30 anos e os sucessivos recordes de receita fiscal. Pôr os serviços públicos a funcionar, depois de anos de deterioração sucessiva, apesar de aumentos loucos da despesa e do número de funcionários públicos. Pagar a paz com todas as classes profissionais nas ruas para depois, só depois, poder acudir aos verdadeiros problemas dos respectivos sectores (exemplo: pagar o prometido aos professores para, então, nos podermos concentrar nos desastrosos resultados dos alunos). Os militares que ameaçam vir para a rua. O rearmamento. O possível regresso do serviço militar obrigatório. A seca. As queixas dos agricultores perante os inevitáveis compromissos ambientais. A debandada de jovens qualificados que ameaça condenar Portugal à morte lenta. Só para citar os que vêm imediatamente à memória. Fazer um aeroporto devia ser uma coisa fácil; estas é que são difíceis.

Ontem, era notícia que o executivo PS partia sem que um único ministério tivesse chegado a mudar-se para o antigo edifício-sede da Caixa Geral de Depósitos e apesar de a mudança ter sido anunciada pelo próprio há cerca de dois anos. O epitáfio perfeito, tragicómico, a um governo verdadeiramente incapaz de mudar o que quer que fosse. A tarefa que aguarda o que agora tomou posse não é, portanto, apenas a de tentar mudar o que o anterior não mudou; é a de o fazer num país que apura há séculos a arte de cruzar os braços.

Palácio da Ajuda? Não estou a ver de onde.