Ilustre deputado 89, não sei se nos conhecemos; na verdade, não faço ideia de quem o senhor ou a senhora seja, mas queria daqui enviar-lhe cumprimentos respeitosos e uma palavra de admiração pelo que tentou anteontem pelo seu país.

Perante o espectáculo deprimente de ver começar uma legislatura com as manobras contorcionistas de quem já só pensa na melhor forma de chegar o mais depressa possível ao poder, o senhor, a senhora, deu aos seus pares um exemplo de sentido de Estado e respeito constitucional que hoje soa a recurso natural em vias de rápido esgotamento.

Recordo: quando foi a votos o nome proposto pelo partido mais votado para Presidente da Assembleia, e a oposição em peso e uns quantos indivíduos que amuaram e que deram o dito pelo não dito votaram em branco, um deputado a mais do que os somados entre PSD, CDS e IL, votou favoravelmente José Pedro Aguiar-Branco: 78 do PSD, 2 do CDS, 8 da IL e um não se sabe de quem. Da sua cabeça, diremos.

Isto, é claro, assumindo que as bancadas votaram em massa da forma como os respectivos líderes anunciaram que votariam, e que a modalidade do voto secreto não tenha motivado muito mais rebeldias. Enquanto PSD e CDS tiveram a ingenuidade de acreditar que bastaria respeitar o Chega para que o Chega respeitasse o que quer que fosse. Enquanto o PS se fez de caro, como se ninguém tivesse falado com eles (sabemos agora que o PSD falou com o PS exactamente como falou com os demais partidos com direito a indicar vice-Presidentes para a Assembleia). Enquanto o Chega mostrou a sua face, para quem ainda não a tivesse percebido: a do puto rufia que pontapeia a bola do jogo para o sítio desagradável mais velho e diz: “ai, não me passam a bola? Então, ninguém brinca.” E enquanto os pequenos partidos terão votado como anunciado, um 89º deputado ou deputada fez o que talvez tenha pensado, liricamente, que também os outros fariam: votou não de acordo com os seus interesses pessoais ou indicações do partido, mas segundo a Constituição, o respeito pela tradição, pelo Parlamento, pelos resultados eleitorais e, acima de tudo, pelo povo, que já está desde 7 de Novembro – 7 de Novembro; foi há quase cinco meses que o primeiro-ministro António Costa se demitiu – à espera que Portugal descongele e alguém comece a tratar da infinda lista de problemas pendentes.

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Governo para dois anos, ao menos? Parlamento que deixasse passar, no mínimo, o primeiro Orçamento de Estado, em nome de um sentido qualquer de responsabilidade? Esqueçam. No dia em que ficámos todos a perceber, com certeza absoluta, que o futuro de Portugal está nas mãos de um menino birrento, o deputado 89 foi o adulto na sala. Pelo menos, na primeira votação. Porque, na segunda, já só 88 votaram no candidato da coligação do governo – sendo verdade que um se absteve. E que, na segunda volta da segunda votação, não houve abstenções, mas voltaram a ser só 88 no homem da AD. Ter-se-á arrependido? Percebido que não valia a pena ser um lobo solitário do idealismo num Parlamento sequestrado? Ou, na verdade, tudo não passou, logo da primeira vez, de um engano? Disseram-lhe para votar “branco” e votou Aguiar-Branco?

Quem será? A senhora do PAN? Difícil de crer, depois de passar os últimos meses a dizer da AD o que Maomé não disse do toucinho. Ou a pessoa do Chega que, nem quando houve uma candidata própria do partido, votou nela (49 votos em Manuela Tender versus 50 deputados do Chega)? Ou António Filipe, o único outro parlamentar a merecer elogio rasgado pela conduta apresentada no primeiro dia da XVI legislatura? O deputado da CDU, mais antigo membro do nosso Parlamento, que presidiu à sessão por boa sugestão da AD, e que disse, questionado pela imprensa sobre se, caso o impasse se prolongasse, não poderia continuar na função, “não foi nisso que os Portugueses votaram”.

Enfim, senhor deputado ou senhora deputada, era isto que tinha para lhe dizer. Seja qual for o seu nome, género, partido ou ideologia, não queria deixar passar em claro a nobreza do seu gesto, mesmo que romântico ou aparentemente inútil, num tempo em que tanta gente age como se a política, mesmo no dia seguinte a eleições, fosse uma guerra, desenhada por trincheiras, e não a gestão do bem comum. Obrigado por praticar ainda aquele antigo desporto a que convencionou chamar-se “ética republicana”. Por mim, não teria dúvidas: era o senhor, a senhora, o/a Presidente da Assembleia da República. Mas quem nos apoiaria?