1 Aqui há umas semanas, ouvi numa televisão o Bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto — um homem de fé forte e um ser amável e afável – prevenir os portugueses da ausência de comemorações do 13 de Maio deste ano, em Fátima. Falava-nos ele a propósito da Páscoa na sua diocese explicando os moldes em que iria ser celebrada e de caminho referiu-se à próxima peregrinação de Maio para, por assim dizer, claramente a desconvocar. O modo como se expressou e as palavras que usou permitiram-me deduzir que, por de trás do seu claríssimo aviso, estava já, como dizer?, uma negociação/imposição política. Quando se ouve o próprio “dona da casa” a desaconselhar o povo a que desista de rumar ao recinto da Capela da Aparições, contrariando uma peregrinação emotivamente muito procurada – ou mesmo desesperadamente procurada — o “recado” do Bispo foi taxativo: a Igreja deve fazer como os outros, obedecer, seguindo o que as autoridades políticas e sanitárias exigiam ao resto do país. Distância, ausência. Fecho: do emprego, da escola, da universidade, do comércio, do ginásio, do estádio, do palco, do lazer. Logo, do culto em igrejas e capelas, também. E assim se fez, era o que estava combinado. E não houve Páscoa. Era o que estava combinado. Igual para todos.

Não sei entretanto o que de então para cá — desde a imposição do confinamento — terá pensado a hierarquia da Igreja e as centenas de sacerdotes espalhados pelo país quando se olhavam a oficiar — e acompanhar! — funerais desertos de familiares mais próximos. Eu sei o que penso e não esqueço sobre um dos maiores actos de abuso de poder a que me foi dado assistir na minha vida (que vai longa).

2 No novo isolamento agora reeditado pelo Presidente da República, sob o argumento, o pretexto, a desculpa — é difícil definir — que estando o parlamento aberto “se” devia comemorar o 25 de Abril, e que a efeméride, 46 anos depois, exigia celebração indispensável, o inimaginável entrou em cena. Imprudente — e indecente — entrada em cena, poucas vezes alguma coisa terá tão nitidamente dividido assim o país. O terceto das hipóteses — desculpa, pretexto ou argumento – obviamente não colhe. De tão frágil chega a embaraçar: com quem estamos a lidar politicamente? Primeiro, não é sério invocar o funcionamento do Parlamento, nunca esteve em causa o fecho da Assembleia nem a ideia teria defesa nem defensores: e porque fecharia? Pelo contrário, o país tem de saber que a Democracia não sofre interrupção para “seguir dentro de momentos” e os portugueses saber que o momento reclama justamente o normal funcionamento das suas instituições. Segundo, nem a democracia está ameaçada – santo Deus! — nem é tão jovem que reclame cuidados especiais ou festejos de aniversário. (O que surgiu à luz foi como está carecida de timoneiros habilitados.)

Está-se assim, diante de uma batota. Uma fractura gravíssima no cumprimento das regras superiormente impostas (com penalizações policiais para prevaricadores). Dito de outro modo: politicamente não se hesitou em separar portugueses, autorizando e promovendo a uns o que se proíbe à maioria dos outros. Exercício muito pouco sério. E nem é preciso lembrar que os médicos, enfermeiros ou demais pessoal da Saúde não veem os filhos há semanas ou relembrar a gelada crueldade da proibição de funerais com familiares (ou simplesmente pensar nos milhares que contavam ir a Fátima rezar e chorar e já não vão). Pensemos agora apenas no que significa a prepotência e a indecência desta comemoração. Chega isso, porque isso é imenso. E inesquecível.

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3 Não vou perder tempo com aquela coisa de sermos todos contra o 25 de Abril ou que o exilio doméstico obrigatório onde estamos é afinal um confinamento de fascistas. Também não me interessará dissertar sobre a pobreza retórica de Ferro Rodrigues num debate indecoroso há dias no Parlamento ao qual ele preside, fazendo de André Ventura o homem com quem subitamente a imensa maioria do país, saudosa de normalidade, se identificou naquele preciso momento. Nada disso interessa nada nem a ninguém. O que interessa é o que faz disto uma questão grave: a quebra de um compromisso exigido ao país pelo Presidente da República por parte da segunda mais importante figura do Estado português. Um acto, repito, de ostensiva e clamorosa batota idealizado, produzido e interpretado pelo Presidente do Assembleia & amigos.

Pequena curiosidade com importância: que acharão estes idosos, gastos e cediços donos do 25 de Abril já sem absolutamente nada para dizer ou trazer ao país, que os jovens de vinte, trinta anos pensam deles, neste 25 de Abril envenenado?

4 O Presidente Rebelo de Sousa além de pródigo nas suas contemporizações com o que levante o menor problema, não terá alcançado que se tivesse falado sozinho diante de um hemiciclo vazio ou quase, teria tido a atenção inteira e intacta dos portugueses, num enquadramento televisivo  poderoso. Assim falará numa sala contaminada pelo vírus da desobediência e da discórdia. (e pode dizer-se pior?).

À hora a que escrevo não são de excluir remedeios e emendas para disfarçar este desastre ou moedas de troca para aquietar ânimos.

Tanto faz: o mal está feito.

PS. Só o conheci no Equador. Ainda antes da série ir para o ar, alguém da produção, muito feliz e muito orgulhoso com o resultado, tinha-me mandado uma cassete com alguns episódios. Ao primeiro, fixei-me – até hoje — em Felipe Duarte que conhecia mal. Inesquecível primeira impressão, lembro-me como se fosse hoje. Da série à entrevista foi um passo: fi-la aqui no Observador, em Junho de 2014 e foi excelente. Ele foi excelente. A partir daí tentei não o perder de vista. Felipe Duarte era um homem decente que praticava com larga abundância uma exigência quase feroz nas suas escolhas profissionais: só “fazia” o que entendia. Podiam pagar-lhe a triplicar, prometer-lhe o sucesso e oferecer-lhe a glória, não cedia. A sua assinatura na carreira que teve e que tanto prometia ainda, era essa mesma: only the best. Lembro-me hoje de mim solitariamente sentada na penumbra de matinées de cinema que projectavam filmes seus, lembro-me de o ter visitado no “set” de “Belmonte” nos estúdios da Global, onde filmava uma novela da TVI com o papel de irmão mais velho de cinco rapazes, protagonistas invulgares de uma saga familiar que ficou inesquecível sobretudo porque ele lá estava; lembro-me de conversas em terraços sobre este ou aquele projecto. E lembro-me de por vezes, lhe telefonar por razão nenhuma, saber por onde andava e a fazer o quê, que era a minha forma de matar saudades – tinha-se naturalmente saudades dele – ouvindo de novo a sua voz. E depois havia sim, a sua parte de mistério. Inatingível mistério que afinal talvez o definisse melhor que qualquer outra coisa. Mas se fiquei sem o mistério, ficou-me, ficou-nos, uma delicadeza ímpar, a sua reserva doce, um talento incólume que nunca nada maculava. Ah, e aquele olhar tão dele. Que coisa tão, tão desamparadamente injusta esta partida.