O futuro próximo do nosso país depende do grau de convergência de quatro transições fundamentais. A transição ecológica, como condição de respeito devida à natureza e ao ambiente. A transição digital, como condição instrumental para o bom desempenho de quase todas as áreas de atividade. A transição empresarial no plano do rejuvenescimento e sucessão geracional, como condição essencial no que diz respeito â sensibilidade para absorver as duas primeiras transições. A transição territorial, como condição de solidariedade que é devida às áreas mais remotas e desfavorecidas.

Por outro lado, estamos num momento crucial para explicitar o que desejamos e queremos para a política de coesão territorial do nosso país. A partir do dia 1 de janeiro de 2021 teremos, por nossa conta:

  • A presidência portuguesa da União Europeia,
  • A aplicação até 2023 (n+3) do Programa Portugal 2020,
  • Em início de aplicação o Programa Económico de Recuperação 2021-2027,
  • Em início de aplicação o Acordo de Parceria do programa Portugal 2021-2027,

Neste contexto, relembro a íntima conexão que existe entre transição ecológica (pacto ecológico europeu), transição digital (plano de ação europeu) e coesão territorial (novos acordos de parceria 2021-2027). O modo como respeitamos a mãe natureza, o modo como interagimos com as máquinas inteligentes, o modo como ordenamos e ocupamos o território, eis os três modos da política de coesão territorial para a próxima década que nos conduzirão, estou certo, até um novo paradigma territorial no século XXI. Nesse novo paradigma a rede 5G desempenhará um papel fundamental. Vejamos algumas áreas de interseção entre a nova economia digital e a coesão territorial.

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As grandes áreas de intervenção da economia digital

Numa primeira aproximação, as áreas principais de intervenção são as seguintes:

  1. A cobertura digital das grandes cidades e áreas urbanas e, muito especialmente, as exigências próprias das áreas metropolitanas, por exemplo, a sua smartificação,
  2. A cobertura digital de cidades e vilas em áreas de baixa densidade e, em especial, as necessidades especificas das cidades inteligentes e criativas no que diz respeito à sua infraestruturação, conetividade e socialização,
  3. A transformação tecnológica e digital de atividades económicas e empresariais, em todas as suas dimensões e, em particular, a transformação digital das PME,
  4. A cobertura digital de novos formatos territoriais da 2ª ruralidade, desde a agricultura de precisão à silvicultura preventiva, da agricultura biológica à gestão de parques naturais, dos geoparques às várias modalidades de amenidades e turismo rural,
  5. A conversão digital dos vários níveis do Estado-administração – central, regional e local – tendo em vista uma boa governação multiníveis e uma melhor política pública de dados abertos, tendo em vista uma coprodução de serviços ao público,
  6. A cobertura digital das entidades de investigação e desenvolvimento, das instituições de ensino superior, das autoridades de regulação e das autoridades especializadas de polícia e combate ao cibercrime, entre outras.

Em todos os casos aqui referidos é fundamental manter a interoperabilidade entre todas as áreas, pois, no final, o que é verdadeiramente determinante para a coesão territorial é a estruturação de ambientes ou ecossistemas inteligentes, só possíveis por via de um sistema operativo que alimente em permanência essas ligações reticulares e sistémicas.

Os tópicos mais críticos da economia digital

Vejamos agora alguns tópicos onde a incidência da conversão tecnológica e digital é mais crítica e, mesmo, mais problemática:

  • A nova cartografia digital do território e um espaço público comum georeferenciado devolvem-nos uma outra cidade e muitas outras funcionalidades urbanas, uma espécie de cidadania em liberdade condicional,
  • A plataformização do Estado-administração e a coprodução de serviços ao público (dos serviços públicos aos serviços ao público),
  • A cidade inteligente e criativa e as indústrias criativas e culturais geradoras de novas cadeias de valor, do cidadão consumidor ao cidadão “consumator”,
  • A nova relação cidade-campo, a smartificação das áreas periurbanas, o papel das circulares ecológicas, das infraestruturas e corredores verdes, da agricultura urbana e da ecologia da paisagem,
  • A política de administração aberta, do acesso aos dados públicos e respetiva fiabilidade das estruturas de regulação em matéria de transparência, privacidade e segurança individual,
  • A territorialização das políticas públicas de coesão territorial e as formas de governação multiníveis,
  • A economia digital e a proliferação de novos modelos de negócio “low cost intensivo” que colidem com as formas tradicionais de organização do trabalho,
  • A economia digital e a hibridação democrática, uma certa desintermediação institucional provocada pela transformação digital, uma espécie de democracia multicanal feita de representação, participação, colaboração e ação direta,
  • A economia digital, o ensino e a formação tecnológica, a literacia geral da população em matéria digital, uma revolução
  • O cidadão e a sociedade appstore, redes sociais e socialização do bem comum digital.

A contribuição da rede 5G e a coesão territorial

Pela sua extraordinária importância, remeto os leitores para a Resolução do Conselho de Ministros (RCM, nº7-A/2020) de 7 de fevereiro relativa à introdução em Portugal da 5ª geração de comunicações móveis, de onde, em especial, retiro a seguinte transcrição:

“A nova tecnologia de rede que agora emerge é a geração «gigabits», estimando-se que permita a transmissão mais rápida de um volume de dados muito maior (cem vezes superior), de forma praticamente instantânea (latência cinquenta vezes inferior), bem como a conexão de muitos mais dispositivos (um milhão de dispositivos por km2).

Este potencial tecnológico traz consigo um novo patamar de comunicações, mas cria, sobretudo, novas oportunidades de desenvolvimento económico e social e condições para um novo paradigma de digitalização. Para além da comunicação entre as pessoas é, agora, a comunicação entre as coisas (a «Internet das coisas») que encontra ambiente tecnológico para alterar significativamente o nosso quotidiano e a nossa forma de viver, passando a ser possível recolher e tratar, em tempo real, volumes de informação impensáveis com as tecnologias atualmente disponíveis, permitindo não só otimizar e melhorar os processos existentes, mas, sobretudo, potenciar o desenvolvimento de abordagens diferentes, quer ao nível de modelos de negócio, de prestação de serviços e de organização social, designadamente nos transportes, na saúde, na indústria, na logística, na energia, no entretenimento e na agricultura.

Por isso, o país precisa de dispor de redes 5G nos setores que mais fortemente contribuem para as mudanças na competitividade e na qualidade de vida, seja nas universidades e escolas públicas, nos centros de investigação, nas zonas industriais, nos portos e nos aeroportos, em todos os modos de transporte, nos hospitais e centros de saúde, seja na gestão das cidades. E deve fazê-lo de forma que a oportunidade seja concedida a todo o território e a toda a população, para que o 5G não acentue as assimetrias regionais e, pelo contrário, contribua para as combater, alavancando uma transformação digital da sociedade.

Na União Europeia, definiu-se que, em cada Estado-Membro, pelo menos uma grande cidade fosse preparada para o 5G até ao final de 2020 e que todas as zonas urbanas e as principais vias de transporte terrestre tivessem cobertura 5G ininterrupta até 2025, sendo entendimento deste Governo estender o alargamento da cobertura 5G a todo o território nacional até 2030. Não sendo possível garantir este nível de cobertura de imediato, deve, em qualquer caso, aproveitar-se esta oportunidade para procurar alargar a cobertura do território através das atuais redes 4G, criando-se incentivos para esse efeito.

Assim, nos termos da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Conselho de Ministros resolve assegurar as seguintes metas de natureza estratégica para o país:

i)Até ao final do ano de 2020, pelo menos uma cidade situada em territórios de baixa densidade, de acordo com a delimitação adotada pela Comissão Interministerial de Coordenação na deliberação de 26 de março de 2015, e uma cidade do litoral, com mais de 50 mil habitantes deverão estar cobertas com rede 5G, através de redes individuais de cada um dos operadores, de redes partilhadas ou de redes grossistas;

  1. ii) Até ao final do ano de 2023 devem estar dotados com redes 5G:
  2. I) Os concelhos com mais de 75 mil habitantes;
  3. II) Todos os hospitais públicos, 50 % dos centros de saúde públicos situados em territórios de baixa densidade e 50 % dos centros de saúde públicos do litoral, que não se encontrem já cobertos por rede fixa de elevado débito;

III) Todas as universidades e institutos politécnicos;

  1. IV) 50 % das áreas de localização empresarial ou parques industriais dos concelhos do litoral e 50 % das áreas de localização empresarial ou parques situados em territórios de baixa densidade;
  2. V) Os aeroportos internacionais;
  3. VI) As instalações militares prioritárias, tal como definidas pelo membro do Governo responsável pela área da defesa nacional;

iii) Até ao final do ano de 2024 devem estar dotados com redes 5G:

  1. I) Os concelhos com mais de 50 mil habitantes;
  2. II) 95 % do traçado das rodovias nacionais com tráfego superior a 7,3 milhões de veículo/ano;

III) A A 22, A 23, A 24 e A 25; as Estradas Nacionais n.º 1 e n.º 2;

  1. IV) 95 % da linha ferroviária de Braga a Lisboa e do corredor ferroviário do Atlântico;
  2. V) 98 % das linhas de comboio suburbanas das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto;
  3. VI) 98 % das redes de metropolitano de Lisboa, Porto e da Margem Sul do Tejo;

VII) O Porto de Sines, o Porto de Setúbal, o Porto de Lisboa, o Porto de Leixões e o Porto de Aveiro;

  1. iv) Até final do ano de 2025, devem estar dotados com redes 5G:
  2. I) Tendencialmente 90 % da população, tendo acesso a serviços de banda larga móvel com uma experiência de utilização típica de um débito não inferior a 100 Mbps;
  3. II) Os restantes portos comerciais nacionais;

III) As rodovias com tráfego superior a 863 mil veículos/ano;

  1. IV) A linha ferroviária Lisboa/Faro; e,
  2. V) As restantes instalações militares.

Solicitar à ANACOM que estude a introdução de mecanismos, nas taxas anuais de utilização do espectro, que beneficiem os operadores que se comprometam a assegurar num prazo a determinar, individualmente ou em conjunto com outros, a cobertura em 4G da totalidade das escolas públicas de todos os níveis de ensino e da linha ferroviária do Norte.

Determinar que a receita proveniente do procedimento de atribuição do espectro radioelétrico para a rede 5G seja utilizada para a criação de medidas destinadas a apoiar projetos de estímulo à transição e inclusão digitais, designadamente na área da educação, da investigação, de produção de conteúdos digitais, da capacitação ou do fomento da literacia digital, bem como da transformação digital das empresas e da Administração Pública, nos termos que venham a ser definidos pelo Governo. Recomendar a atribuição de um prémio pela ANACOM, para as melhores aplicações relativas à educação, à produção e disponibilização de conteúdos digitais, à gestão das cidades, ao turismo, ao trabalho e inclusão, à segurança, à indústria, à saúde, à energia e à proteção e sustentabilidade ambiental.

Determinar que, em execução da presente resolução, o Governo deve:

  1. a) Identificar os instrumentos de financiamento de projetos 5G, que possam servir de base ao desenvolvimento de projetos e ensaios tecnológicos 5G, tendo em considerações as regiões e os setores da economia nacional;
  2. b) Identificar e adotar as necessidades de interesse público relativas a segurança, defesa nacional e proteção civil relacionadas com as redes 5G, nomeadamente no respeitante ao futuro das redes de emergência;
  3. c) Desenvolver e publicitar estudos relativos ao eventual impacto do 5G na saúde pública com o objetivo de dotar a população de informação rigorosa sobre o assunto;
  4. d) Promover as iniciativas científicas, de investigação e pró-empreendedorismo que criem as condições para fomentar a capacidade endógena de conceber tecnologias, produzir conteúdos digitais, desenhar modelos de negócio, discutir padrões técnicos e reforçar a capacidade crítica da população na codefinição e na absorção das soluções de conectividade futura;
  5. e) Apoiar o desenvolvimento de testes de casos de uso nas áreas da gestão da plataforma marítima e da gestão do território rural utilizando os sistemas 5G;
  6. f) Estimular a criação de «zonas livres tecnológicas» onde possam ser desenvolvidos projetos experimentais;
  7. g) Desenvolver iniciativas com vista à promoção da eficiência energética e da sustentabilidade ambiental na instalação de sistemas 5G”.

O quadro sintetiza os aspetos mais críticos da interseção entre tecnologia e território.

Notas Finais

Aqui chegados, há, como se vê no quadro, muitos aspetos na relação entre tecnologia e território que precisam de ser ainda esclarecidos. Por isso, não resisto a comparar esta RCM de 7 de fevereiro sobre o 5G com uma outra RCM de 27 de março (RCM nº18/2020) relativa à revisão do programa de valorização do interior. A comparação é eloquente. A sofisticação tecnológica do 5G e o peso específico dos grandes operadores compara com a singeleza dos propósitos afirmados acerca dos nossos territórios de baixa densidade, quase abandonados. Confesso que fico sem saber o que pensar sobre o futuro da coesão territorial, tal é o número de boas intenções e profissões de fé que ali são enunciadas. Uma coisa é certa e pode ser dada como adquirida: teremos a rede 5G até 2030 e teremos, também, um país 5V a várias velocidades e com futuros muito incertos. Assim, para lá dos vários “G” teremos, igualmente, o país das autoestradas, o país dos itinerários complementares, o país das estradas nacionais, o país das estradas municipais, mas não sabemos, ainda, se o país vai litoralizar ainda mais, se vai “regressar a penates” com o apoio das novas tecnologias digitais ou se aquilo a que chamamos interior vai ser reconfigurado por plataformas de serviços em modo ambulatório, uma vez que os nómadas digitais das próximas gerações viverão em regime de topoligamia, umas vezes in situ outras vezes ex situ. Se assim for, até pode ser divertido.

No caso de Portugal, precisamos, desde já, de montar um verdadeiro estaleiro de programação e realização. Como disse no início, teremos três programas em curso: o Portugal 2020 (n+3), o programa de recuperação 2027 e o programa relativo ao acordo de parceria 2027. Tudo o que está dito nas duas RCM deve ser vertido para estes programas. Fica por saber como vai ser o sistema operativo de tudo isto. Uma das questões mais importantes é saber se a tecnologia digital faz baixar o custo de oportunidade de ter uma administração pública com quatro níveis – central, regional, sub-regional, local – ou se, pela sua própria arquitetura espacial, ela dispensa (ou simplifica) uma administração com quatro níveis, uma vez que a plataformização do estado-administração  e os aplicativos na extremidade do smartphone nos obrigarão a rever a delimitação da atuais atribuições dos territórios-zona convencionais. E tudo irá recomeçar, mais uma vez.