Queimar era um prazer. Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas”. Assim começa o romance de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, uma história distópica sobre uma sociedade alienada, onde os livros eram proibidos e queimados, sob o pretexto de serem perigosos, não representarem verdadeiro conhecimento e poderem conduzir o Homem a um futuro diferente daquele designado pelo poder vigente. Com a memória ainda fresca do Nazismo, visto como uma crítica à censura, o livro foi publicado em 1953 no ano da morte de Estaline.

Queimas de livros foram acontecimento recorrente ao longo da história da humanidade, desde a dinastia Qin, na China, passando pela Alemanha Nazi, até episódios mais recentes, pontuais, em Universidades Americanas, estes últimos fruto do ressurgimento de tensões etnocêntricas. De forma relacionada, no rescaldo do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, foram várias as tentativas, algumas com sucesso, de censurar artistas e autores russos, querendo confundir as pessoas sobre aquilo que é o povo russo e a sua história e as decisões políticas de um Estado.

Enquanto instrumento de censura relativo a aspetos ideológicos, culturais ou políticos, estes acontecimentos tiveram sempre um objetivo muito concreto, procurando, de alguma forma, eliminar um conhecimento específico (um conjunto de ideias, saberes, manifestações artísticas) da consciência coletiva e individual das sociedades, permitindo, desta forma, que ideias “subversivas” fossem eliminadas do tempo e espaço público.

Este perigoso fascínio do Homem pela destruição está bem presente nas linhas da obra de Bradbury, sobre uma época onde os bombeiros já não teriam a função de apagar fogos, mas sim de os atear. Guy Montag, o personagem principal, era um distinto membro desta nova sociedade, onde o velho era queimado para preservar o novo, ou, como hoje eufemística e dissimuladamente se diz, “desconstruir para reconstruir”.

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Na realidade, tal não é mais do que a pretensão da supressão do estímulo da dúvida, do pensamento crítico, eliminando a capacidade de um raciocínio independente, transformando desta forma as sociedades em massas de indivíduos totalmente adormecidos, apáticos e, por isso, facilmente manipuláveis e controláveis.

Hoje, tal como em Fahrenheit 451, o conhecimento passado é visto com desdém, ultrapassado, sem qualquer utilidade para o dia-a-dia do homem moderno, que está demasiado ocupado em “ser feliz”, por vezes num arrivismo incontrolável, bombardeado por informação instantânea que o conduz a um círculo vicioso, interminável, de pequenas descargas de dopamina, tornando-o num toxicodependente de um mundo desmaterializado. “Evite-se dar-lhes matérias escorregadias como Filosofia ou Sociologia para que liguem umas coisas às outras. Esse é o caminho para a melancolia” diz a determinada altura o chefe de Montag. “Venham então daí os clubes e as festas, os acrobatas e os mágicos, os malabaristas temerários, os carros a jato, as motos-helicópteros, o sexo e a heroína, e mais tudo que tenha a ver com reflexos automáticos.

Tal como Mildred, a mulher de Montag, que passava os dias na sua sala forrada com painéis televisivos, hoje vivemos rodeados de famílias e amigos virtuais, onde as conversas e relações começam e terminam com o carregar de um botão.

Não é por isso de estranhar que num dos últimos filmes do universo Star Wars, Luke Skywalker, o herói da saga escrita por George Lucas, seja caracterizado como um homem velho, acabado, descrente relativamente aos feitos heroicos passados, um símbolo de um tempo que já não interessa a ninguém. Num momento particular do filme, o templo da Ordem Jedi (a ordem responsável pela preservação da paz e da justiça) e os velhos “livros sagrados” são queimados por já não serem necessários nem úteis ao Homem Novo. Tinha chegado a hora de se livrarem de “uma pilha de livros velhos”.

Por outro lado, a atual visão utilitarista do livro levou a que as prateleiras das lojas estejam carregadas de aglomerados de papel sobre autoajuda, como ganhar dinheiro ou como curar constipações através de massagens nos dedos dos pés. As grandes obras literárias foram relegadas para secções mais ou menos escondidas, pois ninguém tem disponibilidade, tempo ou paciência para ler algo com mais de 50 páginas e que obrigue a refletir sobre o que quer que seja.

Estima-se que, em 2021, 61% dos portugueses não tenham lido um único livro impresso. Num inquérito conduzido pela Fundação Gulbenkian e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, verificou-se que “na infância e na adolescência, 71% dos inquiridos nunca foram levados a uma livraria, 77% a uma biblioteca. 47% nunca recebeu um livro e a 54% nunca ninguém leu uma história em criança.

Como será possível preservar a sanidade numa sociedade que aceita a sua própria combustão?

São vários os estudos que recomendam aos pais lerem com os filhos desde a mais tenra idade. O hábito de leitura em casa leva a um sucesso significativamente maior na escola, contribui para o aumento do vocabulário, da autoestima, desenvolve boas capacidades de comunicação. Um outro estudo descobriu que 30 minutos de leitura são equiparáveis à meditação e contribuem para uma diminuição da tensão arterial, do batimento cardíaco e da ansiedade. Um vocabulário mais desenvolvido ajuda-nos a pensar melhor, a entender melhor as nossas próprias emoções e a refletir de forma mais crítica sobre o nosso futuro. O livro, enquanto veículo de transmissão de conhecimento ao longo do tempo, foi o que nos permitiu evoluir, acumulando o saber de séculos, permitindo refletir melhor, evitar erros passados, abrindo a possibilidade de construção de um futuro melhor.

Esta alienação progressiva, silenciosa, talvez seja a causa de grande parte daquilo que julgamos estar errado à nossa volta. É a própria apatia que influencia o nosso destino e o destino das nossas sociedades.

E, afinal, a quem interessa a queima dos livros? A quem interessa ter uma sociedade iletrada, sem capacidade de reflexão, sem vontade própria ou impulso criativo? Para responder a isto, provavelmente o melhor mesmo será começar a ler alguns livros.