Catarina Martins e Jerónimo de Sousa ter-se-iam sentido em casa no primeiro congresso do PSD, em novembro de 1974. No Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, ouviram-se apelos insistentes à “construção de uma sociedade socialista”, críticas ácidas aos “vícios do sistema capitalista”, pedidos repetidos de “socialização dos meios de produção” e declarações de amor incondicional a um sistema de planificação da economia.

Houve arroubos e entusiasmos. Um social-democrata do Algarve particularmente extasiado discursou para exigir a nacionalização “imediata” da indústria hoteleira. E, a dada altura, profundamente embalados neste fervor revolucionário, os delegados ao congresso ficaram tentados a introduzir no programa do partido a defesa da autogestão das empresas — e só a custo se contentaram em ficar um degrau abaixo, na co-gestão. Um excêntrico que se deu ao trabalho de defender medidas económicas liberais — Alfredo de Sousa — nem conseguiu acabar de ler o seu discurso.

Ouvindo tudo isto entre o pasmo e o susto, Mota Pinto (pai do atual presidente da Mesa do Congresso do PSD), virou-se para o lado e sussurrou: “Qualquer dia estamos à esquerda do MRPP…”

De facto, esse dia não parecia estar longe. No encerramento do congresso, o próprio Sá Carneiro defendeu “a construção de uma sociedade socialista em liberdade” (a sério) e criticou o “neocapitalismo” e o “neoliberalismo” (juro pela minha saúde).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não que Sá Carneiro acreditasse nisso, como é evidente. Uma coisa era o que ele dizia em pleno processo revolucionário, rodeado por perigos e ameaças; outra coisa (muito, muito diferente), era o que ele pensava. Pouco depois do anúncio da fundação do partido, encontrou-se com Barbosa de Melo, entregou-lhe várias folhas com um projecto de programa e pediu-lhe a opinião. Depois de ler o texto com crescente perplexidade, Barbosa de Melo sentou-se com alguns dirigentes do partido e anunciou-lhes: “Tenho muita pena, mas isto não é o programa de um partido social-democrata. O que vocês estão a fazer é um partido liberal. Portanto, não é a minha opção”. Depois de uma conversa urgente pelo telefone com Sá Carneiro, Barbosa de Melo ouviu o recado: “Ó pá, escreve tu umas bases programáticas como entenderes”.

Estas histórias antigas não são mera arqueologia porque mostram uma coisa importante. Sá Carneiro — que Rui Rio e Luís Montenegro invocaram nos últimos dias, tentando arregimentá-lo para as suas campanhas — não dava especial importância ao discurso teórico sobre se o PSD era de direita, de centro, de esquerda ou (porque não?) de extrema-esquerda. Mas ele sabia muito bem quem é que o partido representava. Dentro do PSD estaria algum eleitorado de esquerda, com certeza, mas também estava, seguramente, a esmagadora maioria do eleitorado de direita em Portugal, que queria um país democrático e capitalista.

É, por isso, surpreendente perceber que há hoje figuras relevantes do PSD que de facto acreditam que o PSD não tem nada a ver com a direita. Nem, aliás, sequer, ainda que timidamente, com o centro-direita. Manuela Ferreira Leite disse mesmo, há dias, “preferir” que o PSD tivesse “pior resultado nas eleições” do que exibir um “rótulo de direita”, que se presume, pelas suas palavras, ser portador de peste negra.

Aliás, se levássemos a sério esta peculiar definição daquilo que é o PSD — um partido que execra a direita –, teríamos que chegar à surpreendente conclusão de que, em Portugal, a direita vale os 7% que as sondagens dão ao CDS. Aliás, nem isso, tendo em conta que alguns militantes do partido de Assunção Cristas levam a sério a designação de “centristas” e, por isso, também olham com suspeição para o “rótulo de direita”.

Logo a seguir ao 25 de Abril, sempre se disse que, no PSD e no CDS, os dirigentes estavam à esquerda dos militantes e os militantes à esquerda dos eleitores. Mas convenhamos que agora, em 2019, estamos a chegar a um ponto próximo do ridículo. Sete por cento ou menos? Nem na Venezuela a direita é tão tristemente exígua.