Devem os governos submeter-se a regras de política económica ou devem ter as mãos completamente livres? A resposta a esta questão separa, em geral, a esquerda da direita. Temos assistido basicamente a esse debate quando o BE e o PCP criticam a “ditadura” da redução do défice público “imposta” por Bruxelas, enquanto o PS vai reduzindo o défice público como se propõe fazer também em 2019, embora sem simpatia pelas regras e mais próximo dos que defendem que os políticos eleitos têm legitimidade para fazer tudo. No quadro europeu e designadamente na Zona Euro, a escolha é claramente pela definição de regras, cabendo a entidades independentes defender a sua aplicação.

Assim acontece com a política monetária (determinação das taxas de juro) totalmente retirada das mãos dos governos. Assim acontece com a política orçamental, em que o espaço de manobra dos governos está condicionado à regra do equilíbrio orçamental a longo prazo. Igualmente naquilo que podemos designar como política microeconómica, as regras, por oposição a discricionariedade, são a “regra” na União Europeia. Foi por causa disso que foram tiradas da alçada do Governo as competências de defesa da Concorrência e a Regulação, transferidas para entidades independentes. A importância que os construtores da União Europeia deram a esta matéria foi tal que a Concorrência é, na Comissão Europeia, uma área completamente independente, onde se podem tomar decisões técnicas sem qualquer validação política dos conselhos de ministros da União Europeia. Para o bem e para o mal, com problemas como aqueles que temos enfrentado para resolver a situação dos bancos. (Foi dali, da direcção-geral europeia da Concorrência que emanaram as regras de intervenção nos bancos, a última das quais disse respeito à CGD).

A tentação de governamentalização destas entidades independentes, macroeconómicas e microeconómicas, atravessa todos os governos. O que faz com que, no domínio da concorrência e da regulação, a independência destas entidades fique muito dependente da resistência de quem as lidera e da sua capacidade de se afirmar para além do Governo. Em geral não o conseguem.

Durante os últimos anos assistimos a demissões, nomeadamente na Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) da qual bateu com a porta Jorge Vasconcelos em 2006 em rota de colisão com o então ministro da Economia Manuel Pinho. O problema na altura, como agora, era a dívida acumulada fundamentalmente à EDP por uma subida do preço da electricidade inferior ao aumento dos custos. A ERSE está mais uma vez no centro das atenções agora por causa da nomeação de um deputado do PS, Carlos Pereira, para a administração, sem que tenha qualquer curriculum neste sector. Estas entidades deveriam, teoricamente, ter um cariz técnico e essa deve ser a principal critica a nomeações que não respeitam esse princípio.

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Outra técnica usada para condicionar a actuação destas entidades independentes é atacá-las no espaço público, sabendo perfeitamente que as suas lideranças não têm condições para irem a jogo, defendendo-se ou contra-atacando. Foi a isso que assistimos no início deste Governo com o governador Banco de Portugal, Carlos Costa, e com a presidente do Conselho das Finanças Públicas Teodora Cardoso. A saída de Joana Marques Vidal do cargo de Procuradora-Geral da República tem igualmente este traço de neutralização de quem é independente ou assume um peso na sociedade que pode ultrapassar o do Governo.

O que está em causa é sempre o mesmo: os governos querem dar aos cidadãos, especialmente quando se aproximam eleições, ganhos de curto prazo que têm custos a longo prazo. A investigação económica, que prevaleceu durante os últimos anos, foi no sentido de dizer que se deveriam estabelecer regras para que os governos não tomassem medidas com ganhos no presente que se iriam pagar bastante caro no futuro, acabando por condenar os países a desenvolverem-se menos, a crescerem menos. E esses resultados da investigação económica derivaram da experiência anterior a esta fase de regras, altura de total liberdade de acção dos governos. É dos anos 80 do século XX e parte dos 90 o uso em Portugal, por exemplo, da taxa de juro para ganhar eleições: mesmo que a terapia recomendada para aquela conjuntura fosse a subida dos juros, eles desciam para depois subirem, ainda mais, depois das eleições.

A independência dos bancos centrais surge em grande medida para combater o uso das taxas de juro – da política monetária em termos gerais – para conquistar eleitorado. Na prática, retirou-se esse poder das mãos dos governos e é em parte graças a isso que vivemos num ambiente de estabilidade de preços. Criaram-se sem dúvida outros problemas: existe nomeadamente a interrogação sobre o contributo que os bancos centrais têm dado para a instabilidade financeira, com relevo para a crise iniciada em 2008. Mas esta é uma regra – a independência dos bancos centrais – que é basicamente pacífica, aceite e considerada como positiva pelos economistas que acompanham este domínio.

No caso das finanças públicas, a criação do euro foi acompanhada, como se sabe, pela definição de regras para as contas do Estado que correspondem, simplificadamente, a manter o equilíbrio orçamental a médio e longo prazo, limitando-se o défice público a 3% do PIB. A definição de regras para a política orçamental é menos consensual entre os economistas. Mas este trabalho, por exemplo, conclui as regras produzem melhores resultados nos países muito endividados, enquanto as decisões discricionárias podem ser melhores para os menos endividados. Ou seja, Portugal devia seguir, com disciplina, as regras orçamentais. Não é isso que faz.

Para reforçar o cumprimento das regras orçamentais, europeias ou próprias, alguns países criaram um órgão independente que verifica, previamente, e a nível nacional, se o Orçamento respeita regras que estão estabelecidas. Em Portugal, já no quadro da troika, nasceu o Conselho das Finanças Públicas.

Não tardou muito para este Governo usar os meios que tinha ao seu dispor para tentar descredibilizar também esta instituição liderada por Teodora Cardoso. Além do ataque cerrado aos alertas que o Conselho fez no passado, impediu que se fosse buscar a ex-chefe de missão do FMI em Portugal, Teresa Ter-Minassian, para a equipa. Claro que com essa inviabilização, acompanhada pelos ataques, conseguiu tornar menos audível a voz do Conselho das Finanças Públicas.

Quando agora revisitamos o passado verificamos que a equipa liderada por Teodora Cardoso tem um bom curriculum de avaliação dos riscos associados às previsões macroeconómicas. No primeiro Orçamento de Estado de António Costa, o CFP disse: “as previsões macroeconómicas subjacentes ao Projeto de Plano Orçamental para 2016 apresentam riscos relevantes”. O Governo previa no Orçamento um crescimento de 2,1% a economia acabou por crescer 1,5%. No parecer sobre o Orçamento para 2017o CFP escreveu, pelo contrário,que “o cenário macroeconómico subjacente à POE/2017 apresenta projeções estatisticamente plausíveis”. O Governo previa 1,5% e a economia acabou por crescer 2,8%. Ou seja, o próprio Governo foi surpreendido. Para 2018 o CFP valida o que espera o Governo dizendo que endossa as previsões macroeconómicas subjacentes à Proposta de Orçamento do Estado.

É no quarto e último Orçamento da legislatura do Governo liderado por António Costa que, pela primeira vez, o CFP não valida as previsões. Diz a equipa liderada por Teodora Cardoso, lê-se nas conclusões, que “contrariamente ao disposto na lei de enquadramento orçamental, o cenário macroeconómico subjacente à proposta de lei de Orçamento do Estado para 2019 não pode ser considerado como o cenário mais provável ou um cenário mais prudente”. O que diz a lei de enquadramento orçamental? No seu artigo 8.º consagra que “as projecções orçamentais subjacentes aos documentos de programação orçamental” previstos na lei “devem basear-se no cenário macroeconómico mais provável ou num cenário mais prudente”. E a entidade competente para avaliar se se cumpre esta regra diz que ela não está a ser cumprida, dando ainda ao Governo a possibilidade de a sua opinião ser mudada, uma vez que esse parecer negativo se deve a falta de informação, que foi solicitada, mas não entregue atempadamente.

Depois deste parecer do Conselho o que é que se passou? Nada. Nem um partido político, que se desse conta, questionou ou disse ter a intenção de perguntar ao Governo se há informação complementar que permita concluir que está a cumprir a lei de enquadramento orçamental. Todos sabemos que, com excepção da Universidade Católica que prevê um crescimento de 2,3% (superior aos 2,2% previsto pelo Governo no Orçamento do Estado), todas as entidades que fazem previsões apontam para valores de 1,8 a 1,9%.  O Governo diz que a sua previsão está relacionada com a evolução do investimento, nomeadamente o privado. Mas é preciso saber mais do que isso, já que as receitas e as despesas são influenciadas pelo crescimento.

Os governos tentam em geral capturar as entidades independentes. Este Governo leva isso ao limite. Governamentaliza ou se for preciso ataca e fragiliza essas instituições. A falta de uma sociedade civil forte e informada é o melhor aliado de qualquer poder que queira neutralizar quem o tenta fiscalizar e até proteger de si próprio, das suas tentações eleitoralistas que garantem ganhos de curto prazo e perdas a médio e longo prazo. Voltamos ao mesmo, especialmente agora que vamos a caminho do fim de uma legislatura em que se perdeu o PCP e o BE como escrutinadores e se fragilizaram ainda mais as instituições independentes. Com o tempo vamos perceber que essa independência afinal só serve para o Governo se desresponsabilizar quando precisa. Porque tudo acaba por funcionar como se essas entidades independentes fossem dependentes do Governo.