Ao basear as preocupações éticas de uma sociedade em sentimentos, criamos um obstáculo à preservação daquilo que é verdadeiro e ao que a mantém.

O relativismo moral é característica e propriedade da vida pós-moderna, porém nem a mais liberal ou libertária das facções prescinde de preceitos que considere absolutos e inatacáveis, cuja relativização seja considerada herética, nos termos de hoje não-científica, e, por conseguinte, perigosa para o bem comum.

1 “Como se atrevem?!” Repetiu as vezes necessárias a activista pelo clima Greta Thunberg a uma audiência de líderes mundiais altamente qualificada e disposta à rendição de um valor que se tornou absoluto, a preservação da terra, casa comum, cujo inimigo são as alterações climáticas. O preceito da preservação da casa comum é guardado pela afirmação inquestionável de que são as alterações climáticas que a ameaçam: qualquer relativização do valor do planeta é negar o futuro; qualquer questionamento sobre os maus efeitos das alterações climáticas é considerado um discurso perigoso para a preservação da humanidade no planeta. Pois antes mostrássemos e afiássemos as mesmas garras no que toca ao valor da vida humana. Apesar de consagrado na Carta dos Direitos Humanos, o direito à vida, na sua forma absoluta, tem vindo a desafiar a modernidade e a pós-modernidade nas formas mais íntimas das propriedades de ser humano: na sua razão no século XX e nas suas emoções no século XXI.

2 Quanto à razão de cariz darwinista, maturada nos princípios de século XX na comunidade científica ocidental (sobretudo Alemanha e Estados Unidos da América) e aplicada durante o III Reich, incluiu a eutanásia no projecto global de eugenia, dando instrumentos sofisticados ao deslumbramento perante a possibilidade de construir uma sociedade de raiz, sem defeitos e com as melhores qualidades, escolhendo entre todos os bons elementos para se reproduzirem e eliminando e esterilizando todas as categorias ineficazes, deficientes, doentes, velhos. Não é meu propósito, aqui, desenvolver este aspecto, pois outros artigos têm sido muito competentes nessa análise. Porém, importa referir esta relação porque os proponentes da eutanásia de hoje, longe de justificarem a sua causa com a narrativa subjacente à eugenia biológico-étnica, preservam, contudo, o mesmo princípio implacável, ou seja: que são precisas determinadas condições de vida para que valha a pena estar vivo em sociedade. Sobre este princípio é elaborada uma manobra de virtuosismo ideológico, cuja exposição requer uma nota prévia sobre a noção de “verdade”. Considero importante para a discussão sobre a eutanásia ter presente que a verdade perdeu no ethos contemporâneo o seu carácter absoluto, foi relativizada à linguagem primeiro e, por consequência, à percepção de cada indivíduo, dando lugar ao subjectivismo actualmente dominante em todas as manifestações culturais – a expressão de si próprio desde a arte de galeria até às stories do Instagram.

Por outro lado, dizeres de senso comum, tais como “cada um tem a sua verdade”, “o que importa é ser feliz”, “é uma questão de percepção pessoal”, são o resultado de um esforço para manter o sentido da vida a orbitar em si próprio. Ora, o carácter absoluto da verdade exige ir à procura de sentido para além e fora de si próprio, implica um questionamento dos próprios motivos para qualquer acção e uma vontade que discipline os sentimentos, sendo que a disciplina é mais ou menos dolorosa consoante o que estiver em causa. Este movimento que nos caracteriza como espécie humana, ou seja, o exercício da vontade aliado à inteligência em reconhecer uma verdade superior a si, tem vindo a ser denunciado como arrogante, opressor e agora irresponsável para o planeta que sofre injustamente. De tal maneira, que o ser humano tem que esterilizar as características que o diferenciam dos animais – a inteligência e a vontade – e submetê-las à característica que partilha com animais e plantas: os sentimentos.

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Assim, os proponentes da eutanásia assaltam como abutres a carcaça antropológica em que a pessoa se transforma quando reduz a sua essência àquilo que sente, ao propor vias de salvação terapêuticas que negam o sofrimento humano e provocam a revolta contra as suas causas. É neste ponto que se dá a manobra virtuosa ideológica, que consiste em transferir o qualificativo de “indigno”, pertencente a condições sociais como a miséria económico-financeira, a deficiência mental profunda, a doença incurável, etc, para o inculcar na vida de quem sofre essas mesmas condições: é indigna a vida deles não pelos recursos que consomem, mas sim pelo sofrimento que padecem e provocam nos que estão à sua volta. Não é verdade que se defende a eutanásia com expressões como “morrer com dignidade”? Que se afirma que é um acto de compaixão terminar com o sofrimento de uma pessoa em estado incurável? Os proponentes da eutanásia defendem que é desumano sofrer uma doença incurável até ao fim, porque consideram que viver é sentir-se bem consigo próprio, saudável, feliz, activo e independente. Isto, a nível pessoal, porque a nível moral – que é o nível que uma lei de Estado tem em conta – consideram que ninguém tem de ser submetido a testemunhar a degeneração físico-mental de alguém em fim de vida: porque não poupar um desgaste emocional à família de uma pessoa que se sabe sem cura? Porque insistir em cuidar daquele que é incurável? Porque ser um peso quando tenho uma possibilidade de melhorar a vida dos meus entes queridos de forma limpa? Estas perguntas surgem num ethos que se pode denominar de eugenia social: ancorados no capricho dos sentimentos que não encontra sentido no sofrimento, incapazes de resolver as condições que o causam, os proponentes da eutanásia usam todos os instrumentos que possam poupar o ser humano do confronto com a sua fragilidade e dependência intrínsecos ao facto de estar vivo.

Ao rejeitar o carácter universal da dignidade da vida humana, independentemente da sua condição médico-social, a proposta da  eutanásia é fraudulenta ao apresentar-se como caminho para uma maior e merecida felicidade através da eliminação do sofrimento injusto, pois o único que consegue avançar como solução é a destruição total de qualquer possibilidade de sofrer. Se os dirigentes mundiais que ouviram toda a sessão apresentada pela menina Greta Thunberg propusessem a destruição do planeta como reposta ao problema por ela colocado, será que ela o aceitaria?

3 Todos os que se têm mobilizado contra a formulação de uma lei a nível de Estado, através da promoção de um referendo, têm a vantagem de se irem deitar à noite em paz, cansados do seu trabalho, sem se julgarem absolutamente essenciais à formulação e implantação de uma solução para o mundo, hoje e já. Agindo assim, privilegiam a extraordinária condição de estar vivo na recusa de condicionar a veracidade da sua causa aos resultados desejados e previnem uma ruinosa geração de ressentimento contra outras pessoas, grupos, ou a própria criação perante a manifestação concreta de que é a vida que nos supera e não o inverso. A formulação de uma lei que legalize a prática da eutanásia já é um acto indigno em si, por parte de representantes de um povo; a sua aprovação, ignorando um claro pedido de consulta popular, prova o quão empenhados estão os proponentes da eutanásia em impor o seu critério indigno e socialmente eugénico, gravando-o na lei para as futuras gerações.

4“Mas trata-se de sofrimento atroz e garantido até à morte, essas pessoas devem ter direito a escolher como morrer, já que nada será diferente até ao seu último dia”, replicam os proponentes da eutanásia. E eu pergunto: será mesmo honesta essa formulação e aplicada apenas aos casos incuráveis? O sofrimento é transversal à experiência humana. Se estas pessoas não veem sentido no sofrimento terminal, também não o veem em todos os outros tipos de sofrimento, o que se manifesta através do modus operandi activista que trabalha sobre a base de garantir instrumentos de justiça para prevenir aquilo, ou aqueles, de infligir sofrimento aos grupos determinados vulneráveis – mulheres, animais, velhos doentes…

5 Não, nós, os que contrariamos o avanço de políticas que normalizem a prática da eutanásia também temos compaixão e não queremos ver ninguém sofrer. Não temos nenhum gosto nisso e, seguramente, temos muita experiência com casos bastante dolorosos. Porém, se de um lado é importante não ceder ao sentimentalismo de evitar a todo o custo o confronto com situações que nos angustiam, entristecem ou nos fazem sentir impotentes até níveis existenciais – tendência esta, que vem camuflada sob um falso conceito de liberdade de escolha muito conveniente às emoções -, por outro, ganhamos em enrobustecer activamente as virtudes humanas que possibilitam enfrentar essas situações fatais sem medo e com a determinação de lhe atribuírem um sentido, que esteja ao nível da inteligência e vontade, que têm vindo a justificar a existência humana como tal desde a fundação do mundo.