Lembram-se da manifestação contra a legalização da eutanásia, há dois anos, em Maio de 2018? Nessa manifestação, apareceu um cartaz, carregado por uma jovem, que pedia “Não matem os velhinhos!” Muita troça e falsa indignação provocou esse cartaz.

DR

Provavelmente eu não usaria o cartaz. Mas o caminho que esta questão crucial tem seguido na Europa mostra que o cartaz é que está certo. Mostra que o cartaz corresponde à verdade. Mostra que essa inquietação se justifica plenamente: “Não matem os velhinhos!”

Esse é precisamente o ângulo que está, hoje, no coração do que mais se discute na Holanda e na Bélgica, os primeiros Estados-membros da União Europeia que, em 2002, abriram a porta à eutanásia. O regime estabelecido nestes dois países, quanto à elegibilidade para eutanásia, não difere, no essencial, do  proposto nos cinco projectos de lei aprovados na generalidade, na semana passada, no plenário da Assembleia da República: o requerente deve fazer um pedido expresso, bem ponderado e de livre vontade; deve estar consciente e mentalmente capaz; a sua situação clínica deve apresentar-se sem perspectivas de evolução favorável; o sofrimento tem de ser constante e insuportável; e o médico a quem o pedido é feito deve conhecer bem o requerente, seguindo-se ainda um processo de certificação com intervenção de outros médicos.

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Este quadro legal, aparentemente restritivo, tem-se mantido (com excepção da ampliação a menores, incluindo crianças, em 2014, na Bélgica). Mas a prática alargou-se cada vez mais: ambos os países têm vindo a descer a denunciada “rampa deslizante” – a slippery slope. Os números crescem continuamente, mostrando a banalização da eutanásia: na Bélgica, o total de eutanásias multiplicou-se oito vezes em 15 anos; na Holanda, multiplicou por 3,5 vezes no mesmo período, mas partindo de um número mais elevado – a Holanda já tinha, desde os anos 1990, um regime de eutanásia consentida, antes da legalização. Hoje, na Holanda, a eutanásia é já a causa de cerca de 5% do total de mortes/ano. Na Bélgica, são 2,5%.

Casos de eutanásia na Bélgica (2002/2017) Com indicação dos números parciais na Flandres (língua neerlandesa) e na Valónia (língua francesa)

Casos de eutanásia na Holanda (2002/2017) Gráfico: BBC

Não é só o aumento constante do número de casos que merece atenção. É a eutanásia estar também a ser usada, cada vez com mais frequência, em casos de demência – a maioria, creio, casos de Alzheimer – ou seja, para “matar velhinhos”.

Existe uma amplitude cada vez maior da casuística de aplicação, embora as leis não tenham mudado. Regista-se, sobretudo na Holanda, o aumento acentuado do número de eutanásias por doenças mentais, sofrimento psicológico e “múltiplas patologias” frequentemente associadas à velhice. A partir de 2009, mesmo aqueles com demência e, no momento da morte, capacidade diminuída ou inexistente de consentir em morrer estavam a ser eutanasiados. E todo este alargamento ocorreu sem que o Governo ou o Parlamento holandeses fizessem quaisquer alterações na sua lei de eutanásia.

Holanda (2010/17): Eutanásia em casos de velhice, demência e doenças psiquiátricas Gráfico: #DefendNZ

Holanda (2009/2017): Eutanásia em doentes com demência Gráfico: BBC

A estatística mostra o crescimento exponencial da eutanásia para doentes com demência: 12 casos em 2009, 169 eutanasiados em 2017 – ou seja, 14 vezes mais em oito anos!

E não lhes chega. Os donos desta agenda querem mais. Entraram recentemente projectos no Parlamento belga, dos socialistas e liberais flamengos, para facilitar o recurso à eutanásia na demência. Na Holanda também. Mais passos “rampa deslizante” abaixo. Esta mesma Holanda, que parece querer tornar-se a cloaca moral da Europa, acaba de abrir, como foi muito noticiado, o debate sobre a pastilha do suicídio para os maiores de 70 anos. Socialmente, uma espécie de “prazo de validade”.

Com a eutanásia legalizada, o passar dos anos fez com que os critérios, aparentemente apertados da lei, fossem sucessivamente folgados e ampliados a novas causas e circunstâncias. Produziu também um relaxamento nos critérios de avaliação – sempre a posteriori – pelos comités de acompanhamento e revisão, assim se “ratificando” tacitamente a crescente permissividade. E tem vindo a dissolver os critérios morais, sociais e até judiciais.

Em Setembro de 2019, a sala do tribunal de Haia rompeu em aplausos, quando a juiz anunciou que a médica “cumprira todas as exigências da lei” num caso de eutanásia forçada numa doente de 74 anos de idade, com demência avançada. O processo judicial, que mereceu atenção internacional, fora iniciado um ano antes, depois de uma repreensão, por parte do comité de revisão, aos médicos envolvidos. Cinco anos antes, a doente deixara escrito (mas não numa declaração formal de eutanásia) que preferiria ser eutanasiada a ser internada num lar. E acrescentou, também por escrito, que “quereria decidir quando chegasse o momento, enquanto estivesse consciente e quando achasse que era a altura certa”. Mas, noutros momentos, expressara a vontade de que não queria que a morte lhe fosse provocada. Já internada num lar, em Mariahoeve (Haia), e tendo-se agravado a demência, a médica decidiu que devia proceder-se à eutanásia, não podendo consultar-se a vontade da doente. Esta decisão foi confirmada por outros médicos e marcou-se o dia. Na manhã aprazada, a médica foi tomar um café com a doente, o marido desta e a filha de ambos, numa “atmosfera agradável”, fazendo diluir um sedativo no café, a fim de a adormecer. Meia hora volvida, a médica aplicou segunda dose do sedativo por injecção, mas a doente, embora tonta, manifestou desagrado e reagiu à dor com a agulha. Com a doente já adormecida, a médica tentou administrar uma dose letal de outro produto, mas a doente acordou, resistiu à injecção e levantou-se. A médica pediu, então, aos familiares que a empurrassem para baixo e a segurassem, a fim de poder aplicar a injecção final. Enfim, a idosa morreu. O tribunal concluiu pela absolvição da médica de todas as acusações carreadas pelo Ministério Público. Poucos dias antes do julgamento, um porta-voz do Procurador declarou que “nunca haviam duvidado de que a médica agira com a melhor intenção” e que “não é justo aplicar uma penalidade”. Em resumo, num caso de eutanásia forçada sobre uma idosa com demência: a médica decide sem qualquer pedido; a decisão e execução da eutanásia são escondidas da doente; esta é posta em estado de inconsciência; a doente debate-se e resiste contra a eutanásia; a família coopera e agarra a doente para ser eutanasiada; a médica consuma o acto – tudo claramente fora-da-lei, violando várias normas. Mas o tribunal conclui que a lei foi cumprida, o próprio Ministério Público também crê que não houvera mal, a família apoia e agradece e, na sala de audiências, o público rompe em aplausos.

Theo Boer, um académico eticista, protestante, apoiante da legislação da eutanásia e que integrou desde o início comités de revisão dos casos, viria a demitir-se face à evolução muito negativa. Ao Expresso Diário de 19 de Fevereiro, afirmou: “A eutanásia na Holanda é um caso de oferta que criou a procura. Desaconselho outros países a seguirem-nos as pisadas”. E acrescenta: “Há um problema com a transparência, as ‘zonas cinzentas’ não estão tão expostas, tão documentadas, como deviam. Há centenas de mortes induzidas, algumas até sem pedido expresso do doente, que não são reportadas e não chegam às comissões.”

O mesmo Theo Boer, em entrevista ao jornal i, em 20 de Fevereiro, acrescentou o exemplo recente do Canadá: “O Canadá é um exemplo importante e trágico. Há cinco anos a eutanásia foi legalizada apenas para doentes terminais. (…) Agora, apesar de todas as cautelas, a eutanásia ficará disponível para doentes psiquiátricos, doentes com demência, doentes idosos e doentes com patologia crónica. Houve alterações semelhantes nos EUA, na Bélgica e na Suíça.” Lá está de novo a pertinência do cartaz: “Não matem os velhinhos!”

Theo Boer é claro no seu prognóstico, baseado na experiência e no conhecimento de várias realidades: “A proposta de lei portuguesa é apenas um trampolim para uma maior liberalização. (…) Quem nega este automatismo é mal informado ou mal-intencionado. (…) Se Portugal legalizar a eutanásia, basta olhar para os Países Baixos para saber onde vão estar daqui a vinte anos.”

Por isso, não chega apelar aos deputados na Assembleia da República para que, escutando quem sabe e estudando a realidade destes países, parem este desgraçado processo. E não chega também convocar o referendo, para elucidar a opinião pública e convocar a cidadania a decidir.

Como já fiz algumas vezes, é urgente chamar os eurodeputados para que se mobilizem e mobilizem os colegas de outros Estados-membros para a vigilância democrática e personalista sobre a Holanda e a Bélgica.

Nos termos do Tratado da União Europeia, «a União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, (…) valores [que] são comuns aos Estados-Membros» – é o artigo 2º. Para defesa destes valores fundamentais, o artigo 7.º estabelece: «Sob proposta fundamentada de um terço dos Estados-Membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão Europeia, o Conselho, (…) após aprovação do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave dos valores referidos no artigo 2.º por parte de um Estado-Membro.»

É este processo que se tem esgrimido contra Hungria e Polónia: um processo de vigilância democrática, que pode justificar a aplicação de medidas de contenção ou sancionatórias. O Parlamento Europeu accionou-o contra a Polónia, em 27 de Fevereiro de 2018, e contra a Hungria, em 12 de Setembro de 2018. Está na hora de o fazer sobre a Holanda e a Bélgica, face a esta deriva absolutamente chocante da morte provocada, desencadeando a vigilância das instituições europeias em defesa dos valores comuns e dos direitos fundamentais. Está na hora!

Na Holanda, a eutanásia já ultrapassou as 6.500 mortes/ano – 18 por dia, a caminho de uma a cada hora! Na Bélgica, a evolução é similar, num patamar mais baixo: em 2015, passou as 2.000 mortes, mais de cinco por dia. Em 2014, iniciou a eutanásia a menores, a crianças. Desde a legalização em 2002, já foram mortas por eutanásia 90.000 pessoas na Bélgica e na Holanda.

Tudo isto nas barbas das instituições europeias, ali mesmo pertinho do Berlaymont, do rond point Schuman, da place du Luxembourg. Não se preocupem só com a Polónia e a Hungria. Não se preocupem só com temores e ameaças. Prestem atenção ao que já está a passar-se no coração da União Europeia. São factos, barbaridades, a acontecer: 23 mortes por dia, na Bélgica e Holanda! E querem mais.

A iniciativa deve partir dos eurodeputados do CDS-PP e do PSD, movimentando trabalho, imaginação, persistência, capacidade de acção política. Mas até os eurodeputados do Bloco de Esquerda e do Partido Socialista têm o dever de se mobilizar neste propósito. Tanto garantem que, em Portugal, nunca haverá rampa deslizante, que têm, a partir do Parlamento Europeu, a oportunidade de mostrar que são mesmo contra ela e a querem combater, onde o caso já atingiu proporções bárbaras. Há muitas vozes e instituições belgas e holandesas à espera de serem ouvidas.

Importa também libertar a classe médica do fardo e da pressão que a muitos foram impostos nesses países, desvirtuando a sua missão. Numa entrevista ao EXPRESSO, um médico belga revelava que já realizara mais de 200 eutanásias, entre as quais a do seu irmão. Um médico, depois de fazer 200 eutanásias, ainda é médico? Diz Theo Boer, na entrevista ao jornal i: “Muitos [médicos] lamentam-no agora: alterou a relação médico-doente no sentido em que agora alguns doentes vêem a eutanásia como um procedimento médico normal. Conheço muitos médicos que hoje recusam a eutanásia.” E acrescenta: “A legalização da eutanásia teve como efeito profanar a profissão de médico: o seu trabalho tornou-se parte de uma agenda social liberal.” Está a criar-se também um sério problema de saúde pública.

“Não matem os velhinhos!” A Bélgica e a Holanda estão a fazê-lo; e querem ir ainda mais longe e mais fundo. Não pode ser. A Europa não pode continuar em silêncio. As instituições têm de funcionar. É preciso que os eurodeputados nos representem, parando estes abusos.

Visita a Auschwitz-Bierknau do grupo do Dr. Wim Distelmans Foto: SPIEGEL International, 2014

Wim Distelmans, um médico que o Daily Mail alcunhou de Dr. Death (o “Dr. Morte”), é responsável por centenas, senão milhares, de mortes a pedido na Bélgica. Tem o seu próprio Centro, exerce nos hospitais e preside à Comissão da Eutanásia governamental. Em 2014, para “estudar a morte”, achou por bem organizar uma visita ao complexo de Auschwitz de dezenas de profissionais de saúde belgas envolvidos na prática da eutanásia. Recebeu vários insultos por causa da iniciativa, desde judeus furiosos de Antuérpia até um alemão que lhe mandou um e-mail seco: “Assassino!” A ideia era contrastar e compreender pelo contraste.

É muito interessante a leitura, na Spiegel International, da reportagem da jornalista Katrin Kunz sobre esta visita: Euthanasia Doctors Seek Existencial Answers at Auschwitz. Distelmans procura compreender. A jornalista repete algumas vezes esta frase; e uma vez escreve que “ele diz que não compreende nada”. A ideia com que fiquei é a de que Distelmans, de facto, não compreendeu. Não compreendeu que o problema não é tanto o da liberdade e da opressão. Às portas da morte, ninguém tem propriamente liberdade. E, no caso da velhota de 74 anos, com demência, no lar de Mariahoeve, a eutanásia foi feita sem liberdade e com opressão, mas “no seu melhor interesse”. O problema é o da indústria da morte. O problema é o da dinâmica da indústria da morte. É isso que Distelmans não entendeu – e talvez o inquietasse por um breve momento. É isso que a Europa tem de parar. Se ainda for a tempo.

Na União Europeia, há que exigir que se façam respeitar os nossos valores comuns e cumprir os direitos fundamentais. Não pisem, não destruam os limites da decência e da humanidade.

É a hora dos eurodeputados.