Afinal, os problemas de fronteira, mesmo no interior da União Europeia, não parecem estar resolvidos, como se retira dos exemplos do Brexit (Escócia e Irlanda do Norte) e da Catalunha, mas, também, de Gibraltar e de muitos outros em lista de espera, já para não falar dos problemas críticos que abundam em toda a orla fronteiriça da União Europeia. Estamos perante uma aplicação da “teoria do duplo movimento” de Karl Polanyi, que nos diz que “onde há fluxo, há refluxo do movimento”. Se tivermos este ensinamento em mente já estaremos mais avisados para os próximos episódios de formação da aldeia global, dos universos virtuais e dos processos de integração regional. Afinal, a globalização das trocas, a imigração, a evasão fiscal, a transformação digital, o crime organizado e o terrorismo, o turismo de massas, as desigualdades sociais, todos apresentam um fluxo e um refluxo cujas consequências estão à vista e que, por isso, importa acautelar.

Este é um bom pretexto para uma breve reflexão acerca do que pode ser, hoje, “uma nova sabedoria dos limites do território”. A tecnologia não determinou o fim das fronteiras, também aqui não há razões para decretar o fim da história.

1 Uma nova sabedoria dos limites: a sociedade política local do século XXI

Em minha opinião, uma nova sabedoria dos limites começa, desde logo, pela sociedade política local que ultrapassa, em muito, a política do poder local. Na era digital, o novo paradigma em questão exige um município mais aberto, mais cosmopolita, mais conectado e mais colaborativo:

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  • Em primeiro lugar, um município mais comunitário e federalista, com uniões de freguesias, associações de municípios e comunidades intermunicipais, praticando a governação colaborativa e multiníveis em múltiplas formas e modalidades de “rescaling” e com base em plataformas inovadoras de “crowdsourcing, crowdfunding e crowdlearning”;
  • Em segundo lugar, um município mais móvel e itinerante na prestação de serviços pessoais, e inovando em matéria de mobilidade, transportes, acessibilidade e economia circular;
  • Em terceiro lugar, um município muito mais sensível para a economia 3C – conhecimento, criação e cultura – isto é, para uma economia dos comuns imateriais;
  • Em quarto lugar, um município menos fiscalista e mais contratualista no plano da engenharia financeira, por exemplo, com um funding muito mais diversificado e imaginativo junto de patrocinadores e grupos de interesse e, também, com uma transparência e “accountability municipal” muito mais rigorosas;
  • Em quinto lugar, um município exemplar em matéria de via verde jovem e via verde sénior, por intermédio de diversas plataformas inteligentes desenhadas para uma maior e melhor acessibilidade destas faixas etárias.

Como facilmente se observa, o município do século XXI deixará de ser, progressivamente, um espaço de fronteiras e stocks para passar a ser um espaço de fluxos, uma espécie de plataforma móvel em permanente remontagem. O exercício da inteligência coletiva territorial para um governo dos comuns será a sua principal motivação e objetivo.

2 Uma nova sabedoria dos limites: o exemplo das comunidades intermunicipais

O país tem vindo a desmantelar a “fronteira distrital” e constituiu muito recentemente 21 comunidades intermunicipais (CIM), a maioria delas coincidente com a nomenclatura NUTS III (sub-regiões das NUTS II). Trata-se de um nível de programação, planeamento e implementação de políticas muito relevante para reconsiderar todo o sistema de desenvolvimento regional, local e rural do país. Recordemos que o país tem praticamente em cada “capital de distrito” um instituto politécnico ou uma universidade cujas áreas de influência e ação abrangem as CIM e as NUTS III e que estas instituições precisam urgentemente de refrescar e renovar a sua missão e de ganhar um suplemento de legitimação num tempo histórico de grande exigência para o país. Acresce que, no mesmo âmbito territorial, o país tem associações empresariais, parques industriais e grupos empresariais que precisam urgentemente de fazer a sua prova de vida, de se recapitalizar e rejuvenescer e demonstrar que não são meros simulacros empresariais, mas verdadeiros projetos empresariais.

A triangulação entre estas três entidades – as comunidades intermunicipais, os institutos politécnicos e universidades e as associações empresariais – poderia dar origem a “um contrato de desenvolvimento territorial” para o nível NUTS III/ CIM” com o objetivo de comprometer as três entidades num projeto de desenvolvimento regional e valorização do interior para o próximo período de programação 2020-2030.

No mesmo contexto, e na sequência dos trabalhos da Comissão Independente sobre Descentralização, o governo central apresentaria uma proposta de reforma da administração regional sob a forma de uma lei-quadro da descentralização político-administrativa, com base na colaboração entre os níveis NUTS II e NUTS III, onde o nível NUTS II seria constituído como a sede apropriada para uma nova racionalidade territorial, em especial, naquilo que são hoje as missões e as funções das comissões de coordenação e desenvolvimento regional e, bem assim, dos serviços regionais em geral, no sentido da formação de um executivo regional com um mandato que poderia ser expresso, por exemplo, através de uma resolução do Conselho de Ministros.

Na mesma proposta, as CIM firmariam um contrato de desenvolvimento territorial e os três principais promotores criariam um ator-rede capaz de dar corpo a uma estrutura de missão dotada de competências executivas no território da CIM/NUTS III. No mesmo contrato ficariam os três promotores principais obrigados à apresentação de uma proposta de reforma da administração pública da CIM que considere não apenas uma nova estrutura de bens públicos para o território-rede em construção como uma institucionalidade adaptada ao projeto de desenvolvimento para a década.

Finalmente, no âmbito desta filosofia de contratos de desenvolvimento para territórios-rede de nível NUTS III/CIM, o governo central proporia, igualmente, um quadro legal e financeiro de incentivos à construção desta administração dedicada e à formação de redes de cooperação e extensão empresariais atendendo ao universo de microempresas que constituem o tecido empresarial do interior do país.

3 Uma nova sabedoria dos limites: o exemplo da cooperação transfronteiriça

A cooperação transfronteiriça é, seguramente, um dos níveis mais interessantes de rescaling e governança territorial. Os tópicos que se seguem foram retirados das várias experiências e ensinamentos de euro-cidades e euro-regiões existentes no quadro da cooperação transfronteiriça ibérica.

  • Em primeiro lugar, depois da delimitação do espaço por via de uma fronteira estadual, trata-se, agora, de a reformular através da sua conversão num recurso cooperativo ao serviço de uma soberania partilhada dos territórios; esta “des-limitação” do espaço transfronteiriço, ao provocar uma libertação da sua energia vital, é uma fonte inesgotável de realidade emergente;
  • Em segundo lugar, nos territórios em rede ainda são os meios a determinar uma parte significativa dos fins da cooperação territorial, mas nos territórios-rede estes já são capazes de gerar uma imagem autoreferencial suficiente e, nesse exercício de reflexão interna, construir uma administração-rede imaginativa, ágil e empreendedora, que faça da cooperação territorial transfronteiriça um novo recomeço e uma nova identidade multiterritorial;
  • Em terceiro lugar, na cooperação transfronteiriça luso-espanhola a questão essencial é, ainda hoje, saber se as jovens organizações são capazes de gerar novos lugares centrais, por cima ou para além das suas entidades constituintes, ou se, pelo contrário, são organizações obedientes, mandatadas para levar a cabo um programa modesto, de baixa intensidade organizacional, com baixos custos de transação, aqueles que os municípios fundadores e os programas europeus de cooperação lhes consentem;
  • Em quarto lugar, e agora que se fala tanto em coesão territorial, é preciso impedir que a cooperação territorial descentralizada não seja apenas um instrumento de mitigação/adaptação/compensação de subterritórios em perda; de facto, uma boa ideia de cooperação descentralizada pode, desde o início, ficar refém de pesados custos de contexto, estando impedida, na prática, de levar a bom termo a “outra parte” do seu programa, isto é, a geração de benefícios de contexto, os novos lugares-centrais e as pequenas redes multilocais;
  • Por último, na era digital e numa sociedade de riscos globais, os bens comuns e coletivos podem ser organizados de modo cooperativo e incluem: a arte da formação das redes locais, o associativismo e as redes de interconhecimento, o debate público sobre bens comuns e lugares centrais, a economia dos ecossistemas, as paisagens e as amenidades, um programa de benchmarking de boas práticas empresariais, a promoção diplomática das relações exteriores da entidade transfronteiriça, etc.

Temos um longo caminho pela frente, mas aqui, em especial, é imperioso que o todo seja maior do que a soma das partes.

4 Uma nova sabedoria dos limites: uma governação multiníveis eficaz

Os exemplos apontados anteriormente mostram que, no século XXI, a tecnologia política do Estado-nação está sujeita a uma pressão permanente se pensarmos, por exemplo, na sociedade digital, nos movimentos de globalização, de integração regional supranacional e descentralização infranacional, no conjunto, aquilo que hoje a literatura designa como processos e procedimentos de governação (ou governança) multiníveis.

A sociedade portuguesa está num impasse no que diz respeito ao modelo de administração do seu território, não obstante toda a retórica política recente acerca da descentralização político-administrativa e a valorização do interior. As razões mais profundas residem no fracasso do modelo de crescimento económico das primeiras duas décadas do século XXI, na grave crise de ajustamento entre 2011 e 2014, na alta carga fiscal que foi criada e no elevado volume de dívida pública gerado pelo programa de ajuda da Troika, já para não falar da crise do setor bancário e do elevado montante de crédito malparado. Por todas estas razões, e apesar dos progressos verificados entre 2015 e 2019, não surpreende que tenha subido o custo de oportunidade da despesa pública e que a dimensão do Estado, medida pelo nível da sua despesa pública, da sua carga fiscal e do seu stock de dívida, seja hoje claramente excessiva face à dimensão da sua economia e da sua sociedade civil.

Agora que temos um novo governo, voltam a pairar algumas sombras no panorama global: mais protecionismo comercial, maior agressividade dos global players, dúvidas acerca da política de condicionalidade das instituições europeias, fragilidade nas instituições multilaterais para levar a efeito uma política regulatória extra-territorial, as hesitações do mercado único europeu em regular os universos virtuais e as redes digitais da sociedade da informação e do conhecimento. Tudo isto no plano global, mas, também, a pressão constante das entidades infranacionais por mais recursos, o criticismo permanente dos movimentos sociais e culturais por autonomia e, mesmo, independentismo e a sua indiferença e indignação face à política partidária mais convencional.

Estamos, pois, no final do ano de 2019, numa nova encruzilhada, com crises governativas em muitos países europeus, o crescimento dos partidos populistas, a crise do Brexit, uma nova Comissão Europeia, um novo presidente do BCE e um novo quadro financeiro plurianual com um orçamento mais reduzido para a década 2020-2030.

Por estas razões, todas as instâncias de governo e administração parecem estar de acordo quanto à imprescindibilidade de uma governação multiníveis eficaz que seja capaz de criar benefícios de contexto para todos os territórios e que, ao mesmo tempo, regule os novos custos de formalidade e transação de tal modo que as exigências processuais e procedimentais supervenientes não se transformem em novas fontes de discriminação e segregação territoriais.

Na verdade, à medida que os mercados globais se contraem e os riscos globais se intensificam alarga-se o perímetro de incerteza e insegurança que rodeia os diversos sistemas democráticos domésticos e os respetivos territórios locais e regionais. Doravante, não há sistemas políticos locais, regionais e transfronteiriços imunes a estas vagas de incerteza e insegurança. Este facto, grave e sério, requer que se experimentem e desenvolvam diferentes abordagens de governação multiníveis, em particular, com novas experiências de cooperação territorial descentralizada no âmbito dos territórios em rede e no quadro de novas modalidades de economia colaborativa e contratual entre os vários parceiros em presença.

É aqui que a tecnologia pode ajudar os territórios. Com efeito, à medida que se aprofunda a sociedade da informação e do conhecimento aprofunda-se, também, a lógica plural de múltiplas plataformas de ação coletiva. As sociedades em rede colaborativa podem ajudar a mitigar a incerteza e insegurança veiculadas pelos mercados e os riscos globais e no seu seio podem funcionar buffer institutions que sejam capazes de prevenir e amortecer o impacto das externalidades negativas e do risco moral, mas, igualmente, de promover os benefícios de contexto e as novas multiterritorialidades emergentes. Neste contexto, uma governação multiníveis eficaz, a cooperação territorial descentralizada, a engenharia social dos territórios-rede, a economia das convenções e dos contratos e as redes sociais colaborativas são formas específicas de buffer institutions. Estas opções e formatos político-institucionais ajudam a adaptar, a mitigar e a reconverter a economia dos territórios locais e regionais que se encontram, cada vez mais, no limite dos seus próprios recursos.

Notas Finais

A relação entre várias escalas espaciais – a escala global, a integração europeia, a integração ibérica, a descentralização infranacional — está cheia de contradições, mas, também, de ensinamentos. Os processos de respacing e rescaling (Keating, 2013) operam em todos os sentidos e de acordo com a tese do duplo movimento. A presente conjuntura é disso um bom, ou mau, exemplo.

De facto, na conjuntura atual, a geografia política europeia dá sinais muito contraditórios. O baixo crescimento económico não ajuda. O multilateralismo está claramente em crise. Estamos em plena fase de refluxo do movimento e a integração nacional e subnacional prevalecem sobre a integração supranacional. O monopólio político tradicional do Estado-nacional está posto em causa. A democracia política na União Europeia oscila entre uma linha mais dura (países de Visegrado) e uma linha mais instável com sérios problemas de governabilidade (países do Sul). Doravante, a política europeia será puro equilíbrio de poderes e a sua governabilidade, constituirá, de facto, a singularidade do modelo europeu que incluirá uma pluralidade crescente de protagonistas tais como: Estados-regiões nacionais, cidades-estado, cidades-região, regiões metropolitanas, regiões transfronteiriças, macrorregiões transnacionais, coletividades infranacionais, territórios-rede, organizações não-governamentais, etc.

Se a tendência se confirmar, a médio prazo o cenário europeu pode tender para a saturação política, isto é, o respacing e o rescaling serão um fator recorrente de perturbação social e política e as fronteiras podem, mesmo, reemergir. Acresce, nesta tendência, alguma duplicidade da tecnologia e dos universos virtuais. De um lado, podem ajudar a recriar os sinais distintivos dos territórios, a sua renovação e reinvenção e, portanto, a cultivar uma sabedoria positiva dos limites. Por outro lado, podem exacerbar o narcisismo dos principais protagonistas do território, por exemplo, ajudando-os a criar bandeiras e posições autonomistas mais radicais. Seja como for, neste percurso longo e difícil, os universos virtuais e a sociedade colaborativa têm um papel primordial a desempenhar, sobretudo no que diz respeito à criação de uma conexão comunicativa mais fértil e fecunda que hoje está nas mãos de muitas burocracias locais, regionais, nacionais e europeias.

Um sério aviso, porém. É preciso evitar, a todo o custo que, na sombra da sociedade europeia, à boleia de uma governação multiníveis que se quer eficaz, eficiente e efetiva, cresça um monstro digital e algorítmico que transforme a sociedade e a cibercultura europeias num labirinto gigantesco  e detestável.