A coisa estalou. Não, não é o Eurogrupo nem o Conselho Europeu. Lá chegaremos. Foi sim uma certa gente que gosta de se dizer progressista e para quem o progressismo é o sucedâneo das pretéritas carbonárias que deixou cair o verniz e foi ao armário buscar os mais variados insultos para adjectivar a decisão de Laura Ferreira, mulher de Passos Coelho, de aparecer num acto público numa fase em que são óbvias as sequelas dos tratamentos de quimioterapia a que está a sujeitar-se.

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Pessoalmente espero nunca ter de me confrontar com o dilema que se coloca a tantas pessoas afectadas pelo cancro e não faço a menor ideia se andaria pelas ruas com ou sem peruca ou se pelo contrário me fechava em casa. Mas não deixa de ser espantoso que, num mundo governado em boa parte por homens carecas, de cabelo rapado (estão a ver a magnífica cabeleira do Varoufakis?) ou que exibem transformações capilares inenarráveis, a imagem de uma mulher sem cabelo cause tal consternação. Nas redes sociais falou-se em falta de pudor!!!

Claro que se Laura Ferreira fosse casada com um político de esquerda, actriz ou activista de uma qualquer causa mediaticamente simpática as frases escolhidas seriam do tipo: “Uma mulher de coragem.” “Uma mulher capaz de enfrentar preconceitos.” “Pela primeira vez em Portugal a mulher de um político assumiu publicamente uma doença que estigmatiza aqueles que dela sofrem”…

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Como não reúne essas características o que se escreveu é impossível de ser aqui transcrito. Claro que há excepções a esse estilo “vómito de mão na anca” que é invariavelmente lançado sobre aqueles que não caem nas graças dos engraçadinhos do regime que não só não têm graça como não distinguem a boçalidade do humor.

Uma dessas excepções é o texto “A tabloidização da doença” de Estrela Serrano. Contudo a jornalista que foi assessora para a Comunicação Social do Presidente da República, Mário Soares, provedora dos leitores do Diário de Notícias, membro do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, fundadora, directora e professora em vários cursos de jornalismo, conduz-nos a uma evidência que sendo óbvia não deixa de ser ainda mais perturbante que os insultos: em Portugal, a apreciação que se faz sobre o trabalho dos jornalistas é determinada não pela qualidade ou pelo rigor desse trabalho mas sim pela simpatia mediática de que goza a pessoa ou a instituição visada nesses trabalhos e também pelo facto de esse trabalho ser divulgado no meio A ou B.

Escreve por exemplo Estrela Serrano sobre a foto de Laura Ferreira: “A fotografia pretende causar choque e emoção, estratégia usada pelos jornais tablóides para atraírem leitores”. “Jornais tablóides”? Não sei se o Expresso será tablóide, se o Público será tablóide ou se a SIC será tablóide, mas assim de repente acodem-me à memória inúmeras imagens aí divulgadas de pessoas doentes, por exemplo com SIDA e também com cancro. E as entrevistas de José Alberto Carvalho a Manuel Forjaz? E os cartazes da Benetton? Esses trabalhos pareceram muito bem a todos porque, escrevia-se, fazendo essas e outras doenças parte da vida havia que normalizá-las, retirá-las da redoma da excepcionalidade, do medo e da vergonha.

O que determina então que neste caso estejamos, segundo Estrela Serrano, perante um caso de tabloidização? O facto de a foto ter sido publicada (também) no Correio da Manhã? A filiação política do marido da pessoa fotografada? Provavelmente ambas as coisas. Sendo que qualquer imagem de Laura Ferreira com ou sem cabelo, com peruca, lenço, sem sobrancelhas, curada, doente… seria e será sempre susceptível de várias leituras políticas tendo em conta que é casada com quem é. O que restava: ficar fechada em casa e, já agora, até quando? Ou, politicamente mais complicado, o seu marido usar o poder que tem para evitar que saíssem fotografias em que fossem evidentes os efeitos da doença em Laura Ferreira?

Estrela Serrano acaba aliás por tocar no cerne da questão quando, na polémica que se estabeleceu entre ela e a jornalista Ana Sá Lopes a propósito da foto de Laura Ferreira, conclui que Ana Sá Lopes “confunde uma crítica ao jornal com uma crítica ao primeiro-ministro. Não sabe que uma imagem é sempre polissémica. Habituada que está à superficialidade, mostrou-se incapaz de ir mais longe.”

As referências à polissemia ficam sempre bem e dão um ar de complexidade ao discurso. Os comuns mortais sabem lá o que é a polissemia! Não vá o diabo tecê-las o melhor é uma pessoa calar-se não venha de lá a rodada de ignorante por causa da polissemia, seja isso o que for, mas que pelos vistos alguns desconhecem!

Na verdade, neste tipo de discussões a polissemia é como a tabloidização: são conceitos para usar quando a esquerda quiser. E é aí que está o busílis da questão. Onde? Na polissemia, claro. Ou dizendo doutra forma mais comum: as imagens dos dirigentes de que o status quo mediático não gosta devem ser o menos polissémicas possível. Unidimensionais até. Não há fotografias com estantes atrás (lêem pouco!, não é?), não há jogging, não há gostos nem desgostos. E se por acaso tal acontece estamos perante a tabloidização, o piroso, o vale tudo, o exibicionismo… Já quando se trata dos líderes certos, a polissemia mostra o lado humano do animal político. Abstenho-me de citar nomes porque são óbvios.

O problema não está portanto na polissemia mas sim na concepção que alguns têm da polissemia como um privilégio da aristocracia desta República tão pouco republicana. Nesta fase do meu texto os membros do Eurogrupo, do Conselho Europeu e respectivos assessores andam numa roda viva. Os tremendistas falam em fim da Europa porque a Grécia pode sair do Euro. É melhor acalmarem os ânimos porque se agora acham que a Europa pode acabar o que dirão se em 2017 Marine le Pen se tornar presidente da França?

Mas voltemos a Portugal onde curiosamente esta polémica estalou no momento em que a polissemia das imagens, como diria Estrela Serrano, nos mostra como líderes dos principais partidos dois homens comuns. Felizmente, acrescento eu. Enquanto decorria a controvérsia em torno da imagem de Laura Ferreira sem cabelo no Correio da Manhã, a TVI fez uma reportagem em que alguns familiares de António Costa deram o seu depoimento. Claro que disseram bem do filho, do pai, do amigo. É a polissemia de que fala Estrela Serrano que não sei o que pensará daqueles testemunhos. Eu gostei.

A naturalidade com que os filhos de António Costa assumem o protagonismo político do pai, tal como a naturalidade com que a mulher de Passos Coelho assume a sua doença são factores de normalidade na vida frequentemente pouco normal dos políticos. E a normalidade faz falta na vida de todos nós e de quem tem poder ainda mais. Há um detalhe impressionante na vida de José Sócrates que ressalta da leitura do livro “Cercado” que o jornalista Fernando Esteves escreveu sobre o antigo primeiro-ministro: nos dias mais graves do seu governo, naquelas noites que rematavam uma sequência dramática de acontecimentos, José Sócrates acabava invariavelmente a jantar acompanhado dos seus assessores. Raras vezes se viu solidão maior na vida de um líder de um partido democrático em Portugal.

O facto de se voltar a uma casa onde existe uma familia real, com problemas reais, não preserva ninguém de fazer o que não deve. De governar mal. De tomar opções desastrosas. Mas dá uma ligação à realidade que num político, seja ele de que quadrante for, nunca é para desprezar. E que o pode preservar de passar do erro ao delírio.