Na semana passada apareci num programa de televisão. Aparecer em programas de televisão acontece-me volta e meia. Houve anos mais intensos, sobretudo entre 2008 e 2010, quando a editora discográfica que criei com amigos, a FlorCaveira, se tornou uma pequena sensação entre a nossa imprensa. Este programa em particular em que apareci já tinha sido gravado em 2022 e já não me lembrava bem de como tinha corrido. Digamos que não foi uma hora televisiva propriamente inspirada: era um grupo demasiado heterogéneo a conversar sobre religião, a edição ficou muito retalhada, o resultado final, no mínimo, disperso.

Recebi algumas mensagens de amigos que, num misto de tímida desilusão e apoio, me levaram a admitir que parte do problema era eu gostar de aparecer. Um deles, o Marcos, dizia mesmo que eu “estava com cara de ‘onde é que fui me meter?’” Não tive como negar porque com frequência isso acontece comigo. Incho de entusiasmo e de auto-moralização e depois esbarro na vida como ela é. Como os mais novos dizem hoje em piadas de internet, facilmente acumulo créditos na dissonância entre “expectativa” e “realidade”. Fui todo pimpão e no final preferia que o programa tivesse sido esquecido nos arquivos da RTP.

Confesso que gosto de aparecer. Suspeito que esta fraqueza não é só minha. Aliás, suspeito não—tenho a certeza. Tenho a certeza de que somos uma série deles, dos que gostam de aparecer. Quem gosta de aparecer não tem necessariamente a consciência disso mas já se comporta dessa maneira. Creio que gostar de aparecer é uma procura pela bênção, ainda que involuntária, pela coisa boa que parece confirmada quando nos vemos aparecidos. Uma das formas mais comuns de aparecer hoje é a que acontece quando nos vemos ao lado das pessoas já consensualmente aparecidas aos olhos de tantos. Temos uma paixão por famosos porque eles vivem aparecidos.

Os famosos vivem aparecidos da mesma maneira que antigamente viviam aparecidos os reis, os heróis, os santos. Talvez os famosos sejam hoje o modo mais acessível dessa arcaica virtude, honra ou reconhecimento. Porque os famosos vivem a aparecer, confirmam que algo especial existe neles ao manterem a extraordinária aparição constante. O famoso convoca para si o reconhecimento que provavelmente não anda tão distante assim do favor que repousava nos que eram agraciados pelos deuses em tempos passados. Mesmo que se porte mal (ou, por vezes, especialmente quando se porta mal!), o famoso não nos desaparece dos olhos.

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Desaparecer é, neste sentido, morrer. Ainda mais num mundo ferreamente guiado por uma tecnologia de imagens, aparecer torna-se o ar que se respira. A internet e as redes sociais são a versão moderna do maior império que nos é dado conhecer porque é hiper-visível. O camponês filma-se a si mesmo, é visto por si mesmo, e, com a bênção divina, poderá até ser visto por muitos outros camponeses como ele. Quando alcança este destaque o camponês delicia-se porque, ao considerar-se visto pelos outros, considera-se, afinal, visto por Deus. Mas o camponês precisa de saber desconfiar dessa visibilidade constante, por abençoada que pareça.

Quanto mais aparecemos, mais vigiados ficamos. O desesperado em aparecer é o mais vigiado porque depende agora dos olhos de todos. Topem a ironia: não chega sermos vistos por Deus, temos de ser vistos por todos. O todos substitui Deus. O Deus em que acredito fez-se pessoa em Jesus e apareceu, é facto. Não podemos tirar da aparição aquilo que nela é bom. Afinal, temos olhos que querem ver. Mas Deus quando apareceu em Jesus praticou também a arte do desaparecimento. Quem mais passou tempo com Jesus sabe do tempo que ele passava a desaparecer.

Muitas pessoas dirão que é óbvio que Deus não existe porque nunca o viram. Quando duvidamos que alguém exista porque não anda muito aparecido apenas denunciamos que a realidade para nós tem o tamanho do óbvio. Mas há muito mundo além do que vemos aqui e agora. Não é por acaso que tantos encontram o sentido da sua existência ao encontrar coisas que estavam escondidas. Inevitavelmente, torno mais esta crónica em patega confissão e esperança: como é que um camponês como eu apura a arte de se esconder em público?