Enquanto aguardamos os desenvolvimentos da crise originada pelo chumbo do Orçamento de Estado para 2022, proponho voltarmos o nosso olhar sobre uma intrigante e idiossincrática feição característica dos nossos dirigentes: a infantilização dos dirigidos. Característica essa, aliás, bem próxima das restantes causas originárias da mesma crise.

Vivemos num país já democraticamente adulto. Mas, apesar disso ou até por causa disso, num país em que metade dos eleitores insistem em não participar. Uns por protesto, outros por indiferença, diversos por ignorância, alguns em consciência, uns quantos por já não deverem estar nos cadernos eleitorais e os demais por razões que só eles saberão explicar. Na prática, pouco importam as razões: o resultado é o mesmo. Metade dos eleitores não vota, aceitando que seja a outra metade a escolher quem comandará, bem ou mal, os destinos de todos, incluindo o dos que não votam.

A verdade é que todos os capazes do exercício das suas capacidades jurídica e eleitoral, incluindo os da metade que não vota, são suficientemente adultos para decidirem estudar, trabalhar ou reformarem-se, para mandarem os filhos à escola, para terem as suas profissões, para conduzirem veículos perigosos, para pagarem impostos e até para receberem subsídios. São, pois, igualmente capazes para decidirem não votar. E, assim, são capazes de entender que essa abstenção do exercício do poder maior de eleger e decidir é, também ela, causadora dos resultados eleitorais e da consequente decisão sobre quem é chamado a dirigir o país. Tratam-se, na realidade, de votos por omissão. Cheios de significado e de consequências, ainda que de leitura difícil.

Essa indiferença da metade que não vota, ao invés de levar os dirigentes a procurarem, perceberem e a rectificarem o que está na sua origem, leva a maior parte deles a assumirem erradamente que o povo eleitoral é, afinal e consequentemente, ainda infantil. Assim, ignorando as razões que levam metade à indiferença, dedica-lhes o mesmíssimo desprezo ignorando-os, sem sequer os tentar cativar. Quanto à metade que vota, tratam-nos como idiotas infantis que se podem convencer com argumentos e posturas ora de mestres-escolas, ora de educadores de infância ora ainda como quem lhes promete o pão de que precisam e o circo por que anseiam. Ou, pior ainda, assumindo eles próprios um papel que raia a oligofrenia, assim convencidos de que os eleitores se identificarão reflexamente com eles. Só assim se podem perceber as atitudes intelectualmente desonestas e irresponsáveis que alguns dos nossos líderes demonstram, num pueril comportamento não muito diferente das infantilidades praticadas nas salas do ensino básico, ou das bravatas hormonalmente descontroladas de jovens do secundário a justificarem a idade do armário.

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E se não serão todos assim, são demais os que são. Senão, vejamos apenas os seguintes exemplos recentes:

GRAVATA (de Estado)

Depois de muito bem ter dito, quando lhe foi conveniente por alturas de uma indiscrição grave de João Soares, que os ministros “nem à mesa do café podem deixar de se lembrar que são membros do Governo”, António Costa resolveu fazer crer que, tal como as flutuações hormonais juvenis, também as ocasiões eleitorais poderão estar na origem de uma completa alteração comportamental. E, tal como os comportamentos pueris e juvenis, fê-lo com a maior das naturalidades e sem achar que isso possa parecer estranho ou sequer questionável. E, assim, com a maior das latas e descontração, passou a insistir na nova ficção de que representa diferentes papéis conforme o momento. Para os que, de entre nós, os idiotas infantis e eleitores, precisassem de uma ajuda a entender qual dos papéis estaria a interpretar, deu-nos a receita para o perceber, através do que chamou o seu truque: se tem gravata é primeiro-ministro, se a não tem é líder do PS. Ainda bem que não elaborou mais, pois, felizmente, ficámos sem perceber como se apresentaria na interpretação dos papéis de pai, marido, filho ou de simples cidadão.

Outros dirigentes políticos, ao invés de procurarem debater com elevação e em adulta postura de oposição as questões que Costa levantava, ora num papel, ora noutro, morderam-lhe o isco e foram atrás do comportamento infantil, assim justificando que de facto só poderia falar de certos temas (como o PRR) se estivesse de gravata e abster-se de brincar aos primeiros-ministros se não estivesse de gravata (em acções de campanha). Como que fazendo de todos nós, uns iguais meninos de recreio, assim infantilizando o discurso e a postura política. Acaba-se com o tema em vez de lhe procurar fragilidades e contrapor!

E, também lá foi o nosso líder da oposição, Dr. Rui Rio, criticando o abuso que uma personagem fazia do papel da outra! Em vez de se concentrar na crítica ao conteúdo do disparate do que dizia o Dr. António Costa, criticou a utilização por este do fato de líder do PS enquanto avocava poderes e decisões do primeiro-ministro! E mantendo o mesmo discurso dos papéis interpretados, mandou às urtigas a discussão da substância dos assuntos abordados. Assim crendo também que todos somos infantis ao ponto de ir atrás da encenação que levaram à boca de cena para gáudio dos infantis eleitores que somos nós, a metade que vota!

BRAVATA 1 (ou a dor de cotovelo que ainda causa Cavaco Silva)

Em 8 de Outubro passado, Cavaco Silva publicou um texto de opinião. Como sempre acontece quando publica o que quer que seja ou dá uma entrevista ou emite qualquer som em público, a esquerda cerra fileiras e desata a protestar numa bravata anti-cavaquista. Mas, até alguns antigos cavaquistas, sentido uma espécie de inefável vergonha alheia induzida pela infantilização corrente, sentem-se na obrigação de concordar “parcialmente”! O maior problema de Cavaco Silva é o facto de a esquerda, ignorando ou recusando o que de bom ele fez, nos recordar através dos seus óculos parciais apenas o que acha que de mau ele tenha feito. E disto resulta a habitual percepção: se vem do que se entende ser a direita ou o centro-direita (bem ou mal, agora pouco interessa), é sempre tudo mau. E, se vier de Cavaco, é pior ainda! Já se vier da esquerda, tudo é aceitável porque certamente é feito em benefício dos amanhãs radiantes, num caminho em que os fins justificam todos os meios! Permito-me recordar que este Cavaco Silva a quem, por exemplo, acusam de ter censurado Saramago (numa abusiva deturpação do episódio ocorrido com Sousa Lara), é o mesmo que levou Portugal a percorrer o caminho da liberdade que só uma imprensa livre consegue palmilhar. Quando os feixes hertzianos, a banda larga ou o papel dos jornais se inundam de acusações de censura a Cavaco, esquecem-se que foi por ele que esses feixes e a tinta das notícias e do comentário livre puderam ser legalmente acedidos pelos privados.

Cavaco Silva não está destituído dos seus direitos de intervenção. De nenhum dos seus direitos. Mais: numa aceitável reminiscência de uma certa legitimidade aristocrato-senatorial, o erário público paga-lhe a manutenção de um escritório. E para quê? Precisamente para intervir com a autoridade e a capacidade que se concede aos antigos Presidentes da República, pois que não tendo nós um Senado onde auscultar a opinião experimentada dos mais velhos e dos conhecedores dos meandros da política e da administração, assim se possa colher da sua voz a opinião temperada pela sua experiência. Falar nas ocasiões de gravidade é, pois, uma obrigação dos antigos líderes e especialmente dos Presidentes da República. Incluindo Cavaco Silva.

Numa atitude infantil e de agressividade juvenil, como quem incentiva uma boa luta no recreio depois de feitas as estratégicas queixinhas, procuraram tantas vozes dirigentes e de comentário levar atrás o povo lerdo e infantil que julgavam ser os eleitores. O mesmo povo que, numa atitude adulta por cinco vezes escolheu Cavaco Silva, quando este os tratou como adultos. Desconfio que, malgré tout, esse mesmo povo não trocaria Cavaco Silva por nenhum dos líderes da nossa esquerda de agora, como não trocou pelo da esquerda de então, apenas com a única excepção de Jorge Sampaio. O mesmo Cavaco Silva que, numa atitude adulta, exigiu em 2015, talvez por sabê-los infantis, que os líderes de esquerda se comprometessem por escrito no apoio ao governo de Portugal. Porque sabia que, sem esses acordos escritos, as lutas tribais dos gangues do pátio da escola impossibilitariam um período de acalmia, ainda que a contragosto. Como agora, sem acordos escritos, se viu!

BRAVATA 2 (ou a insolência de um não eleito)

Ao contrário do que se tem difundido, com uma postura pseudo-pedagógica tentando explicar-nos as eleições legislativas como se fossemos criancinhas, o primeiro-ministro não é eleito. É indigitado pelo Presidente da República tendo em conta os resultados para a Assembleia da República. Nem tão-pouco tem que ter sido eleito deputado.

No dia 7 de Outubro, António Costa, primeiro-ministro, foi insolente e impertinente para o deputado André Coelho Lima, esse sim eleito. Desgastado com o exercício normal em democracia de ser questionado no parlamento, mesmo depois do favor de lhe acabarem com os debates quinzenais, o primeiro-ministro, enfurecido como um jovem galifão afrontado no recreio escolar, retorquiu-lhe com um “o senhor não me conhece de parte nenhuma e não lhe autorizo que faça qualquer juízo moral sobre o meu comportamento”. Ora, Costa lidera um governo. O deputado representa os portugueses que o elegeram. No computo do deve e haver, o deputado presta contas aos eleitores. Costa presta contas aos deputados. É, pois, bom de ver, quem é que pode fazer juízos sobre o comportamento do outro. Incluindo morais. E, no limite, quem pode gritar com quem. E se ninguém devesse empertigar-se daquela forma, caso alguém o tenha que fazer, é-me mais fácil aceitar que seja o deputado que presta contas aos portugueses, que o primeiro-ministro que presta contas aos deputados, incluindo ao deputado André Coelho Lima. Se no formalismo do protocolo de Estado o primeiro-ministro surge à frente do deputado, já na legitimidade democrática e na ordem de fiscalização, o deputado surge à frente do primeiro-ministro. Mas, no comportamento a que venho aludindo, de os dirigentes se portarem de modo infantilizante por acreditarem que a democracia portuguesa e os seus eleitores não são ainda adultos, o senhor primeiro-ministro tratou de assumir o papel de rufia-chefe do grupo em que agora manda, tal qual se passa com os grupelhos e clubes escolares.

E, já agora, quero crer que o senhor deputado conhece bem António Costa. No mínimo, tão bem quanto os portugueses que representa: conhece-o das tramoias internas do PS para afastar Jorge Sampaio e, anos mais tarde, tramar o António José Seguro. Conhece-o das corridas entre burros e Ferraris para encantar Loures, conhece-o do Ministério da Justiça do comparsa Sócrates e da Câmara Municipal de Lisboa, incluindo um meio mandato. Conhece-o da intervenção de comentador televisivo e dos arrufos a que por vezes se dá ares quando é incomodado por perguntas de que não gosta. Sim, senhor Costa, o tal deputado conhece-o e nós também.

Pena foi que o líder da oposição, Rui Rio, se tenha furtado a ensaiar do púlpito parlamentar um discurso de arrependimento do atentado que promoveu aos debates quinzenais, assim contribuindo ora para o enfado ora para a fúria juvenil do menino Costa nas poucas ocasiões a que se sujeita à inconveniente fiscalização parlamentar. Pena tenha sido que não tenha feito frente à bravata de Costa, assim acabando com ela e elevando a política nacional ao seu estado adulto.

BRAVATA 3 (ou o silêncio dos inocentes)

Um dos grandes mistérios escandalosos da natureza é o da confiança que as pobres ovelhas e carneiros depositam no seu tratador, mesmo quando as conduzem ao degolador. Até na hora de ser degolado, o pobre animal acredita na bondade do tratador e, olhando-o nos olhos, não emite qualquer som de protesto.

Eu quis acreditar na seriedade e bondade de Rui Rio. O que não lhe posso aceitar é o silêncio perante a incompetência e abusos do primeiro-ministro e do seu governo. Quase como o silêncio dos cordeiros perante o seu degolador, Rio tudo fez para agradar e seduzir Costa. E Costa tudo fez para acabar a degolar Rio. E Rio, nada disse, exepto a ocasional crítica aos casos concretos que julgava merecerem um mero balido!

Mas, na mesma postura que encontramos nos recreios, se Rui Rio não fazia frente ao rufia Costa a quem se devia opor, já não hesitou nunca em fazer antes crescer a sua fúria nas bravatas lançadas aos seus iguais e companheiros. Não é Paulo Rangel que agora decapita Rui Rio, como não foram os chamados opositores internos que o tentaram fazer no passado. Foi Rui Rio que, depois de uns valentes bramidos dados sempre em bravatas ao próprio rebanho que, afinal, se colocou silenciosamente nas mãos do mestre degolador, António Costa.

É por isto e por estas bravatas dirigidas apenas aos destinatários errados que Rio não voltará a merecer o meu voto. Nem o da maioria dos militantes. É que, ao contrário do que pensam Costa (com ou sem gravata) e Rio, a democracia portuguesa é já adulta e, excepto na permissividade do Carnaval, gostamos pouco que nos façam de crianças e de parvos.