1 A percentagem global de alunos matriculados em estabelecimentos de ensino privado aumentou nos últimos anos. Isto é particularmente visível no ensino secundário. Em 2021/2022, 24,9% dos alunos do secundário frequentaram um estabelecimento de ensino privado — o valor mais elevado desde a década de 1960, ou seja, o mais elevado de sempre em democracia. É particularmente relevante acrescentar que, em 2019/2020, essa percentagem era de 21,5%. Os 3 pontos percentuais que separam estes dois anos lectivos são uma anormalidade — as oscilações anuais tendem a ser pequenas. A pergunta inevitável: o que se passou para justificar este aumento de alunos no ensino privado?

2 No debate público, há duas hipóteses em confronto. Por um lado, seriam os efeitos de falhas nas escolas públicas, que levariam mais famílias a optar pelo ensino privado. Por outro lado, seria uma tendência estatística sem relevância política. Esta segunda opção corresponde à adoptada pelo Ministro da Educação. Em entrevista ao Expresso (30 Junho 2023), à pergunta “entre os alunos, há mais idas para o privado, tendo em conta a situação vivida na escola pública?“, João Costa respondeu simplesmente que “os dados não o indiciam“. Qual das duas hipóteses está certa? Em bom rigor, ambos os lados têm alguma razão. E, para o perceber, há que mergulhar no detalhe dos dados.

3 Facto 1: não há oscilações relevantes na percentagem de alunos na rede pública ou na rede privada quando olhamos para os dados nacionais do ensino secundário geral (os cursos cientifico-humanísticos). Aqui, nos últimos cinco anos, a percentagem de alunos a frequentar escolas privadas manteve-se à volta dos 11% (em 2017/2018 era 11,3%; em 2021/2022 era de 11,2%). Ou seja, no secundário geral, está tudo estabilizado. São estes dados que o Ministro da Educação tem como referência quando rejeita a ideia de que há uma fuga de alunos da rede pública rumo às escolas privadas. E, se olhássemos apenas para estes dados, o Ministro teria razão.

4 Só que, olhando para dados regionais destes cursos gerais do ensino secundário (cientifico-humanísticos), parece haver algo de interessante a acontecer — e que corrobora a suspeita de aumento de alunos no privado especificamente na Área Metropolitana de Lisboa (AML). É esse o facto 2: a frequência de escolas privadas no secundário está a crescer na AML há vários anos. Em 2013/2014, havia 11,8% de alunos matriculados em escolas privadas na AML. Em 2021/22, eram 16,5%. Mesmo que o período de tempo seja de 9 anos, são quase 5 pontos percentuais de diferença e, proporcionalmente (para a dimensão do ensino privado), é muito significativo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

5 Facto 3: a AML está em contraciclo com o resto do país, o que torna o caso ainda mais curioso. No Porto, as oscilações anuais são suaves (no sentido da diminuição do sector privado) e há actualmente estabilização da percentagem (13%) de alunos a frequentar colégios. Na região Centro, a queda na frequência do ensino secundário privado é enorme: de 2015/2016 (12,8%) para 2021/2022 (6,7%) reduziu-se para cerca de metade (menos 6 pontos percentuais), havendo aqui uma relação directa com o fim de dezenas de contratos de associação, que forçaram o encerramento de vários colégios (matando a oferta privada em vários concelhos). Nas restantes regiões, o peso do sector privado é (e sempre foi) tão residual que não interfere no balanço. Ora, na perspectiva dos indicadores nacionais, o balanço é este: os aumentos na AML estão a ser compensados pelas diminuições na região Centro (e um pouco na região Norte), razão pela qual os níveis nacionais ficaram mais ou menos na mesma. Ora, essa estabilidade é mera aparência e, pelos vistos, esconde movimentações muito relevantes a nível regional.

6 Dúvida: o que justifica a tendência de crescimento do sector privado na AML? Tendo em conta que essa tendência começou em 2013/2014, não se pode associar directamente às políticas específicas dos governos PS, muito menos a efeitos de instabilidade mais recente (covid-19 ou greves). Assim, parece-me que uma resposta possível deverá estar alicerçada na combinação de três fenómenos: uma desconfiança crescente sobre as escolas públicas, o crescimento demográfico na AML (com desafios educativos e linguísticos impostos pela imigração) e esta ser uma região do país com maior poder de compra e diversidade de oferta de escolas privadas. Ou seja, na soma destes três fenómenos, o que distingue Lisboa do resto do país é isto: há muitas opções educativas por onde escolher e mais capacidade económica para pagar as mensalidades de colégios, pelo que não surpreende que haja também cada vez mais famílias a matricular os filhos no sector privado.

7 Volto à pergunta inicial do artigo: se não é no ensino secundário geral, como se explica então que, nos indicadores globais, haja um aumento súbito da frequência de estabelecimentos privados no ensino secundário, entre 2019/2020 e 2021/2022? A resposta localiza-se nos alunos matriculados em Cursos de Aprendizagem — uma oferta de secundário que atribui certificação escolar e profissional, com vista à inserção no mercado de trabalho. Em 2019/2020, a oferta de Cursos de Aprendizagem era 100% pública. Em 2021/2022, essa oferta passou a ser 60% do sector privado (correspondente a 10 mil alunos). Ou seja, nos valores globais vistos no ponto 1 deste artigo, aqueles 3 pontos percentuais têm aqui explicação: a fatia do ensino privado está a aumentar à boleia do ritmo imposto pelos Cursos de Aprendizagem — é o facto 4.

8 A soma destes factos diz-nos várias coisas. Fundamentalmente, diz-nos que é exagerado alegar que existe um movimento nacional de fuga de alunos das escolas públicas, mas também que é pertinente questionarmo-nos sobre se tal estará a acontecer especificamente na Área Metropolitana de Lisboa. De resto, a ideia de que tal se poderia dever a uma reacção das famílias a episódios recentes (pandemia ou greves/ instabilidade) não transparece nos dados. Mas também não transparece nada que suporte a convicção de que tudo corre bem, quando na Grande Lisboa a rede pública está a perder espaço continuamente há quase 10 anos. A raiz da explicação parece-me mais profunda e relacionada com o contexto: onde exista variedade de oferta educativa, maior pressão demográfica e um nível de poder económico acima da média nacional, também haverá aumento da frequência do ensino privado. Talvez isto soe lógico e não surpreenda ninguém. Mas, a ser assim, este será um indicador social e político muito forte acerca de uma nova tendência de elitização da educação: nos contextos mais urbanos e pressionados demograficamente, quem tem meios para matricular os filhos no privado cada vez mais tende a fazê-lo.