A dolorosa experiência vivida com a troika ensinou-nos a valorizar a disciplina financeira no Estado, a valorizar o longo prazo financeiro. Aprendemos que os défices de hoje se pagam amanhã e o preço pode ser, como foi, muito elevado. Mas aquela “austeridade” não nos ensinou que os governos podem fazer truques. E assim fomos enganados e levados a acreditar, como acreditámos, que há milagres, que é possível dar mais dinheiro a todos sem sacrificar nada. A troika não nos ensinou que as vistas curtas populistas na governação também acontecem nas políticas públicas. Aquilo que hoje enfrentamos na habitação, mas também na educação, na saúde e na justiça é a consequência de se ter governado, desde 2015, para o dia seguinte enquanto se distribuía benesses por todos.

Pouco mais do que zero, foi aquilo que se fez pela oferta de habitação para a classe média desde 2015. Muito mais do que zero foi o que se fez para manter elevada a procura de habitação pelos muito ricos e muito pobres, todos eles imigrantes. Neste momento a classe média que procura a sua primeira casa está entre a espada e a parede. De um lado estão os imigrantes ricos conhecidos como não residentes que fogem ao fisco do seu país e do outro os imigrantes pobres, uns e outros a pressionarem os preços das casas de forma diferente. Finalmente António Costa anunciou que vai acabar com este regime. “Não faz sentido continuar a manter uma taxação para os residentes não habituais”, afirmou na entrevista à TVI. Vale mais tarde do que nunca, embora tenhamos de esperar para ver em que termos isso vai acontecer. Até porque os únicos que precisam de ser protegidos são os imigrantes pobres.

Os imigrantes ricos ou, mais na moda, os nómadas digitais, a quem o governo português tem oferecido um bom desconto no IRS, que não nos dá a nós simples portugueses, invadem os bairros, ou lugares à volta de Lisboa mais icónicos e, claro, fazem disparar os preços. Os poucos construtores que existem e sobreviveram à crise de 2011 estão obviamente orientados para satisfazer a procura desta classe de estrangeiros com dinheiro. E as casas em segunda mão que chegam ao mercado, ou as de arrendamento, procuram obviamente este novo “el dorado”.

São os designados residentes não habituais que pagam uma taxa máxima de 20% no IRS se estiverem a trabalhar e 10% se forem pensionistas. Um trabalho publicado pelo Expresso mostra que, num rendimento bruto anual de cem mil euros, um casal residente não habitual paga menos cerca de 7,5 mil euros de impostos do que um nacional. E no caso dos pensionistas a diferença chega aos 18 mil euros.

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Vêm trabalhar ou apenas viver em Portugal pagando muito menos impostos do que nós ao mesmo tempo que aumentam a procura (e os preços) das casas. Os condomínios com piscina e ginásio crescem à volta de Lisboa, as recuperações animam-se no centro onde se pode encontrar um T0 de 50 metros quadrados a mais de 500 mil euros. Tal como os senhorios desses bairros esperam fazer bom dinheiro, expulsando arrendatários antigos para darem lugar aos estrangeiros endinheirados. Se esta medida fazia sentido quando precisávamos que entrasse dinheiro em Portugal e tínhamos de animar o mercado imobiliário, hoje é um absurdo e, finalmente, António Costa parece ter percebido isso.

O que é um mistério, neste caso de saldos de IRS para não residentes, tem sido o silêncio absoluto de todos os partidos, incluindo obviamente o do poder. As características dos partidos levar-nos-ia a esperar que pelo menos o PCP e o Bloco de Esquerda falassem no assunto, até porque o tema dos benefícios fiscais está em geral na sua agenda. Mas todos os partidos, mesmo à direita, tinham razões para criticar o Governo. Porque é que não o fazem, não se percebe.

Porque é que o Governo, com a cumplicidade de todos os partidos, teimou em manter durante tanto tempo estas borlas fiscais de pessoas que roubam impostos ao seu país de origem e pagam menos impostos do que os locais em Portugal ao mesmo tempo que lhes criam problemas pelo menos na habitação? Qual o valor que acrescentam? É difícil identificar para não se dizer que é zero ou insuficiente para compensar os problemas que criam e o comportamento socialmente irresponsável que têm.

Claro que o argumento do Governo tem sido – agora já não é – o mesmo que aplicava aos vistos gold: que não faz diferença nenhuma, que acabar com eles não resolvia nada. Não é verdade. A redução dessa procura por parte dos não residentes alivia a pressão sobre as rendas e o preço das casas e reduz o incentivo implícito que as empresas de construção têm para se concentrarem na gama alta do mercado. A ministra da Habitação deu prioridade a medidas que afectam o alojamento local, pretendendo com isso que essas casas entrem no mercado do arrendamento. Não teria mais efeito se tivesse logo na altura acabado com o estatuto de não residentes? E se o argumento do efeito económico não é suficiente, o que o Governo permitiu de borla fiscal é no mínimo imoral, não respeitando as regras mínimas de responsabilidade social com que o novo capitalismo se quer identificar.

Do outro lado estão os mais pobres dos pobres, os imigrantes que vêm para Portugal para fugirem da pobreza e ajudarem as suas famílias. Sem dinheiro, juntam-se em grupos e alugam casas onde se aloja um número de pessoas muito superior ao recomendável, como se viu no incêndio na Mouraria com vítimas mortais. Nuns casos são os empregadores que lhes arranjam casa onde os colocam em grupo, noutros são eles que as encontram e vão dividindo as contas. Obviamente que os senhorios, os donos das casas, multiplicam os preços das rendas permitindo que uma casa onde devia estar uma família de quatro pessoas possam estar dez. E assim se contribui também para a subida das rendas, noutros sítios, menos charmosos.

No caso dos imigrantes que vêm procurar um modo de vida, e não fugir aos impostos, autarquias e Governo deviam fazer tudo para lhes arranjar habitação. Infelizmente aquilo que vemos é uma demissão dos autarcas em relação aos problemas reais dos seus municípios, preferindo gastar o dinheiro, que com a subida das casas é bastante, em festas e festanças. No caso dos imigrantes que fogem aos impostos do seu país, o Governo devia obviamente acabar com o estatuto de não residentes. Daria um contributo para se reduzir a procura de casas e assim baixar o preço.

Em todo o caso, o que se está a passar na habitação é a imagem mais ilustrativa da ausência de governação em Portugal desde 2015. O que se fez foi distribuir o que havia, com a vista colocada no curto prazo, na conquista eleitoral fácil. Os governantes assistiram alegremente ao aumento do turismo, à chegada dos não residentes endinheirados, praticantes da fuga ao fisco permitida pelo Governo, e à entrada dos imigrantes pobres em busca de uma vida melhor e perante tudo isto acharam que nada ia acontecer, que ia haver casas para todos. Centrados nas contas certas, esqueceram-se que governar é conseguir ter, ao mesmo tempo, contas certas e políticas que resolvam os problemas dos cidadãos. Estamos a pagar, também na habitação, o preço de vistas curtas e populistas na governação. Porque a esperança é a última a morrer, o fim das benesses fiscais para não residentes pode significar o princípio de uma governação a olhar mais para o longo prazo, para os problemas reais dos cidadãos.