Os povos transbordam de ambição, como tigres olhando a presa, ávidos de agarrar qualquer oportunidade entre as ruínas da velha ordem.

É com estas palavras, bem diferentes das judiciosas observações analíticas do seu histórico conterrâneo Sun Tsu, que o Professor Zeng Yonguian resume o estado de espírito dos Estados e dos povos protagonistas da nova ordem mundial.

Zeng é um politólogo chinês com um currículo distinto, um PhD em Princeton e actividade docente em Harvard, Nottingham e Singapura. É considerado um dos maiores especialistas em política chinesa, sendo autor de uma tese sobre o Partido Comunista Chinês, que ali surge como uma espécie de Príncipe maquiavélico colectivo. Actualmente é Professor na Universidade Chinesa de Hong Kong – Shenzhen, e tem insistido em que a China de Pequim é o grande vencedor do conflito da Ucrânia, que veio hipotecar, num braço de ferro sem fim à vista, as democracias da NATO e a Rússia de Putin.

O que aconteceu na madrugada de Sábado 7 de Outubro, com o ataque-surpresa de milhares de militantes do Hamas a Israel a partir da Faixa de Gaza, com a morte de centenas de judeus e não-judeus – incluindo mulheres e crianças – surpreendeu e indignou o mundo euroamericano. As vítimas foram barbaramente executadas, numa acção que aboliu qualquer distinção entre civis e militares, e que parece enquadrar-se bem no cenário descrito pelo professor chinês – com os povos e bandos políticos agindo como tigres vorazes e destruidores, numa nova selva geopolítica.

Não vale a pena alongar-me em considerações sobre o horror destes ataques, sem respeito algum pelo Direito da Guerra (a introdução de regras em conflitos de vida e de morte, que foi uma das mais notáveis conquistas da Humanidade); nem procurar uma salomónica sentença sobre quem tem razão ou razões. Vou antes tentar olhar friamente e com a objectividade possível a situação e os seus protagonistas.

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Os judeus, único povo milenar, sobrevivente a dois mil anos de Diáspora e perseguições (a última, no século passado, quase os exterminou na Europa), ganharam a sua estatalidade a partir da fundação do Estado de Israel, um Estado na Palestina, rodeado de povos e governos hostis.

A origem da tragédia

Os arranjos na região fizeram-se com o fim do mundo eurocêntrico e a transição para a independência e a estatalidade de vastas regiões da África, da Ásia e do Médio Oriente, que antes tinham estado ocupadas pelos impérios britânico, francês e turco.

Assim aconteceu a partir da declaração de Arthur Balfour, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Londres, que, em Novembro de 1917, confirmava o desejo do governo inglês de garantir aos judeus dispersos por todo o mundo um “Lar Nacional”.

A declaração constava de uma carta dirigida a Lionel Rothschild, 2º Barão Rothschild, para que este a transmitisse à Federação Sionista Mundial. O Reino Unido e a França estavam no Médio Oriente em guerra com o Império Otomano, aliado da Alemanha kaiseriana, e as potências aliadas queriam mobilizar apoios e contar com os judeus. Assim, ao mesmo tempo que agentes dos Serviços Secretos britânicos, como o singular E.T. Lawrence, prometiam aos árabes o poder no futuro, cooptavam-se também os judeus sionistas. Misérias e glórias imperiais…

Mas o facto é que, depois da terrível experiência do Holocausto, os judeus sobreviventes e fundadores de Israel mudaram radicalmente o estilo e o modo de vida: aos comerciantes pacíficos, massacrados quase em silêncio de geração em geração pelos seus vizinhos espanhóis, alemães, russos e turcos quando as coisas corriam mal, sucederam jovens operacionais que foram ganhando as muitas guerras de Israel desde a independência. A filosofia pacifista e humanitária, associada tradicionalmente ao povo judeu, foi substituída por duros códigos patrióticos, preparatórios do enfrentamento como uma situação de risco permanente. E isto sem diferença para os partidos de Israel, primeiro os Trabalhistas, hoje os identitários conservadores de Benjamin Netanyahu e do Likud.

Os israelitas sabem que vivem rodeados de inimigos e que não podem deixar de estar alerta. Têm também a consciência da hostilidade que despertam nos vizinhos e sabem que têm de ganhar todas as guerras e de continuar preparados para elas.

O que, desta vez, foi surpreendente foi o fracasso dos Serviço de Informação de Telavive em detectar uma operação de tão grande escala; a falha de prever e seguir um movimento que envolveu uma grande quantidade de pessoas e meios do lado atacante. Como foi possível que tivesse passado despercebido?

Mas passou, pondo em causa todo um movimento de pacificação e normalização regional que se consumava com a cimeira saudita-iraniana, auspiciada pelos chineses; cimeira que tinha sido precedida pelos Acordos de Abraão, pressionados pela Administração Trump.

É por demais sabido que Israel possui a bomba atómica e não hesitará em retaliar se vir a sua segurança ameaçada. Só que agora, ao contrário do que aconteceu no Yom Kippur, em 1973, o ataque não foi perpetrado por exércitos de Estados independentes, mas por bandos, milícias, terroristas que, à vista desarmada, parecem pessoas com pouco ou nada a perder.

Será que o excesso de confiança nos meios tecnológicos marginalizou a tradicional Humint israelita, considerada excepcional no controlo dos palestinianos? O permanente levantamento dos agentes da Mossad que, sistematicamente, procuram no território de Gaza gente com dificuldades económicas ou com segredos obscuros, vulneráveis a uma abordagem pelos Serviços Secretos israelitas, parece desta vez ter falhado. E é curioso que falhe nos 50 anos da guerra do Yom Kippur, outra guerra em que Israel ficou também muito mal, perante o ataque coligado dos Egípcios e dos Sírios.

Segredos e surpresas

Há 50 anos, dias antes da ofensiva árabe, o rei Hussein da Jordânia fizera uma secreta visita-relâmpago a Israel e avisara a primeira-ministra Golda Meir do risco e iminência do ataque. O aviso de Hussein não foi levado muito a sério e Israel correu sérios riscos de derrota, a que escapou graças também a uma maciça ajuda militar norte-americana. Desta vez foi pior, em número de vítimas e em escalada de terror, apesar do ataque de 73 vir de dois exércitos regulares, o Egípcio e o Sírio. Desta vez são muitas centenas de irregulares palestinos desesperados.

Israel, neutralizado pela surpresa, vai agora querer retaliar de forma dura para, por uma vez, dissuadir todo e qualquer vizinho de semelhantes veleidades. A ofensiva do Hamas veio também pôr em causa o que vinha sendo construindo para a reconciliação – como o diálogo Irão-Arábia Saudita e os Acordos de Abraão. Também Riad vai ter dificuldade em prosseguir os seus contactos, abertos ou discretos, com Israel.

Esta ofensiva pode ter sido perpetrada contra a linha de conciliação, precisamente para a neutralizar: serão os governantes de Teerão, os mesmos que se comprometeram a começar a reconciliação com os Sauditas, suspeitos? Ou terá sido uma iniciativa do Hamas, aproveitando a crise política interna de Israel, com o governo de Netanyahu sob pressão, e a situação internacional, com os Estados Unidos empenhados na ajuda à Ucrânia? Nisto estariam a seguir exemplos recentes, como a ofensiva do Azerbaijão no Nagorno-Karabakh, com o êxodo da população arménia.

Os “tigres raivosos” parecem, assim, estar à solta.  Perante a previsível radicalização, os homens de boa vontade e sentido de justiça serão certamente marginalizados, relegados para as bancadas, para assistirem a um massacre cruzado em que inocentes não-combatentes, de um lado e de outro, vão sendo sacrificados.

Realisticamente, a solução de dividir o território palestiniano em dois Estados poderia ter sido a ideal; mesmo para Israel, na medida em que é preferível ter um inimigo com estatalidade, isto é, como “nação politicamente organizada”, do que grupos armados que enquadram populações marginalizadas. Era essa a solução inicial de partilha aprovada pelas Nações Unidas em 1947, antes da primeira guerra israelo-árabe, de 1948-1949. Guerra que Israel venceu.

Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, Israel alargou o seu controlo à faixa de Gaza, à margem ocidental do Jordão e Jerusalém Oriental. Em 1964 tinha sido criada a OLP (Organização de Libertação da Palestina) de Yasser Arafat; veio depois a primeira Intifada, a revolta dos palestinianos sob governo israelita. Seguiram-se as negociações secretas em Oslo, com vista a uma paz sedimentada na solução dos “dois Estados”, mas o obreiro da aproximação, pelo lado de Israel – o primeiro ministro Yitzhak Rabin – foi assassinado por um extremista judeu.

Com a morte de Rabin, o processo de entendimento sofreu um golpe decisivo e, a partir daí, os extremistas dos dois lados ganharam a condução da escalada: os Acordos de Camp David foram postos em causa, os líderes da aproximação, como o presidente egípcio Anwar Sadat, foram eliminados e a retórica e a radicalização no terreno auto-alimentaram-se. A Autoridade Palestiniana foi, na Faixa de Gaza, marginalizada pelo Hamas.

Não é fácil, nestas circunstâncias, emitir juízos eticamente correctos, quando os tigres esfaimados tomam conta do processo; a selvajaria dos militantes do Hamas sobre os civis israelitas leva o governo de Telavive – que se deixou surpreender pela ofensiva – a mostrar-se igualmente feroz na reacção. E não vai ser fácil agir com conta, peso e medida sobre um território relativamente exíguo, onde se apertam mais de dois milhões de pessoas que vão ser bombardeadas e a quem foi já cortada a água, a electricidade e o pão de cada dia.

A minha convicção foi sempre a de que a solução dois Estados era a que melhor acautelava os interesses dos contendores, dos governos e dos povos. A estatalidade e a responsabilidade inerente às instituições do Estado acabam por ser as que melhor garantem amigos e inimigos. Foi esta solução que, no Cairo, os ministros dos Negócios Estrangeiros da Liga Árabe vieram propor outra vez a Israel, numa tentativa de parar a escalada da confrontação, que levará fatalmente a novas carnificinas e a novos horrores, ironicamente, nas terras onde Deus se revelou aos homens, por onde Jesus andou e onde se fixaram as religiões do Livro.