A desvantagem de escrever no dia em que sai a crónica do Rui Ramos é que, se o tema coincide, o essencial ficou esgotado. Resta-me, que remédio, o acessório. Esta semana, a crónica do Rui chama-se, e versa, “Políticos e comentadores”. Como “prefiro”, no sentido científico do termo, os que saem do primeiro ofício para o segundo, despacho num parágrafo os que saem do segundo ofício para o primeiro. Segue-se o parágrafo.

Comentadores que “sobem” – estranha ideia – a políticos deixam uma impressão de que tudo o que diziam na carreira anterior não era necessariamente o que pensavam e sim o que favorecia as hipóteses de “promoção” à carreira com que no fundo sonhavam. Em abundantes casos, que não se esgotam no cidadão que teoricamente desempenha as funções de presidente da República, não é apenas uma impressão. O único mérito é que o prof. Marcelo dispensou intermediários e foi logo directamente aos eleitores. O normal é ver “comentadores” que passam anos a bajular determinado partido ou amo até que o partido ou o amo os convoque para um cargo qualquer. E há “comentadores” que nunca chegam a ser convocados, mesmo que troquem de partido e de amo, e por muito que carreguem na vassalagem a todos. Cada um expõe-se às figuras que quer. O facto é que, excepto para a Autoridade Tributária, o jornalismo de opinião não devia confundir-se com prestação de serviços. Quando se confunde, os serviçais não prestam.

Os políticos que se mudam para o comentário, ou que acumulam, são outra história. Há uma dúzia de anos, a Sábado ouviu a estupefacção de vários correspondentes da imprensa estrangeira em Portugal acerca do fenómeno. O fenómeno, pelo menos na dimensão em causa e fora do Terceiro Mundo, é quase um exclusivo nacional, à semelhança dos caretos de Podence e dos bolinhos de bacalhau. E com tendência para agravamento: comparada com 2024, o panorama em 2012 era um sossego. Suponho que, mediante a habituação às excentricidades locais, e sobretudo após o recente jantar com o presumível chefe de Estado, os correspondentes já não se espantem com nada do que acontece por cá. Mas o que acontece é espantoso.

Por estes dias, decorre o lançamento de um novo canal televisivo. “O Now”, reza a publicidade do tal canal, “aposta numa informação diferenciada para os públicos mais qualificados”.  Caramba! Por instantes, uma pessoa obviamente qualificada sente-se a fervilhar de expectativa com a prometida diferenciação. Só por instantes. Depois vem a realidade e os trunfos que se anunciam não são programas sérios de reportagem, a produção de documentários que exigem vagar e dinheiro, o escrutínio incansável e corajoso do poder. Não, senhor. Os trunfos são as contratações de António Costa, Rui Rio, Fernando Medina, Cotrim Figueiredo e dois deputados do PSD, além de um cardeal ligado aos futebóis e a bastonária dos advogados. Isto por enquanto, que em nome da pluralidade haverá tempo para arregimentar actuais ou antigos dirigentes do BE, do PCP, do Chega, do Livre e quiçá do PAN. Juntas ou separadas, tais sumidades vão comentar a actualidade. Ou melhor: vão fingir que a comentam.

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Na verdade, os drs. Costa, Rio, Medina e companhia ilimitada vão defender os respectivos partidos, ou mais exactamente as facções partidárias que representam ou lideram, ou, ainda com maior exactidão, os seus interesses pessoais. Em suma, não vão fazer comentário: vão fazer política. A coisa é tão absurda quanto um espaço de “true crime” cujos apresentadores, em vez de analisarem assaltos e homicídios, cometessem os crimes em directo. Porém, em Portugal o absurdo transformou-se na norma.

A principal consequência desta mistela não é a depreciação da política, um meio que por definição não tem demasiado por onde encolher em matéria de dignidade. Os raros políticos com relevo e vergonha na cara (lembro-me de Cavaco Silva, Pedro Passos Coelho, António José Seguro), mantiveram-na e foram às suas vidas. Os restantes não ganharam vergonha de repente, e andam de estúdio em estúdio a preencher os “conteúdos” que não estão preenchidos com jovens “comentadores” mortinhos por imitar-lhes o percurso.

O problema nem sequer é este simulacro “informativo” – diferenciado, não se esqueçam – ridicularizar a informação e o próprio jornalismo, o qual, apesar de inúmeros antecedentes questionáveis, nem sempre se reduzia a tempos de antena pessimamente disfarçados por troca com subsídios que nem se disfarçam.

Para explicitar o problema é inevitável citar o Rui Ramos: “O político que continua a fazer política quando é comentador degrada a confiança na comunicação social, onde as direcções editoriais deixam que sirva ao público, como “análise”, o que é intriga partidária.” Acrescento: e o público, ou a qualificadíssima maioria, engole a intriga sem hesitações e, em situações terminais, com gosto. Esse é que é o problema.