Agora que tudo e todos, justificadamente, centram as suas atenções diárias e ao minuto no gravíssimo conflito existente entre a Rússia e a Ucrânia. Agora que todos os olhares estão focados nas graves consequências que emanam e emanarão, por muito tempo, desse conflito. Agora que a guerra às portas da Europa é uma realidade inegável, que nos invade a cada instante, será talvez importante deixar que o nosso olhar se inquiete, nem que seja através de um mero esgar fugidio, com algo que se tem vindo a avolumar perigosamente num dos territórios mais ricos do mundo, onde existem as segundas maiores reservas de petróleo, bem como as sextas maiores reservas de gás do mundo: a Arábia Saudita.

Com cerca de 33 milhões de habitantes, dos quais cerca de um terço são estrangeiros, a Arábia Saudita é uma monarquia absoluta teocrática, que tem o Alcorão como constituição e cuja lei se circunstancia na Lei Islâmica. Trata-se do maior mercado do Médio Oriente, sendo a única economia árabe presente no G20.

Apesar de o rei da Arábia Saudita, desde 2015, ser Salman bin Abdul Aziz Al-Saud a verdade é que, supostamente por padecer de Alzheimer, tem sido o Príncipe Herdeiro Mohamed Bin Salman, conhecido através da sigla MBS, que tem vindo efectivamente a gerir a fortuna da família real saudita e até mesmo os destinos do país, isto apesar de, oficialmente, ter unicamente a si adstritos os cargos de vice-primeiro ministro e ministro da Defesa.

MBS tem vindo a trilhar um percurso que merece toda atenção possível por parte do mundo ocidental, tal é a sua dimensão e a sua condição marcadamente paradoxal.

Desse percurso faz parte o seu comprometimento numa campanha interna de anti-corrupção, bem como um plano estratégico que tem como objectivo primordial libertar a Arábia Saudita da sua exclusiva dependência económica petrolífera. Responsável pela disseminação de uma ideia recente e fulgurante de aparente modernização do seu país e consequente aproximação a alguns valores ocidentais, MBS criou as condições necessárias para que na Arábia Saudita as mulheres possam agora ter acesso a carta de condução ou assistir a jogos de futebol na bancada dos estádios, permitindo ainda que, após 40 anos, o cinema deixasse de estar banido e interdito à população.

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A par destes laivos de pretensa modernidade, aos quais parece querer associar o seu reino, nos últimos anos MBS tudo tem feito para excentricamente se mostrar ao mundo. Assim, para além de se ter tornado recentemente proprietário do clube de futebol britânico Newcastle, atribui-se a ele, a título de exemplo, a compra, por um valor considerado obsceno, do quadro Salvatore Mundi de Leonardo Da Vinci, bem como de propriedades europeias icónicas, como é o caso do Castelo de Luís XIV, em França.

A compra sistemática de avultados bens tem vindo a abrir-lhe portas, permitindo-lhe acesso facilitado a círculos de influência e poder na Europa e no mundo.

Mas até que ponto a comunidade internacional deverá continuar a mostrar a sua disponibilidade para continuar a ser convenientemente enganada, aceitando simplesmente os milhões que MBS tão facilmente disponibiliza?

Até que ponto a quantidade absurda de dinheiro de MBS poderá continuar a obscurecer as constantes acusações de que tem sido alvo, especialmente no que se refere às mais grotescas violações de direitos humanos?

Até que ponto a reconhecida irascibilidade e tirania associada a este homem, bem como a sua intolerância face a um mundo de valores assentes na liberdade e na democracia, pode ser obnubilada, unicamente em prol de benefícios económicos que dele podem advir?

No final de 2014 o mundo assistiu à cruel especificidade inerente à condenação do repórter Raif Badawi, designadamente 10 anos de prisão e 50 chibatadas por semana, durante 20 semanas. Apesar da condenação ter gerado uma onda de indignação mundial, a flagelação foi efectivada e repetida, sem apelo nem agravo, numa clara demonstração de força e poder do regime Saudita contra vozes dissidentes, neste caso em particular por o condenado ter defendido o fim da influência da religião na vida pública do país.

Em 2017 MBS sequestrou, no Hotel Ritz Carlton, em Riade, 500 príncipes e altos funcionários do seu país. A chamada elite da Arábia Saudita foi então aprisionada, diz-se que torturada, sendo que muitos deles acabaram por perder as suas gigantescas fortunas a favor da família real saudita. Catalogada como uma operação anti-corrupção por MBS, a verdade é que este acto insano foi o derradeiro passo para a consolidação do poder do Príncipe Herdeiro.

Em 2018, através de um relatório da CIA, divulgado na imprensa americana, a sua implicação na orquestração da morte do jornalista Jamal Khashoggi, conhecido crítico da família real saudita, no consulado da Arábia Saudita em Istambul, foi confirmada. O caso atingiu dimensão global e gerou amplas tensões diplomáticas, mas no fundo não trouxe novidades no que se refere ao modo de estar e actuar de MBS.

A par de tudo isto, não se pode ignorar a interferência do Príncipe Herdeiro Saudita na guerra civil do Iémen, com consequentes acusações de gravidade retumbante no que se refere a assassinatos de civis, ataques a refugiados, bem como intercepção na ajuda humanitária prestada à população. Tal como é inegável a sua responsabilidade na ruptura de relações com o Quatar, que deu origem a uma ciberguerra sem precedentes entre os dois países; bem como o episódio do sequestro do primeiro-ministro do Líbano; bem como a tensão crescente com a Turquia; bem como o incidente diplomático com o Canadá, com direito a expulsão do embaixador em Riade e consequente corte nas relações comerciais entre os dois países.

Na Arábia Saudita a democracia não existe. Não existe separação de poderes ou regras basilares próprias de um qualquer Estado de direito. O país é governado por um monarca com poder absoluto. E se no passado as várias facções dos muitos príncipes do país asseguravam um estranho, mas importante, equilíbrio no exercício do poder, a verdade é que a ascenção de MBS, levada a efeito através da purga ocorrida no Ritz Carlton, em Riade, em 2017, tudo mudou.

País de corrupção tremenda, sequestros, assassinatos e relações tensas com a igreja ultra-conservadora, é também o país que possui o vigésimo oitavo exército mais bem equipado do planeta, facilmente explicado pelos 8% do PIB orientados exclusivamente para em gastos militares.

Enquanto no Ocidente é usual que se diabolizem, reiterada e consecutivamente, líderes democráticos transitórios, os líderes como MBS, ou de calibre similar, mantêm-se quase que incólumes ao escrutínio massificado da opinião pública. Basta ver, por exemplo, que ainda no passado dia 12 de Março, numa clara afronta contra a dignidade e integridade humana, MBS ordenou a execução de 81 prisioneiros, condenados a pena de morte por vários crimes, sem que daí tenha resultado uma condenação, com efeitos práticos, por parte do resto da Humanidade à sua pessoa e ao regime Saudita.

O facto de MBS, ser um homem jovem, que efectivamente poderá perpetuar-se no poder por várias décadas e assim ter um impacto tremendo no mundo e nas nossas vidas, desde logo através da nossa dependência do petróleo, cujos preços a Arábia Saudita faz subir e descer ao sabor da sua conveniência e interesses, mas também devido à forma como disseminou investimentos pelo mundo tendo hoje em dia posições que lhe permitem afectar multidimensionalmente muitos territórios e muitas pessoas, devia preocupar-nos sobeja e ininterruptamente.