Os artigos sobre escravatura e temas afins que tenho publicado nos jornais foram objecto de crítica e arrumados, juntamente com escritos e opiniões de outros historiadores, numa prateleira a que o crítico chamou “extrema-direita”. O autor da dita arrumação foi o também historiador Luís Trindade, num texto que publicou no Esquerda.net, um site do Bloco de Esquerda. Ainda que a afixação de rótulos (negacionista, nacionalista, etc.) naqueles que critica pareça ser a principal preocupação de Luís Trindade, seria um erro fixar-me nisso porque é atrás desses rótulos que muitas pessoas da área política do Bloco costumam esconder a sua ignorância nos assuntos em debate — quanto mais rótulos, maior a ignorância. Aliás, tentam, com os rótulos, arrastar os interlocutores para discussões laterais que, depois, as dispensarão de fundamentar as afirmações que fizeram.

Por essa mesma razão também não irei corrigir as várias falsificações que Luís Trindade fez do meu pensamento nem cairei na tentação de refutar as acusações que me dirigiu, algumas delas absurdas. Até porque julgo que o que interessa aos leitores não são as armadilhas argumentativas das pessoas de extrema-esquerda, mas os acontecimentos históricos e a sua interpretação. Disso não há qualquer vestígio no texto de Luís Trindade, que não está verdadeiramente interessado na escravatura nem nos Descobrimentos, apenas em descobrir, nos que debatem esses temas, pensamentos “nacionalistas” e agentes da “extrema-direita”. Há, todavia, acusações de que sou alvo que nos permitem sair do plano da ficção delirante e partir para o concreto. Uma dessas acusações é a de que eu seria “ingénuo”, por vezes “quase obtuso”, porque não conseguiria ver, no iluminismo, “as fundações mentais da expansão do imperialismo e capitalismo europeus à escala global”. Para mim, segundo Luís Trindade, a forma como o Ocidente lidou com a questão da escravatura no século XIX resumir-se-ia tão só a “um conjunto de europeus e americanos com um sentimento muito agudo de arrependimento e de injustiça, que, desconhecendo o papel muito ativo no horrível negócio por parte das autoridades africanas, viam os africanos e o próprio continente como vítimas passivas e inocentes da cobiça europeia, pelo que cabia ao Ocidente, custasse o que custasse, pôr fim a tais horrores.”

Passando por cima dos adjectivos “ingénuo” e “obtuso” que correspondem à típica forma das pessoas de extrema-esquerda debaterem ideias, estigmatizando ou insultando os seus interlocutores, passando também por cima do facto de Luís Trindade ter amputado a minha explicação do abolicionismo, retirando dela tudo o que respeita à crença em ganhos materiais, crença que há décadas venho referindo e explicando, importa perguntar o seguinte: será ingenuidade pensar que a luta contra o tráfico de escravos e a escravidão foi propulsionada pela ideologia, pela política e, também, por um desejo de fazer bem? A gente de esquerda sabe — os factos são inegáveis — que os ocidentais foram os primeiros a pôr fim ao tráfico de escravos e à escravidão, mas apressa-se a dizer que o fizeram apenas por razões de ordem prática (interesse económico, medo das revoltas escravas, etc.) e não por razões de benevolência e de humanidade. Ou seja, sempre por receio ou mesquinho interesse, sempre por ganância ou calculismo, nunca por “bondade do Ocidente” (a expressão jocosa é do historiador Francisco Bethencourt, numa das mais recentes defesas dessa interpretação errada; aceitemos a expressão, para encurtar razões).

Se perguntarmos aos que desvalorizam esse humanitarismo como é que sabem que não havia “bondade do Ocidente” ou que, havendo-a, não pode ter sido um elemento importante na decisão abolicionista, respondem-nos que o sabem porque as abolições nos países ocidentais demoraram muito tempo. Se houvesse a tal “bondade”, dizem, as coisas teriam sido muito mais rápidas. Será razoável pensar desse modo? E terão as abolições demorado assim tanto tempo, atendendo ao que estava em causa e às forças e interesses que se opunham a uma reforma tão radical e que nunca fora tentada em nenhuma sociedade escravista? Convém lembrar que estamos a falar daquilo a que os ingleses dessa época chamaram, muito adequadamente, The Great Experiment. Na Grã-Bretanha foram precisos 46 anos para se chegar da fundação da Society for Effecting the Abolition of the Slave Trade à libertação dos escravos nas colónias. Na Dinamarca foram 56 anos de debates e resistências; em França 60; em Portugal 65; etc. Em nenhum país ocidental as abolições foram instantâneas, nem sequer na colónia de Saint-Domingue, futuro Haiti, que em vez da via reformista seguiu a via revolucionária e onde, desde a fundação da Société des Amis des Noirs à independência da colónia e definitiva abolição da escravidão se passaram 16 anos. Mais rápido, sem dúvida, mas a que custo? Um país profundamente endividado, o desaparecimento total dos antigos plantadores, uma história de horror e uma experiência que nunca mais se repetiu — felizmente, acrescento eu.

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Talvez seja por terem nos olhos e no coração esse exemplo do Haiti que Francisco Bethencourt e outros desvalorizadores do humanitarismo abolicionista consideram que as abolições ocidentais demoraram muito tempo. Mas qual é o termo de comparação não-revolucionário? Em que outro continente se encontra uma vontade abolicionista rápida a operar reformas deste tipo ou, sequer, tão morosas quanto as europeias e americanas? Em que período ou países houve reformas dessas antes das reformas ocidentais? Em nenhum. As primeiras reformas abolicionistas foram no Ocidente. Houve africanos envolvidos nessas reformas? Sim, houve, sobretudo os ex-escravos que lutaram nos exércitos e que, por essa via, adquiriram a liberdade. Mas essas pessoas estavam todas elas no Ocidente, em estreito contacto com a cultura ocidental. Quantos africanos na África subsariana ou na Ásia defenderam, nessa época, a abolição da escravatura e aplicaram medidas nesse sentido? Nenhum, que se saiba. Foi o Ocidente que mais depressa ou mais devagar as adoptou, antes de qualquer outra cultura o ter feito. Se não havia “bondade” actuante no Ocidente que dizer, então, da “bondade” que haveria no resto do mundo?

Vivemos numa época em que os radicais do politicamente correcto mais facilmente elogiam e homenageiam a memória de um negro brutal e criminoso como, por exemplo, Dessalines — o ex-escravo que se tornou imperador do Haiti e mandou massacrar todos os brancos —, do que evocam, sequer, o nome de um abolicionista branco ou reconhecem os seus esforços e os seus méritos. Cultiva-se nas nossas universidades uma forma virulenta de brancofobia e isso impede muitos dos que por lá passam de ver e de aceitar as evidências. No que toca à história da abolição, impede-os de perceber que não faz sentido estabelecer uma dicotomia entre interesse material, por um lado, e “bondade”, por outro, subalternizando ou ignorando a dita “bondade”. Na verdade — e essa era a grande novidade do abolicionismo e a razão pela qual ele triunfou —, as coisas estavam amalgamadas na visão de muita gente daquela época. Os abolicionistas acreditavam que pôr fim à escravatura seria não apenas justo, cristão, filosófico, mas, também, vantajoso do ponto de vista económico. Acreditavam que o trabalhador assalariado seria mais produtivo que o trabalhador escravo e conseguiram transmitir essa sua convicção a outros, nomeadamente a muitos políticos da época, ao mesmo tempo que os persuadiam de que uma nação que se queria civilizada não mais poderia viver e pactuar com os horrores da escravatura.

A afirmação do abolicionismo foi a afirmação de uma crença e de uma causa — então significativamente chamada “a causa da humanidade”. A vitória contra os que queriam a manutenção do anterior estado de coisas ficou a dever-se não a um qualquer determinismo económico nem ao medo de revoltas escravas, mas sim ao esforço dos que adoptaram o ideário abolicionista e lutaram arduamente por essa causa. A sua foi a vitória da ideologia contra a avidez do ganho imediato. E isso, que muitos académicos engagés de agora fazem gala em não ver, era evidentíssimo para quem viveu os acontecimentos. Como assinalou o embaixador português em Londres em 1792, ou seja, nos primórdios do movimento que levaria ao fim da escravatura, o partido dos abolicionistas crescia com uma rapidez extraordinária porque a “benevolência universal” se sobrepunha ao interesse material. Esse triunfo da benevolência sobre o interesse, que já era observável nessa altura, continuou a verificar-se nas décadas seguintes mesmo quando se constatou que os resultados económicos da abolição não eram os prometidos pelos visionários, longe disso. Em suma, aboliu-se o estado de escravidão por razões de humanidade, porque se julgava que o trabalhador livre seria mais produtivo do que o escravo e porque manter a escravidão era indecoroso, aos olhos das outras nações civilizadas, e constituía um profundo abalo na honra nacional. Era tudo isso que constituía a “bondade do Ocidente”.

Francisco Bethencourt e Luís Trindade não veem essa “bondade”. Interessado apenas no debate sobre os acontecimentos, e não nos próprios acontecimentos nem na determinação da verdade histórica, Trindade considera, até, uma “ingenuidade” acreditar na “bondade do Ocidente”. Está no seu direito, claro; cada qual é livre de tapar os olhos à sua vontade. Porém, se um dia se interessar realmente pela questão da abolição da escravatura e quiser aprofundar os seus conhecimentos nessa área, será importante ler sobre o assunto, não basta referir títulos de livros que nem se folhearam. Convirá também nunca esquecer que a História não se deduz de nenhuma teoria, por muito correcta que possa ser; conhece-se através de documentos. Estou convencido de que se conhecesse os documentos Luís Trindade não duvidaria da “bondade do Ocidente”, mas se calhar é “ingenuidade” minha.