Uma família em isolamento, dia 23

Este ano não vamos à terra na Páscoa. Não me lembro da última vez em que isto aconteceu, mas foi há muito tempo. Tirando talvez o ano em que a filha mais nova nasceu e resolvemos ficar por Lisboa, para não fazermos trezentos quilómetros para cima e outros para baixo com a tralha de uma recém-nascida (e a própria da recém-nascida, ainda sem algumas vacinas), a verdade é que há muito tempo que o nosso ritual pascal inclui três dias na raia beirã.

Tal como centenas de milhar de portugueses, os meus pais vieram para a cidade há mais de sessenta anos. Eles vieram da Beira Baixa e foi nos arredores da capital que procuraram casa, trabalho, um sítio para criar um família e condições para dar aos filhos mais do que tinham tido. Eu e as minhas irmãs nascemos em Lisboa e, para nós, a terra era aquela aldeia lá longe, onde havia avós, férias com primos e tios, procissões na Páscoa e no Verão, a Cândida Branca Flor e o Trio Odemira e o Clemente no arraial que também tinha quermesse. Nós íamos para a terra, a aldeia da minha mãe. Os meus pais regressavam à Beira.

Este ano não vamos à terra na Páscoa, mas vai ser só um interregno, porque o ritual mantém-se há mais de cinco décadas. Regressamos sempre. Todos os anos. A família cresceu, temos de dormir em sofás e divãs, uns no chão, outros na aldeia do meu pai. Dividimo-nos pelas camas que há e as que não há arranjamos maneira de encaixar, ou nesta casa ou nas da família à volta. Já não cabemos todos, mas o coração estica tanto e não há felicidade maior da minha mãe e do meu pai do que ver-nos ao molho no quintal, sentados à mesa (agora já são duas), às vezes a darmos o nosso lugar aos que ainda não almoçaram ou jantaram.

Já não é o meu pai que leva o carro, a idade pesa e poupamos-lhe as costas e os olhos. Entre filhos e netos, revezamo-nos nas viagens: na Páscoa vou eu levá-los, no verão vais tu buscá-los. Mas ainda é o meu pai a arrumar no porta-bagagens toda a tralha de que precisam e não precisam em todos os buraquinhos disponíveis onde possa encaixar um sapato ou até uma laranja (“não vamos cá deixá-la, que se estraga”). E, tal como acontecia com o velho Ford Escort azul bebé nas viagens de seis horas num tempo em que o país não estava forrado com autoestradas (abençoada A23 que tanto jeito dás, só falta voltares a ser SCUT para isto ser perfeito), a bagageira vai cheia e quem vai atrás leva coisas ao colo e entre as pernas.

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Este ano não vamos à terra na Páscoa e a minha mãe está triste. As minhas filhas também e já perguntam quando é que voltam ao quintal. Nós também e sentimos falta das laranjeiras em flor. Mas é à minha mãe que isto está a custar mais. Precisa da terra para ver como está a casa dela, precisa da terra para ir ao cemitério ver as campas dos pais e dos irmãos. Precisa da terra para se sentir novamente em casa. Ela sabe que não pode, está apaziguada com isso, mas está a custar-lhe.

Eu percebo-a bem. Durante muitos anos, eu não percebia bem como é muitos amigos meus não tinham uma terra para onde ir. Onde viviam os avós. Onde os pais tinham crescido antes de rumarem aos arredores de Lisboa. Para mim, filho de beirões, amigo de filhos de beirões e de filhos de alentejanos e de filhos de transmontamos, Lisboa era a capital e Amadora era o sítio onde se vivia e onde crescíamos. Para mim toda a gente era de outro sítio qualquer, ao qual regressava no verão e na Páscoa.

Este ano não vamos à terra na Páscoa porque as medidas de contenção para minimizar os efeitos da pandemia do coronavírus, estipuladas ao abrigo do estado de emergência em que o país se encontra, impedem a circulação de pessoas fora dos concelhos de residência durante cinco dias. Não que isso fosse necessário para nós. Não nos passava pela cabeça correr riscos inúteis e fazer viagens para locais para os quais podemos transportar inadvertidamente o vírus ou mesmo trazê-lo de lá. E a idade dos meus pais também descarta qualquer tipo de ideia peregrina desse género.

Para muitos portugueses, porém, a medida é essencial. A vigilância cerrada que vai ser exercida durante cinco dias pretende evitar estragar o que parece que conquistámos até aqui. A partir de amanhã e até segunda-feira, PSP e GNR vão intensificar as ações de controle rodoviário para ninguém ir passar a Páscoa a terra – a menos que trabalhem lá.

Significa isto que, se conhecerem alguém que se prepara para se fazer ao caminho hoje, quarta-feira, antecipando os controles que vão apertar a partir de amanhã, digam-lhe para não o fazer. Que esteja quieto. Quese deixe de ideias. Que não vá colocar em perigo pessoas de quem gosta. Que, a menos que haja um motivo do outro mundo para o fazer, é um ato de extraordinário egoísmo e irresponsabilidade para consigo e com os outros, essa ideia de se fazer à estrada. Deixem-se estar quietos. A ideia é salvar vidas, não colocá-las em risco.

Este ano não vamos à terra na Páscoaporque não se pode viajar e as cerimónias pascais estão canceladas e as celebrações eucarísticas que impliquem concentração de fiéis estão proibidas. Não vamos à via sacra, não veremos o Senhor Morto, não vamos passear na sexta-feira santa, não vamos juntar-nos na igreja nos últimos minutos do sábado de aleluia para cantar alvíssaras pelas ruas da aldeia à meia-noite do domingo de ressurreição.

Este ano não vamos para Idanha-a-Nova. Nem nós nem as trinta mil pessoas da diáspora e das cidades, os turistas e os curiosos, que todas as páscoas se juntam aos nove mil habitantes do concelho, segundo dados da autarquia local.

Regressamos no próximo ano. Até podemos lá ir no verão, mas só quando voltarmos à próxima Páscoa é que vamos matar as saudades que vão começar a nascer a partir de amanhã.

É por uma boa causa. A melhor das causas. Fique em casa.

 

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