Uma família em isolamento, dia 27
Abro o Facebook ou o Instagram e vejo fotografias de cães que nunca foram tão passeados como agora. E imagens de gatos que andam espantados por haver tantos humanos com quem têm de dividir o espaço deles por estes dias – o espaço dos gatos, entenda-se, que são eles os verdadeiros donos da casa, as pessoas só lá estão porque os felinos deixam. E dou por mim a pensar: como é que vai ser quando isto tudo acabar. Porque ainda pode demorar uns tempos, mas isto vai acabar. E depois? Vamos ter milhões de cães com síndrome de privação e com problemas de saúde por essa alteração de comportamentos? E milhões de gatos aliviados mas também doentes porque a mudança de rotina dá-lhes cabo da saúde?
A pergunta aterrou-me na cabeça há dias quando a minha mulher me disse: “Tenho saudades da Olívia”. Estas semanas que temos vivido, em que temos de passar mais tempo em casa, estes tempos em que convivemos muito mais entre quatro paredes trouxeram-lhe a memória da nossa cadela. E bateu uma saudade.
Era o animal mais dócil do mundo. Não era apenas carência de mimo, medo do abandono ou saudades nossas pelo tempo que passava sozinha. Era mesmo doce. Companhia amiga. Tinha sido encontrada, muito magra e assustada, a vaguear pela zona do Estoril. Uma prima minha viu-a durante vários dias no percurso habitual para o trabalho e começou a levar-lhe comida e água. Nas primeiras vezes não lhes tocou. Depois começou a aproximar-se a medo e a comer um pouco – sempre com a humana ao longe – e ao fim de uns tempos já aceitava uma festa. Devagarinho, nada de gestos bruscos, que a vida já lhe devia ter sido dura.
A Adélia, é esse o nome da minha prima, sempre gostou de animais e são vários os “patudos” que já albergou ao longo da vida. E estava empenhada em ajudar também esta. No mínimo, levá-la a um veterinário da zona, confirmar se estava tudo bem, tentar saber se alguém se teria queixado da fuga de um animal com estas características. Porte médio, cauda pena googlarem, é o Tim, o cão dos Cinco, da Edid Blyton).
Mas para isso era preciso apanhá-la primeiro.
A minha prima não sabia sequer onde o bicho dormia, mas os ossos a notarem-se debaixo do pelo sujo e encardido sugeriam que aquele animal não estava a ter uma vida fácil. E a única rotina que lhe conhecia era a das manhãs por aquelas ruas, onde já se tinha habituado à água e ração daquela simpática humana. Terão passado alguns dias, não sei quantos – a história é antiga, remonta a 2004 –, até que aconteceu. A Adélia conseguiu agarrá-la, embrulhá-la num cobertor, colocá-la no carro e arrancar.
E a partir daí a vida da Olívia nunca mais foi a mesma.
Foi assim batizada pelo estado esquálido em que se encontrava. Não havia registo de animal assim por ali, ninguém sabia de quem era, não havia papéis afixados nos veterinários. Era uma cadela subnutrida, aparentemente jovem, cuja dentição indiciava ter cerca de quatro anos. E que a partir de agora tinha dona. E tinha nome. Seria “Olívia” tal como a namorada do Popeye Olívia Palito, porque estava quase tão magra como o desenho animado. Doze a catorze quilos deveria ser o peso ideal dela para o porte que tinha. Pesava sete quando foi à primeira consulta. Ainda menos, certamente, quando começou a receber comida daquela estranha que a tinha visto a vaguear.
Capítulo dois: a Adélia tinha vários cães em casa na altura e pediu à amiga Sara, outra “pets-friend” que não pode ver bichos abandonados sem correr em auxílio deles, se podia albergar a Olívia durante uns tempos. E aquele animal dócil, agradecido por já não viver na rua, agradecido por ser bem tratado, sempre assustado com barulhos – o que nos levou a suspeitar sempre de que teria sido maltratada – e que nunca soubemos se foi abandonada ou se fugiu de alguém que talvez lhe batesse mais do que a afagasse, passou a viver numa casa com sete gatos. E correu tudo às mil maravilhas.
E um dia cheguei eu. Aquele primo afastado da Adélia, que lhe tinha dito meses antes que gostava de ter um cão mas não queria comprar, queria adotar. “Queres uma cadela muito doce, que talvez tenha sido abandonada?”
“Claro que quero!” E a minha vida mudou também. Eu, que nunca tinha tido um cão e sempre quisera.
Estivemos sozinhos durante uns anos, depois mudámos os dois de casa, fizemos parte de uma família que a tratou muito bem, a vida deu voltas, voltámos a estar só os dois, depois mudámos de casa mais três vezes. E nas duas últimas já havia outra família. Que entretanto cresceu. Quando comecei a namorar com a minha mulher, a Sofia já tinha a dose dela de animais durante a infância e adolescência. Lembrava-se bem deles a roer chinelos e cabos e almofadas e estojos de lápis. Lembrava-se dos xixis e cocós em casa até se habituarem a ir à rua. Lembrava-se dos pelos acumulados nos cantos. Lembrava-se do perdigueiro Sharik, do pastor alemão Lorde, do Tim cuja raça não se recorda, da gata siamesa Titinha, do hamster Sandokan. Lembrava-se da dor de os perder. E não queria passar por tudo isso outra vez. Mas a Olívia fazia parte da minha bagagem. Vinha comigo. E já não era cachorra e por isso não roía nada. E era tão doce. Tão afável. Tão grata…
Nasceu a Carolina e depois nasceu a Madalena. E a Olívia continuou a ser a mesma cadela assustada com barulhos, mas sempre carente de atenção, de mimo, de festas. A cadela que parecia um gato, uma sombra que nos seguia para todo o lado, que dormia no nosso quarto quando éramos dois e passou a dormir no quarto das miúdas quando passámos a quatro. Foram anos bons. Muitos anos.
A Olívia morreu no ano passado. Em casa. Rins, fígado, coração. Velhice. Foram 18 anos. Foi a minha cadela, foi a nossa cadela. E há dias a Sofia saiu-se com aquela: “Tenho saudades da Olívia”.
Ontem à noite, com a Olívia na cabeça, telefonei a uma veterinária para saber como estão a ser estes tempos de convivência profunda entre humanos e animais durante o confinamento? Há mais problemas de saúde? Há menos? De que se queixam uns e outros?
“Não temos tido dermatites nos cães, mas temos tido mais infeções urinárias nos gatos”, resumiu Sónia Miranda. A proprietária do Hospital Veterinário do Atlântico, em Mafra, explicou-me que as alterações de rotina nos felinos refletem-se muitas vezes em problemas do aparelho urinário, que resultam em infeções ou inflamações da bexiga, por exemplo. “É uma das primeiras perguntas que fazemos ao dono, quando nos aparece com um gato com sintomas destes: ‘houve alterações na rotina?’” Os cães, por outro lado, têm mais companhia e andam felizes da vida. Logo, tem havido uma considerável diminuição de doenças por ansiedade de separação – menos dermatites, por exemplo.
Com as clínicas veterinárias a funcionar apenas para situações de urgência ou procedimentos clínicos que não podem ser adiados (à semelhança do que se passa com a esmagadora maioria dos serviços de saúde pelo país), muitos donos de animais são aconselhados a não se deslocar a estes locais, para garantir assim a distância social e evitar riscos para si e para os profissionais a trabalhar. Consultas de rotina, castrações, vacinas que podem ser administradas mais tarde e outros procedimentos de profilaxia têm sido atirados para melhores tempos.
Mas, claro, há dúvidas que não se podem adiar e os donos não sabem se este ou aquele sintoma que identificaram no animal é urgente ou não. Vai daí, seja por telefone ou mensagem (muitos veterinários têm apelado a este tipo de atendimento, para garantir a segurança sem deixar de prestar apoio), têm crescido consideravelmente os pedidos de esclarecimento sobre tudo o que parece suspeito – mesmo que não o seja.
Faz sentido: se estamos mais tempo em casa, reparamos mais em coisas que, noutras circunstâncias, só prestaríamos atenção ao final do dia ou no fim-de-semana. E, fruto dos tempos que vivemos, estamos mais preocupados com tudo o que tenha a ver com saúde. A nossa ou a dos nossos bichos. E às tantas somatizamos nos animais os nossos próprios receios. Vai daí, há muitos nódulos que já deviam estar lá há meses mas só agora foram identificado, muitos dentes que já tinham tártaro há uma série de tempo mas só agora merecerem atenção e muita cera acumulada nos ouvidos que só agora foi limpa. “Há muitos problemas que não são problemas graves, mas as pessoas estão preocupadas e passam mais tempo com os animais, por isso reparam mais nisso”, disse Sónia Miranda.
“Mas há um fenómeno curioso, muito relacionado também com o isolamento”, acrescentou a profissional, que é também membro da direção da Ordem dos Médicos Veterinários. “As pessoas estão muito mais atentas aos sinais de envelhecimentos dos seus animais. E têm aumentado as consultas de geriatria.”
Lembro-me bem do veterinário da Olívia a dizer isso mesmo. Que os sinais que eu ia encontrando na minha cadela, como a perda de audição, desorientação, défice cognitivo ou dificuldade em subir as escadas para um segundo andar, eram lentos, progrediam devagar. Até ao dia em que reparámos neles e o médico nos ajudou a juntar tudo, quando disse: “O seu animal de estimação está a envelhecer”.
O aproximar da fase terminal de um cão ou um gato está a deixar muita gente ansiosa. Porque agora precisam deles mais do que nunca e porque agora, que não podem sair nem receber visitas, estão mais atentos aos bichos do que alguma vez estiveram. Eles fazem parte da nossa família e para quem está em casa a ver os vizinhos pela janela e a manter o contacto com filhos e netos através do telefone ou redes sociais, os animais de estimação fazem hoje mais companhia do que alguma vez fizeram. Os laços estreitam-se ainda mais. E o aproximar da morte de um bicho é sentido ainda com mais peso.
Agora já somos dois com saudades da Olívia cá por casa. As miúdas falam dela de vez em quando, mas agarram-se às memórias felizes e não parecem sofrer. Por enquanto a minha mulher continua sem vontade de ter outro cão. Mas eu acho que ainda a consigo convencer.
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