Os portugueses consideram que o poder político vive longe da população: inquiridos sobre o tema, avaliam que a influência política real da população é muito baixa (28%) quando idealmente deveria ser elevada (84%), e consideram ainda que se tem dado insuficiente atenção aos problemas de pessoas como eles (73%). Os portugueses tendem a não confiar nos partidos políticos (79%), no governo (64%) ou no parlamento (59%). Os portugueses gostariam de mudar o sistema eleitoral, de modo a votar mais em candidatos e menos em partidos — 76% concordam totalmente ou tendem a concordar com esta proposta. Os portugueses gostariam que o Estado central tivesse menos poder e que as autarquias tivessem mais poder — 71% concordam totalmente ou em parte com esta proposta. Os portugueses estão pouco ou nada satisfeitos com o combate à corrupção (87%), com a qualidade de vida em geral (79%), com a falta de oportunidades de ascensão social (76%), com o desempenho do SNS (74%) ou da rede pública de educação (68%).

Numa frase: os portugueses estão zangados, desiludidos e frustrados com o funcionamento da democracia em Portugal. Os dados acima foram todos retirados da mais recente sondagem ICS-ISCTE e traduzem esse descontentamento e essa descrença, actualmente em níveis muito elevados. Repare-se na dimensão: os índices de insatisfação rondam sucessivamente valores superiores a dois terços ou três quartos dos inquiridos, com apenas leves flutuações face a ideologias ou posicionamentos políticos. Não é uma questão partidária, é um problema de fundo e está a envenenar a vida política.

As comemorações do 10 de Junho teriam sido um palco oportuno para o regime reconhecer a legitimidade das inquietações dos portugueses e colocar esse descontentamento na fila da frente do debate público e da acção política. Parafraseando uma canção dos Xutos & Pontapés, se isto não chega temos o mundo ao contrário. E, como pelos vistos não chegou, suspeita-se que Portugal está cada vez mais do avesso.

Não chegou porque o Presidente da República, que até começou bem o seu discurso, não resistiu a construir mais um episódio do seu braço-de-ferro de pequena política com o Primeiro-Ministro, referindo-se a “ramos mortos” para indirectamente insistir na demissão do ministro João Galamba. Não chegou porque o Primeiro-Ministro, pressionado pelos protestos dos sindicatos de professores e sentindo-se ofendido com um cartaz de mau gosto, conseguiu virar toda a atenção mediática para uma caricatura (em vez de lidar com esclarecimentos ainda devidos sobre a actuação do SIS ou as falhas da sua governação). Não chegou porque os professores, que se queixam do desprestígio da sua profissão, se comportaram como vândalos a invadir uma cerimónia solene. Ninguém saiu bem na fotografia.

À conta destas oportunidades perdidas, Portugal vai-se dividindo em dois países — o da bolha mediática que se entretém com a pequena política, e o dos cidadãos que se sentem à margem das grandes decisões sobre o seu futuro. Eis uma atmosfera tóxica para uma república democrática, que se afunda numa dicotomia de “nós” e “eles” tão propícia ao escalar do populismo, do discurso de ódio, da fragmentação do tecido social. A 10 meses de assinalarmos 50 anos do 25 de Abril de 74, já era tempo de o regime aprender a lidar com as suas próprias falhas, para não dar força aos inimigos da democracia.

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