O aquecimento do planeta por efeito da concentração de carbono na atmosfera é um facto. Conhece-se o mecanismo pelo qual o gás retém a energia do Sol dentro da atmosfera, sabe-se que a maioria da energia seria perdida para o espaço se não existisse essa camada, por comparação com as outras atmosferas de outros planetas. Sabe-se, ainda, que o aumento abrupto do carbono atmosférico coincide com a queima de carvão e petróleo e que a quantidade normalmente emitida por fenómenos naturais, como vulcões, seria no máximo uma percentagem muito pequena, na ordem dos 2%, das variações do carbono atmosférico observadas. Finalmente, tudo coincide com os modelos teóricos, onde o conjunto dos pressupostos é matematicamente equivalente ao verificado pelos dados. Dificilmente existirá uma descoberta científica tão discutida, tão provada e tão unanimemente aceite entre os cientistas.

As consequências, essas sim, poderão ser discutidas, mas sabe-se que muito pouco de bom se pode prever. O mundo em que os nossos filhos e netos viverão será muito diferente, não porque usarão Uber em vez de táxis, mas porque as produções agrícolas estarão em risco, a produção de comida poderá sofrer uma enorme quebra e, com isso, a probabilidade de novos e mais intensos conflitos vai crescer. Não existe um único cenário em que a coisas melhorem, até porque foi “neste” planeta que “esta” espécie evoluiu. Este problema é daqueles que reduz todos os outros problemas a questiúnculas de programa vespertino.

O conhecimento sempre foi mais difícil de se impor que a ignorância. Porque esta só exige a dúvida, enquanto aquele exige a ausência dela. O facto de hoje estar um frio de rachar serve logo para lançar a dúvida nas nossas cabeças sobre se o planeta está a aquecer ou não, embora a nossa dúvida se situe num estágio de conhecimento completamente diferente daquele que os cientistas estão a transmitir. O conhecimento dos cientistas vem de um agregado de dados, recolhidos de forma sistemática e de um conjunto de modelos teóricos onde as conclusões empíricas são testadas contra a lógica do conhecimento já estabelecido e provado. As nossas dúvidas decorrem da chamada esperteza saloia, de mandar bocas porque sim, quando não temos a menor hipótese de entender aquilo que os cientistas nos estão a dizer. Numa imagem mais atual, há um Donald J. Trump em cada um de nós que precisamos de libertar de quando em vez.

Mas por cada nova dúvida que é lançada, cada nova demonstração de ignorância, significa um empurrão político da solução mais para a frente. A democracia, infelizmente, tem destas coisas. É muito mais fácil convencer o eleitor corroborando as suas crenças, por mais palermas que sejam, que convencê-lo daquilo que está certo, educando-o. Os políticos sabem disso e é daí que deriva o sucesso de broncos como Trump. Em vez de tratar as pessoas como ignorantes que são e educá-las no caminho correto, resolvem valorizar-lhes essa ignorância independentemente das consequências de longo prazo que isso possa trazer. E a forma como os povos lidam com os políticos neste aspeto acaba por determinar o seu próprio futuro no longo prazo.

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O caso dentro do perímetro português é a sobrevivência do Estado português e, obviamente, da sua independência. Esse é o nosso pequeno “aquecimento global” que se passa neste retângulo periférico. Sabemos desde há muito que a trajetória financeira da república vai conduzir à sua morte financeira e, com ela, o fim de nove séculos de independência. Não é crível que os nossos filhos, educados e competentes, se sacrifiquem para salvar a independência da terra que os pais mandaram ao charco, até porque esta dificilmente será a casa onde ganharão o pão. Todos sabemos que, sem termos moeda própria, as contas são tão fáceis de fazer como são as finanças de um município.

A verdade é que o país poderia substituir com vantagem o Estado que tem. Para nenhuma escola do país haverá diferença entre ter o Ministério da Educação em Lisboa ou em Helsínquia, para nenhum hospital haverá problema em depender administrativamente de Haia, a constituição de nenhum país da Europa é particularmente repulsiva quando comparada com a nossa e, certamente, deve ser muito mais clara nos princípios básicos que a nós nos fazem tanta confusão. Em rigor, desde que o professor, o médico e o polícia estejam próximos de nós e a trabalhar, precisamos de um poder em Lisboa para quê? Para gerir o sistema de justiça? Por isso, a pressão financeira está sobre o nível de poder mais dispensável que temos hoje. Os municípios, os governos regionais e Bruxelas fazem sentido e têm o seu papel. Agora, a República?

E apesar de sabermos que hoje a gestão das finanças do Estado em nada difere de um município europeu e que a forma como a fazemos leva o Estado numa trajetória de destruição, somos todos os dias bombardeados com professores de Economia altamente versados em finanças públicas, sobre os méritos do investimento público e os malefícios da austeridade, como se estivéssemos a falar de toda a Europa. Somos todo o santo dia atacados por políticos que, tal como Trump, lutam por corroborar crenças em vez de fazerem aquilo que seria honestamente correto. Todos os dias é lançada dúvida sobre algo que é relativamente óbvio e que provoca politicamente o adiamento da solução a algo que deveria ser o problema que atiraria todos os outros para discussão nas Tardes da Júlia.

Em Portugal isto é particularmente frustrante. É visto de forma positiva que um político saiba sentar à mesa os interesses em jogo e que daí retire o futuro. Exatamente porque é muito mais fácil ser ignorante que não o ser, tirar uma bissetriz em tudo o que é assunto acaba por ser o sinal de sucesso de um político (em rigor, de todo o ecossistema que rodeia a politica) e, no país onde vivemos, chega a ser o objetivo do Estado, se formos acreditar nos sucessivos apelos dos Presidentes da República aos consensos. Mas nos assuntos realmente importantes, como o caso do aquecimento global ou sobrevivência financeira do Estado português, mais ameaçada ainda que o próprio planeta, não há duas verdades. Há uma verdade e uma carrada de dúvidas criadas para empurrar para a frente a solução. Ficar com a média disto não é um sinal de progresso, é apenas um sinal de ignorância.

Isto tudo a propósito de mais um Orçamento do Estado cuja leitura é perfeitamente dispensável. E é perfeitamente dispensável porque o resultado final será tornar mais pobres aqueles que trabalham, favorecer aqueles que pretendem valorizar o seu trabalho de forma ilícita sem colocar esse valor à prova do algodão que o consumo alheio traz e fazer daqueles que não conseguem entregar o seu trabalho, ainda mais pobres do que eram antes. Perguntar-me-ão se li o orçamento desde ano? Sim, li há 15 anos. E a leitura que fiz na altura vai servir-me até à falência final.

Todos os anos se orçamenta basicamente a mesma coisa, tirando o ano em que quem fez o orçamento foi a troika e nós fizemos de tudo para o torpedear para fazer exatamente o que se faz todos os anos. Todos os anos se aumentam impostos sobre tudo e mais alguma coisa. Na verdade, se começarmos a ver que tipo de impostos pagamos, pagamos sobre morrer, sobre trabalhar, sobre ter emprego, sobre estudar, sobre ter saúde e sobre não ter saúde, sobre ter teto, sobre ter sede, sobre defecar, sobre comer, sobre deslocar e sobre estar parado. Se isso realmente trouxesse igualdade e prosperidade, não estava já na hora de passados estes anos todos sermos ricos e iguais?

A verdade é que todos os orçamentos desde há duas dezenas de anos parecem ser desenhados com o mesmo objetivo de longo prazo. Sim, sabe-se que a trajetória vai ser a destruição, mas há sempre uma desculpa, uma dúvida, um questionar se a trajetória é mesmo essa. Uma antiga ministra das Finanças colocava as culpas da trajetória no Tratado Orçamental, como se o Tratado tivesse sido assinado entre nós e nós mesmos, como se não houvesse mais uma carrada de estados sujeitos ao mesmo Tratado e cuja trajetória é completamente diferente. Ministra essa que influenciou as contas públicas fazendo um esquema de securitização de incobráveis, transformando contabilística e artificialmente dívidas sem esperança de cobrança em dívidas por cobrar; algo que se fosse feito num banco daria direito a um processo pelo Banco de Portugal. Mas o problema não foi o martelanço na contabilidade, foi o Tratado. E, para não dizerem que foi esse partido em particular, o atual ministro lançou um perdão fiscal cujo objetivo é o mesmo. Mas as culpas, essas, são da Comissão Europeia, do BCE, das agências de rating ao serviço dos especuladores da economia de casino, do capitalismo internacional, das políticas austeritárias e da Sra. Merkel.

Sim, poderíamos cortar nos custos do Estado e adaptar os salários dos funcionários públicos ao valor do serviço que entregam de facto. Aquilo que faria qualquer autarca num município que estivesse em dificuldades financeiras. Mas não, temos aqui o parecer do professor fulano de tal, ilustre académico na área de políticas monetárias que nos diz que nos anos 50 do século passado, uma política semelhante foi aplicada no Kiribati e não funcionou. Por isso, mais vale continuarmos a fazer aquilo que temos andado a fazer, vamos chegar a um consenso onde mantemos os custos, mas refazemos as projeções económicas. E, quando chegarmos ao fim do ano com o resto da Europa a dizer que andamos a trafulhar as contas e a refilar com a dívida, lá vamos arranjar mais um imposto acrescido de outra manigância contabilística qualquer e dizer “estão a ver?!?”. E vai ser um ano em que nos vamos aproximar ainda mais da destruição final. Vamos ser vítimas da nossa própria ignorância. O que é perfeitamente justo. Injusto seria que os pobres fossem aqueles que apostam em saber.

PhD em Física, Co-Fundador e Partner da Closer